Discurso de agradecimento
Magnífico Reitor, Autoridades, Prof. Hélio Bastos Tornaghi, Senhoras e Senhores,
l. "O homem é testemunha em sua vida de mil acontecimentos diversos; mas antes que eles aconteçam, ninguém poderá predizê-los". São estas as últimas palavras com as quais o coro encerra o drama do infeliz Ajax, contado por Sófocles. O herói da tragédia grega é sempre um grande inocente, perdido na vida, mergulhado na Necessidade, joquete dos deuses, não sabendo bem aonde lhe pode conduzir a sua ação. Age, luta, esforça-se, trabalha, pensa estar caminhando na direção certa, mas, em verdade, o que terá de acontecer já está escrito, e nada o desviará do seu destino. Muitas vezes, julgando fugir do seu destino, vai ao encontro dele, como no Édipo rei, do mesmo Sófocles. Apolo proibira a Laio a criação de filhos, sob pena de morrer nas mãos do primeiro que lhe nascesse. Para evitar o cumprimento do oráculo, desfaz-se de Édipo, seu primogênito, mandando lançá-lo bem longe do palácio, em terras estranhas. Muitos anos mais tarde, homem feito, dirige-se Édipo a Delfos, curioso de saber a sua verdadeira origem, já que lhe haviam dito que não era filho de Pólibo, rei de Corinto, cuja esposa, Periboia, o adotara. No caminho, numa encruzilhada, atrita-se com um velho, que também demandava a Delfos, e acaba por matá-lo. Ambos não se conheciam e do episódio não houve testemunha, mas a profecia do oráculo realizara-se naquele momento: Édipo matara Laio, seu pai verdadeiro.
Sempre tive da vida a mesma concepção da tragédia grega: um mínimo de liberdade, para um máximo de necessidade. Somos, nós os humanos, uns grandes inocentes, mediocremente bons, mediocremente maus. De resto, é a mesma concepção que se encontra no cristianismo, sob esse ponto de vista: o homem põe, Deus dispõe. Ou ainda no conhecido aforismo de Augusto Comte, numa filosofia aparentemente oposta, mas com o mesmo sentido: o homem se agita, a humanidade o conduz. Tudo isso quer significar, afinal de contas, que nós nos movemos, nós nos mexemos, nós agimos, mas quase sempre como as folhas das árvores que o vento, poderoso mas invisível, joga rudemente de uma lado para outro. No começo do pensamento moderno, dizia Descartes que a finalidade da ciência seria a de afastar o insólito da vida humana, fazendo com que o homem se transformasse em senhor do mundo e da sua própria existência, aumentando-lhe a segurança, impedindo ou reduzindo o imprevisto. A despeito de todo o progresso científico, muito há que fica de fora de qualquer previsão. A humanidade encontra-se ainda bem longe do desiderato de Descartes: desconhece mais do que sabe, sendo surpreendida a cada passo por fatos que lhe são estranhos e por consequências inesperadas de sua própria ação, como se dela mesma não fosse. E se isso pode ser dito das ciências tidas como exatas, o que dizer então das chamadas ciências humanas? Aqui — na Psicologia, na Sociologia, na Ciência Política, na História, no Direito — a área de risco, de incerteza e de insegurança ainda é maior, tais e tantos são os fatores que devem ser computados. O acaso e a surpresa como que reconquistam a cada passo o terreno que lhes querem tirar. O destino individual perde-se em meio a essa infinidade de linhas e variáveis que se cruzam, tornando-se, como um todo, do começo ao fim, quase que imprevisível. Somente a estatística poderá dizer, em suas séries abstratas e impessoais, o que aconteceu, o que está acontecendo. Mas — pobre consolo! — isso não basta nem tranquiliza.
Esta noite, Magnífico Reitor, já estava rigorosamente agasalhada no meu destino, mesmo no dia 13 de junho, quando fui preso em minha casa, ou no dia 1.° de setembro, ambos de 1969, quando fui compulsoriamente aposentado com proventos proporcionais, sem qualquer acusação formal nem direito de defesa. Mas naqueles dias sombrios e cruéis da história brasileira, nenhum de nós poderia predizê-la de maneira alguma, como no coro de Sófocles, antes que ela acontecesse. Naqueles dias, naquelas noites, de prisão e de incomunicabilidade, nenhuma luz se fazia no fim do túnel e tudo parecia acabado. Mas esta noite de hoje está acontecendo, para alegria de todos nós, seus agentes e testemunhas. O destino não nos abandonou, está-se fazendo por nossas mãos, não permitindo que as ações de 1969 ditassem a palavra final das nossas vidas. Serviram-lhe somente de prólogo, de prelúdio, fazendo com que se antecipasse, antes de chegada para mim a compulsória por implemento de idade, o generoso gesto da Universidade, dando a este seu filho o prêmio maior das suas láureas acadêmicas, apagando e fazendo-lhe esquecer a violência de que fora vítima.
Como já em seu discurso de saudação, deixou claro o meu dileto amigo, Prof. Hélio Tornaghi, a minha vida de curso superior girou inteira dentro desta Universidade. Quando do vestibular, em fevereiro de 1933, chamava-se ela Universidade do Rio de Janeiro. Quando da formatura, em 1937, já se denominava Universidade do Brasil, desde setembro do mesmo ano. E agora se apelida Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas a Casa e a sua história são as mesmas. Dois vestibulares foram feitos, em 1933 e 1939, para as Faculdades de Direito e de Filosofia, respectivamente, sendo que este foi o primeiro que se realizou para a novel unidade de ensino. Só de vida acadêmica somaram-se nove anos. Duas docências, de Direito e de Sociologia, em 1953 e 1955, e uma cátedra, 1957, realizadas igualmente para as duas escolas universitárias. Fui fundador e presidente por quatro mandatos entremeados – proibida a reeleição – do Instituto de Ciências Sociais, o primeiro Instituto multidisciplinar e colegiado, criado em 1958, cujo primeiro presidente foi o Prof. Victor Nunes Leal, muito do nosso afeto e admiração. Nos dois últimos anos de atividade, 1968 e 1969, fiz parte do Conselho de Ensino para Graduados. Tudo e sempre nesta Universidade, dentro dela, numa fidelidade de amante permanentemente apaixonado, sem olhos nem desejos para outras universidades, por mais tentadoras que fossem. Sempre me senti um produto e um produtor, embora modesto, da Universidade, na qual me iniciei como vestibulando e terminei na minha vida ativa, contra a vontade, arbitrariamente, como professor de duas disciplinas diferentes em dois estabelecimentos também diversos.
Em tais circunstâncias, a separação é sempre cruel e amarga, e tão mais profundas e íntimas tenham sido as relações anteriores, quanto mais difícil igualmente se torna a volta. Houve todo um intervalo de dez anos, entre 1969 e 1979, e quando o Magnífico Reitor, Prof. Renato Caldas, o Pacificador, fez por escrito o convite aos professores para que voltassem à antiga Casa, vi que alguma coisa havia mudado dentro de mim. A suposta anistia chegara tarde, a ausência durara demais, e os sentimentos já não eram os mesmos. Como aceitar-se anistia de um delito que não houve, como quem cria falsas realidades e brinca num jogo forçado de faz-de-conta? Verifiquei, então, que durante aqueles longos anos a opção havia sido feita e se firmara inarredável: a favor do estudo, do trabalho individual, no isolamento do gabinete, a sós com os livros e com os próprios pensamentos, com total responsabilidade pessoal — mas somente pessoal — de tudo que pudesse vir a ser escrito e publicado. Nada mais tranquilizador e estimulante do que o diálogo com os livros, como já diziam os antigos — si bibliothecam habes, nihil deest — se tens uma biblioteca, nada te falta. Não há maior prazer do que amar os livros, que, no dizer de Émile Henriot, são vastos reservatórios de vida, com a qual a nossa cresce sem cessar. Muita vez são mais reais do que a própria realidade, "formando e povoando em torno de nós um mundo ideal e completo". São os livros que nos dão um conhecimento mais profundo e melhor dos seres vivos que nos cercam; nos revelam a sua existência, apreendem-lhes os pensamentos, os amores, as desgraças, as esperanças e os segredos. Há tanta surpresa e alegria numa descoberta erudita como numa invenção ou numa descoberta de terra nova. O coração bate mais forte, a respiração fica ofegante, não raro, com as mãos trémulas como quem encontra um tesouro. Há muito de imaginação e de virtude criativa na leitura e na compreensão do texto aparentemente sem vida.
É bom que se recorde — e nem todos dele tomaram conhecimento — a existência do perverso Ato Complementar nº 75, de 21 de outubro de 1969, que, num violento atentado contra a liberdade do trabalho e o direito ao trabalho, fazia com que a punição do regime acompanhasse o professor, grudada à sua pele como lepra, impedindo-o praticamente de exercer a profissão. Por suas minúcias proibitivas, por seu casuísmo punitivo, de péssima técnica legislativa, na ânsia de tudo prender nas suas malhas estreitas, vale a transcrição do seu artigo 1° e único, que dispensa maiores anotações ou comentários: "Todos aqueles que, como professor, funcionário, ou empregado de estabelecimentos de ensino público, incorrerem ou venham a incorrer em faltas que resultaram ou venham a resultar em sanções com fundamento em Atos Institucionais, ficam proibidos de exercer, a qualquer título, cargo, função, emprego ou atividade em estabelecimentos de ensino e em fundações criadas ou subvencionadas pelos poderes públicos, tanto da União como dos Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios, bem como em instituições de ensino ou pesquisa e organizações de interesse da segurança nacional".
Somente em abril de 1977 vim a proferir conferência em recinto universitário, na Faculdade de Direito, da Universidade de São Paulo, por iniciativa da corajosa e nobre Professora Nair Lemos Gonçalves, titular de Direito do Trabalho. O governo estadual foi previamente consultado e deu sinal verde. Realizou-se a conferência no salão nobre das Arcadas, sob a presidência do seu diretor e na presença da congregação. Somente em 1979, dez anos depois de aposentado, fui convidado a examinar uma tese de doutorado em escola oficial, e o foi na Faculdade de Direito, da Universidade Federal de Minas Gerais, por sugestão do ilustre titular de Direito do Trabalho, Prof. Messias Donato. Da banca fazia parte também outro professor compulsoriamente aposentado, o grande Edgard Godoy da Mata Machado, naquele mesmo ano readmitido pela Universidade, logo depois da Lei de Anistia.
2. Chega de passado, chega de lamúrias, mas é preciso que o mau passado não seja esquecido, para que não se jogue pela janela a experiência duramente adquirida pela porta. A comunidade universitária deve se compenetrar da sua autonomia administrativa e cultural, com espírito de corporação, constituída de pessoas dignas e bem intencionadas, sem reticências mentais nem atos de má fé. Devem todos os seus integrantes — professores e alunos, funcionários e servidores — sentirem-se como membros de um mesmo todo, num clima de liberdade, de compreensão e de responsabilidade pela sua reputação e sobrevivência. Como um pequeno Estado, deve ela encontrar dentro de si mesma todos os poderes necessários à realização do seu papel e das suas funções na sociedade. A universidade não é uma agência meramente voltada para o estudo do passado, na transmissão da herança cultural, como um mensageiro neutro e passivo, como alguém que sufoca a mocidade embaixo de um saber feito e cristalizado para sempre. Muito ao contrário: o compromisso da universidade é com o futuro, é com a cidade futura que há de vir, que está vindo. Afinal, como lembra George Gusdorf, "o mestre não é o repetidor de uma verdade toda feita. Ele próprio abre uma perspectiva sobre a verdade, o exemplo de um caminho para o verdadeiro que ele indica. Porque a verdade é sobretudo o caminho da verdade".
Cabe à universidade, perscrutar os sinais de coisa nova, distinguir o que há de vivo e de morto no passado, aproveitando somente aquilo que seja significante, que seja capaz de fecundar o presente, voltado para o futuro; tanto quanto transmissora de cultura, ou mais do que isso, como produtora de cultura, atenta aos problemas do seu tempo, aceitando os desafios que a cercam por todos os lados, mormente num país subdesenvolvido como o nosso. Recordando o novo professor de filosofia que ingressara no Liceu de Nancy em 1879, escreveu bem mais tarde Maurice Barres que ele trouxe aos jovens alunos, "que ruminavam simples rudimentos, o mais vigoroso dos estimulantes: as ideias de sua época".
Só o mau professor tem medo das ideias da sua época, refugiando-se no casulo do tempo, à prova de ruídos e de alaridos que lhe chegam da rua. A elite universitária, pelo menos culturalmente privilegiada, não pode divorciar-se do povo; pelo contrário, deve ser bem consciente do papel crítico na sociedade do seu tempo. Na turma que paraninfou em 1941, na Faculdade Nacional de Filosofia, da qual fora diretor, dizia o grande mestre de nós todos, talvez o maior humanista que por lá passou, Alceu Amoroso Lima, cujo nome enuncio neste instante com as homenagens e os sentimentos de admiração mais profundos: "Não basta aprender e ensinar — é preciso criar. Quem não avança não se renova. Quem se limita a ficar onde estava na véspera será vencido pelas exigências imperiosas dos dias seguintes. Não é suficiente transmitir aos outros aquilo que os outros nos ensinaram. Precisamos fazer por nós mesmos. Precisamos ser fonte de alguma coisa. Para sermos bons professores, em suma, precisamos não ser apenas professores" ... "O professor é um civilizador. Por ele se processa, em grande parte, o trabalho do progresso social, que visa à elevação constante do nível de humanização da sociedade"... "Ensinando, como é de nosso mister, temos a consciência de nosso valor social, e aumentamos em nós, se formos dignos de nossa vocação, a certeza de que nossa tarefa não se esgota no diálogo com o aluno, mas vai atingir em cheio a sociedade de que participamos". "Ensinando, nosso dever é, naturalmente, comunicar conhecimentos e despertar o gosto de os adquirir. Ensinando, nosso dever concomitante é colaborar na marcha ascedente da Civilização, — na salvação do que nela está ameaçado pela barbaria ou na preparação dos novos valores da ordem política de amanhã; é concorrer para a formação de uma Nacionalidade cada vez mais digna de suas tradições e de suas esperanças e, finalmente, é participar da obra do Bem Comum que não é privilégio de um grupo social apenas e sim da contribuição de todos para uma obra coletiva".
Como disse, estes textos de Alceu Amoroso Lima são de 1941, em pleno Estado Novo. Em paraninfados posteriores, em 1962, 1964 (que não pôde ser lido a 28 de dezembro daquele ano) e 1965, na mesma Faculdade, as ideias são idênticas, revestidas do mesmo humanismo pedagógico. Afinal, foram proferidas em cerimônias desta nossa Universidade. No de 1962 há esta advertência, hoje talvez mais verdadeira do que quando foi dita: "Lembrai-vos, porém, que a verdadeira reforma universitária é a que se faz continuamente no próprio espírito de estudantes e professores".
Aposentado em dezembro de 1963, por cair na compulsória, nunca deixou Alceu de ser o mestre eminente, trocando somente a pequena sala de aula pelo plenário de toda a nação. Não que antes já não o fizesse pelo livro, pelo jornal e pela tribuna, mas a partir de abril de 1964 instalara-se novo regime político no país, passando o resto da vida de Alceu a ser dedicada ao combate ao arbítrio e ao obscurantismo. Mais do que o liberalismo da sua mocidade, fizera ele do libertarismo (palavra por ele próprio usada), corajosamente, o objetivo final da sua vida.
Ao ser inumado ontem no Cemitério de São João Batista, levou com ele o respeito e a veneração de todo o povo brasileiro, pelo exemplo maior que fora de dignidade e de coragem cívica. Por isso mesmo foi vítima de apodos e de ataques virulentos, sem nunca revidá-los nem se dar por atingido. Prosseguiu firme na luta pela liberdade, como se propusera, em nome de uma verdadeira e autêntica cristianização da sociedade brasileira. Em seu livro Adeus à disponibilidade e outros adeuses (1969), reuniu Alceu uma série de escritos representativos de mudanças de estilos ou de objetivos na sua vida, de inigualável nobreza, em superações constantes, sempre para o alto. Começa o livro pela carta a Sérgio Buarque de Holanda, de 1929, na qual dava o primeiro adeus, à disponibilidade, ao período estético, ao que ele mesmo chamou de sibaritismo literário. Convertera-se ao catolicismo, após uma longa correspondência trocada com Jackson de Figueiredo, que culmina com a confissão e a comunhão diante do Padre Leonel Franca, em 15 de agosto de 1928, exatamente há cinquenta e cinco anos. Assim termina a carta: "Quem escreveu essas linhas é que compreendeu até onde vai a sombra da Cruz. E é por lá que nos encontraremos". Ontem cessaram os adeuses de Alceu, que foram, em sua própria linguagem, "o prelúdio do verdadeiro a Deus que se aproximava".
Em verdade, manteve Alceu uma nítida coerência na sua pregação do cristianismo social, na sua prédica pela justiça e pela caridade nas relações humanas. Ao datilografar o seu livro O problema do trabalho, de 1947, perguntou-lhe a sua filha: "Papai, por que você repete todo o tempo a mesma coisa?" Por isso mesmo esclarece ele logo a seguir, quanto ao livro: "Não há nele novidade alguma. Não há preocupação de outra ordem que não seja ser fiel a um pensamento profundo, a um sentimento irresistível que vem do horizonte de muitos anos já ultrapassados. A obsessão da miséria. A visão das favelas. O contato diário com as mãos calosas, as faces macilentas, os pés descalços, as roupas em pedaços, as crianças desnutridas, as multidões madrugadoras, as palhoças enegrecidas, os trens superlotados dos subúrbios, a comida incomível das marmitas, toda a sombra trágica que acompanha, no Rio de nossos dias, o espetáculo de luxo e de grandeza dos arranha-céus que se multiplicam, dos automóveis suntuosos que enchem as ruas, dos teatros e das praias, das joias e das peles, dos cassinos e dos palaces, de tudo o que o luxo cosmopolita ou nacionalista exibe nas avenidas suntuosas da cidade ou nas ruas tranquilas dos bairros residenciais favorecidos".
Esta página é de 1947, do Alceu de sempre. E que tem haver tudo isso com a universidade? Claro, toda essa gente andrajosa e maltrapilha — na sua maioria, pobres absolutos — não vai invadir as salas de aula nem os laboratórios das escolas, mas elas permanecem do lado de fora como um desafio à inteligência universitária. Ignorá-las é assumir um papel de indiferentismo e de comodismo, que favorece o status quo e perpetua a injustiça. Que cada professor ensine a sua disciplina, e bem, mas que não esqueça a realidade do seu país, como se vivesse numa torre de marfim. Não é pedir nem aconselhar pregação dentro da sala de aula, transformando a universidade em praça de comício, mas é exigir plena consciência de que essa mesma universidade se encontra localizada no Brasil, num país pobre, endividado, dependente e marginalizado, e não em Nova Iorque, Londres, Paris, Moscou, Pequim ou Tóquio. A universidade faz parte da própria realidade social brasileira, com os seus dramas e os seus problemas. Já nos fins do século passado, escrevia Émile Durkheim, de reconhecida escola conservadora: "As minhas pesquisas não mereceriam uma hora de trabalho se não devessem ter senão um interesse especulativo". E em 1948, um grande scholar americano, professor Robert Lynd, publicou o seu célebre livro: "Knowledge for what? — conhecimento, para quê?", no qual transcreve estas palavras de Albert Einstein: "Ocupar-se com o próprio homem e o seu destino deve sempre constituir o interesse principal de qualquer empreendimento técnico. Nunca esqueça isso em meio a seus diagramas e equações". E tudo isso em puro amor da humanidade, acima e além das ideologias e dos interesses partidários.
3. O adolescente de 1933, que, juntamente com Hélio Tornaghi, ingressou na Faculdade da rua do Catete, ainda se encontra aqui, escondido dentro da beca, emocionado e cheio de gratidão por haver conseguido juntar na vida tantos amigos e bons colegas, nada mais podendo lhes dar além de afeto, a despeito, como é natural, de alguns desavindos e quase inimigos. A intenção, porém, foi boa; mas pelo simples fato de viver criam-se situações de competição e de conflito, já que a ninguém é permitido viver sozinho. Viver é conviver, bem ou mal.
Quero agradecer especialmente a esse bravo Diretor da Faculdade de Direito, que já em 1969, paraninfando a turma que concluía o curso, lamentava a ausência do colega colhido pelo Ato Institucional promulgado no ano anterior. Refiro-me ao Professor Celso César Papaléo, a quem coube a iniciativa, o primeiro gesto concreto, da concessão do grau de Emérito a este seu colega. Consultou-me se o aceitava, antes de redigir o documento que seria submetido à Congregação.
Esta o aprovou por unanimidade, vendo eu as assinaturas de cada colega no próprio documento. A todos e a cada um, os meus agradecimentos mais profundos. Ao Professor Hélio Tornaghi, que foi o primeiro a dele tomar conhecimento e a assiná-lo, de há muito sou seu devedor, de tantas coisas, de ordem moral, espiritual e de vida mesma, que só lhe falto dever dinheiro. Pelas palavras que acaba de proferir, verifica-se desde logo como é fácil tornar-se devedor de Tornaghi. Generoso, bom, desprendido, forrado por uma sólida educação cristã, homem de fé forte, confundiu-me, sem dúvida, com algum modelo abstrato de seu espírito, emprestando-me qualidades e virtudes de muito aumentadas pelo seu coração. Muito obrigado lhe fico mais uma vez, pois já em 1969 se havia exposto perigosamente em minha defesa.
Ao Magnífico Reitor, Professor Adolfo Polillo, sempre tão gentil e atencioso, que logo acolheu a proposta da Faculdade e a levou à aprovação do Conselho Universitário, e a todos e cada um dos seus membros, a gratidão deste seu colega de grei universitária.
Falta, porém, a esta cerimônia a figura inconfundível de um espadachim do espírito e da amizade. Refiro-me ao Professor Paulo de Góes, a coragem e o desprendimento em pessoa, chegando, não raro, às raias da intrepidez e do desafio frontal em defesa dos seus amigos e dos valores mais altos da justiça e da dignidade. Não media riscos, quando se lançava ao combate. Com o seu desaparecimento, a 13 de novembro do ano passado, antes de cair na compulsória, calou-se uma das vozes mais puras da nossa comunidade universitária: pelo seu talento, pela sua cultura geral e especializada, e, sobretudo, pelo seu caráter. Paulo de Góes viveu e morreu pela Universidade, fazendo dela a sua segunda família, quando não a primeira.
Mais uma vez, muito obrigado a todos que, ausentes ou presentes, apoiaram ou desejaram de alguma forma esta cerimônia, partilhando comigo a alegria deste momento. Vamos nos retirar, porém, nesta hora grave da nacionalidade, levando conosco esta mensagem consoladora de Alceu, datada de 16 de fevereiro de 1946: "Nem o medo, nem a temeridade, mas a esperança. A tímida, a indestrutível esperança".
Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1983.
Evaristo de Moraes Filho