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Discurso na Sessão Inaugural da nova sede da ABL - Petit Trianon

SRS. ACADÊMICOS, Sr. Embaixador de França,

Há anos, já, lendo um trecho de Mr. Alexis de Tocqueville, guardei-o de memória.
Não havia no que afirmava o sábio cultor da jurisprudência americana nada senão a verdade, nada senão a justiça. “Conheço meu país, dizia ele. Reconheço seus erros, suas faltas, sua fraqueza e suas misérias. Mas sei também do que é capaz. Empresas há que só a nação francesa está em estado de realizar, resoluções magnânimas que só ela ousa conceber. Só ela pode, em certo dia, tomar a si a causa comum e por ela combater. E, se está sujeita a causas profundas, tem entusiasmos sublimes que a levam inopinadamente até um certo ponto que povo algum lograra atingir jamais.”

O entusiasmo, eis a França. O grande gênio de Napoleão não fez mais do que mantê-lo irredutível na consciência do povo francês. Era precisamente nele que apoiava a sua força: não decorria de outro sentimento o segredo da vitória. Os primeiros tempos da Revolução foram batidos nessa bigorna, esbraseados nessa forja, fundidos nesse crisol.

Foi por isso que ele quis dirigi-lo e não proscrevê-lo. Não se podem dispensar algumas altas paixões, compreendia-o ele muito bem, para vivificar o coração humano, o qual, sem ele, ulcera-se e apodrece.
As leis são necessárias para certas épocas e servem a um fim, adequado ao grau em que cada povo se acha. Finda a vigência relativa, criada pelas paixões, pelos erros e pelos vícios, deve cessar a atuação legal e estabelecer-se um regime de liberdade que denuncie o caráter do povo e o seu estado de cultura.

A França imprimira, em diversos momentos da sua vida, à sua ação política e social, esse caráter de generalização que a torna a benfeitora dos homens. A Revolução, condensada em meia dúzia de princípios, abalou as sociedades que pareciam firmar-se naquele inaudito postulado de César: “A humanidade inteira é feita para servir um pequeno número.” A liberdade foi sempre o sonho da França, a antemural das revoluções. Os países livres não são jamais açoitados pelos cataclismos sociais.

O que salvou a Inglaterra da invasão; o que a põe a cavaleiro de qualquer atentado às suas leis e à sua organização política, não é o mar, mas a própria nação, sempre de pé, centralizada nos seus sentimentos de brio e de independência, e, principalmente, a liberdade de suas instituições, seu espírito, sua constituição. Ela o demonstra e, sobretudo, o revigora nas suas convicções liberais. Para pôr cobro aos excessos que podem decorrer das revoluções só há um meio: opor-lhes a liberdade.

Os países livres, de franquias disciplinares, a cujas facilidades não ocorre prejudicar o que necessita de ordem e respeito; os governos, verdadeiramente governos, inspirados no bem público, exaltando-se na justiça, esses fazem como a França: traçam aos seus destinos uma derrota, oriunda naturalmente da combinação da liberdade e da confiança.

O espírito francês é reação e protesto. Protesto e reação contra o imperador de fabrico hereditário; depois, contra o imperador de fabrico militar. Contra o cetro, o dogma, o sabre, – o direito, a lei, a consciência livre. Substituiu o direito divino pelo direito humano; seu prestígio, seu pundonor, seu ascendente político correspondem à tribuna livre, à imprensa livre, a alma colocada acima dos preconceitos, das oligarquias, das desigualdades.

Victor Hugo disse, com razão, que ela guardaria a iniciativa do progresso, a marcha das ideias novas, a clientela das raças oprimidas.
Não perdeu a sua soberania com a derrota, não cresceu em ódios, nem em abusos com a vitória. Dizem que ela agora exige muito. Exige o que é equitativo, o que lhe é devido pelo muito que sofreu e perdeu. E se a Alemanha tivesse vencido?

A França teria sido riscada da carta da Europa, senão rebaixada no seu nome, nas suas tradições, nas suas iniciativas, no seu direito.
Jamais a Prússia tomou posse da Alsácia e Lorena. “Apoderar-se de uma cousa não é possuí-la, respondeu dignamente o poeta.”

De fato, posse supõe consentimento. Acaso a Turquia possuía Atenas, a Áustria, Veneza, a Rússia, Varsóvia, a Espanha, Cuba? O tempo encarregou-se de frisar bem o asserto. Leis ocultas dirigem os homens e as nações: remodelam-nos, reconstituem-nos, refá-los aos auspícios de uma inspiração, até então desconhecida.

A confiança, a ordem, o respeito residem na liberdade. A grande nação verificou que era mister ir um pouco além da força para poder ser perfeita, e reformou os seus códigos e declarou guerra aos privilégios.
No seu espírito havia alguma cousa de semelhante à preamar: tudo o que uma contém de exacerbado pela função vital dos elementos em jogo; o que refervia no bojo das marés, nele, também, refluía com a impetuosidade das correntes marinhas, sob a ação reconstrutora das águas, que nessas regiões se chamam verdades.

A Alemanha, como Roma, queria impor o seu tipo às nações; impor pela força. Foi, evidentemente, o que quis fazer com a Alsácia e a Lorena. Na França o traço de união por ela planeado para a conquista, não se inspira no mesmo processo. Não é o seu tipo étnico ou consuetudinário, restaurando as forças de um organismo depauperado e vencido pela guerra. Ela possui a sua ética, o seu ideal de beleza, e são estes que procura trasladar para a conquista, para as ideias, para os costumes dos povos que teve de submeter pelas armas.

A assimilação é feita pela dialética; a conversão pela simpatia. Em uma, demonstra o lucro que há em se tornarem franceses, em outro, o tipo clássico do belo procurando a unidade no caos das paixões e do orgulho.
Se a liberdade é dignidade e harmonia, como infringir a lei que estabelece como base da vida a obrigação de ser livre?

E, de acordo com a sua história, que é o desenvolvimento da liberdade, o eterno protesto do triunfo progressivo, a França deixa ao órgão o direito de servir à função, mas sem empecê-lo na sua capacidade de resistência, sem lhe pedir mais do que possa dar.
É pela assimilação lenta, pelos cuidados da dialética, pelo esforço de erudição, pela palavra, harmonizando-se com a lenta transformação das ideias, que ela vai inclinando os homens ao seu domínio e prestígio.

A ação, o argumento, o valor predispõe a que se a aceite como o resultado de um esforço incontido nas camadas mais rudes da sua constituição múltipla.
Sendo o mesmo homem de guerra, quer nos campos de batalha, quer nas subtilezas jurídicas, não houve batalha que não vencesse, se o duelo foi leal, se a espada não enfraqueceu em extravios perniciosos.
Michelet diz: o gosto da ação e da guerra, a espada rápida, o argumento e o sofisma sempre prontos, são os caracteres comuns aos povos célticos. O valor e a dialética hibernes não são maiores que os da França.

A sua aparente contradição constitucional, no aceitar o que vem de fora; ou no espalhar fora o que se origina do seu inveterado proselitismo, e, finalmente, a sua destemerosa e veemente organização, constituída, em síntese geral e definitiva, como resumo e codificação de todos os elementos assimilados ou aproveitados de si mesma, é que tornam mais íntima a sua unidade, e, por isso mesmo, capaz de exprimir, eficazmente, o que resultou de uma demorada aglutinação étnica. Estudados pela rama parecem antitéticos os seus processos evolutivos. De fato, a sua fisionomia muda muitas vezes; mas, caracterizadamente, três: no século XVI é italiana, no fim do século XVIII, inglesa; mas, operando como em vasto cadinho, funde todos esses metais, e afrancesa as nações.

Estudando-se a percentagem oposta à massa sedimentária local, verifica-se que não teve força para resistir à ação orgânica da nação e submeteu-se à opinião geral. Assimilar as inteligências e as vontades não é o mesmo que assimilar materialmente, empregando a força que separa em vez de unir. Quando o exército francês deixa o país invadido, surge dele uma nação nova, que não difere da França. Nossa língua reinou na Europa, nossa literatura invadiu a Inglaterra, sob Carlos II, a Itália e a Alemanha no século XIX, diz o historiador; hoje são nossas leis, acrescenta, nossa liberdade tão forte e tão pura, que partilhamos com o mundo.

Tudo quanto a sua eloquência conseguiu, a sua poesia emocionou e a sua filosofia esclareceu, resultou da liberdade, foi um pensamento da vontade poderosa concretizada, depois da mais pura abstração. Da pureza da exposição, do culto da língua, da humanização da forma, da variedade simbolista e apósita a todas as manifestações da arte, surgiu a igualdade das luzes, o balanço geral produziu o equilíbrio de forças, destinadas a compor e terminar o longo e complexo aperfeiçoamento da prosa francesa.

Que objetivo, entretanto, visa o esforço intelectual da França? A igualdade. Foi sempre assim. Não discrepou jamais do afinco posto às conquistas democráticas. Não foi outra coisa senão um padrão de igualdade, um sacerdócio, quer à sombra do prestígio religioso, quer na iniciação ou no espírito gaulês. A aristocracia não teve mão do druida; é ele que, aliado ao povo das cidades, a impede de avassalar os domínios naturalmente vedados à invasão das suas hostes.

A fecunda turbulência das comunas é grande pela resistência ao feudalismo; liberta cidades inteiras; proporciona à liberdade um estágio que facilitará a obtenção de franquias, que, sem a unidade política, não fora lícito esperar tão cedo.
A França, porém, está atenta.

Se o padre permanecesse povo teria reinado só e em seu próprio nome: a demagogia sacerdotal teria tomado praça do feudalismo. Se a liberdade das cidades tivesse prevalecido, se as comunas tivessem subsistido, a França coberta de repúblicas não se teria tornado nunca uma nação; ter-lhe-ia acontecido o mesmo que à Itália, as cidades teriam absorvido os campos abandonados pelos seus habitantes.

Graças à lenta extinção do feudalismo a França achou-se forte nos campos, como a Alemanha; nas cidades, como a Itália; viva e fecunda como a tribo; una e harmônica como a cidade. Um poder central, maravilhosamente enérgico, formou-se pela aliança do direito abstrato do rei e do padre, contra o direito concreto e local dos senhores.

Os vícios são sempre, ali, a consequência dos abusos da liberdade. Essa condição a retrai a outros perigos; não a corrompe ou degrada, pois em virtude desse mesmo excesso de liberdade não é atingida pelo mal nas suas raízes, porque a liberdade suscita energias que lhe vivificam o organismo, e o que seria degradação em outros países, na França não passa de uma perda transitória, maior ou menor, de elementos indispensáveis ao equilíbrio geral dos sentimentos que fixam a norma e a diretriz das nossas ações.

Não passa de um abalo passageiro que não compromete o substratum, a vida, representada pela liberdade.
Há um verbo que encarna o povo; esse verbo é a França. No aparato das oposições sistemáticas, na febre e capricho das lutas, mais ou menos opressivas, o quilate popular, sobreposto à ingerência ou controle dos homens, designados para esse fim, não é atingido nunca. Tais golpes não o destroem: é sempre o mesmo.

Não há exagero em dizer-se que os pensamentos das outras nações são traduzidos, remodelados, apurados pela França. Não era outra a linguagem da Grécia, na Ásia. Falava como o arauto da beleza; dir-se-ia o florilégio das mais belas produções, ensaiadas no descortino de uma pátria nova; toda uma reivindicação justa, em suma, nascida da própria alma de uma nação que se ajusta às formas exteriores da vida para poder defini-la na sua imensa variedade de aspectos.

Lutas, glórias, evocações de sombras gloriosas, ritmo angustioso de catástrofes, ritmo heroico de vitórias, perpassam nesse cenário grandioso em que os homens surgem como gigantes, como heróis, como deuses.

Bela sempre, por mais que procurem enfeá-la, sua beleza está sempre em agitação, em marcha; daí, a natureza infinita da sua progressão. Não há exagero, quando se diz que toda a revelação nova ficará estéril, se o gênio francês a não interpretar, a não traduzir, a não popularizar.
O pensamento solitário das nações não pode expandir-se, nem franquear o círculo do seu idioma e da sua raça, se a França o não for buscar ao seu isolamento e o não integrar na sua consciência. Ninguém possui, como ela, o sentimento da generalização, e tampouco dispõe de virtudes que atraiam o que nasceu fora das suas fronteiras.

Os processos de irradiação só ela os possui. Se não fora esse grau de aperfeiçoamento intelectual, decerto, não poderia pontificar, como fazia a Grécia nos domínios das ciências, das artes, da filosofia e da política. Engrandece-se a cada passo. A última guerra foi para os povos um grande ensinamento, do ponto de vista da tática e da estratégia. Maravilhou-nos com o seu heroísmo, com a sua inteligência, dando aos lances mais arriscados um traço novo de original interpretação ao que se relacionava com o que a ciência da guerra afirmava ser a última palavra.

É certo que nem sempre teve a prioridade das descobertas; mas, quando não descobria, aperfeiçoava.
Não são os que têm os olhos fixos no Oriente os primeiros a verem a aurora despontar. Um certo povo da Ásia ofereceu a coroa a quem primeiramente a visse surgir nos céus. Todos dirigiram os olhos para o levante. Houve quem, entretanto, mais avisado, se voltasse para o lado oposto; e, com efeito, enquanto nada era visto daquele lado, deste, os clarões da aurora embranqueciam já o alto de uma torre.
Momentos há, Sr. Embaixador, na História da vossa pátria, em que se diria proceder do mesmo modo. Enquanto todos se voltavam para o lado em que se julgava estar a luz, ela, ao contrário, irrompia do lado oposto, e era, precisamente, aí, que a França tinha os olhos fixos.

Bem haja o povo que assim enobrece a consciência humana e congrega nações para o mesmo Verbo e a mesma Eucaristia! Tem sido ela a intermediária da divindade, o sentimento democrático que conduz à harmonia social. Das suas fatalidades opostas originou-se esse conjunto de leis que tornam capazes de se dirigirem por si mesmos, e cada função social, a sua consequência lógica, sem outro objetivo que unir as raças, completando o domínio da razão e restaurando definitivamente os sentimentos de solidariedade humana.

Acadêmico relacionado : 
Luís Murat