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ABL na mídia - O Globo - Ailton Krenak divide com Paulo Herkenhoff curadoria de mostra às vésperas da COP30: 'Não somos um recurso, somos pessoas', diz escritor

 

Inauguradas com poucos dias de diferença, entre o final de agosto e o início de setembro, no Itaú Cultural, em São Paulo, as Ocupações dedicadas a Paulo Herkenhoff e a Ailton Krenak reservaram uma surpresa do primeiro para o segundo. Ao visitar a mostra do curador e crítico de arte, alguns andares acima da sua, o escritor, ambientalista e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) viu um bilhete fixado em uma das paredes convidando-o para dividir a curadoria da coletiva “Adiar o fim do mundo”, que seria aberta semanas depois na FGV Arte, em Botafogo, Zona Sul do Rio. O que inicialmente foi lido como uma brincadeira do amigo se concretizou em um projeto conjunto, com a dupla assinando a seleção das 200 obras na mostra em cartaz desde a semana passada, no espaço expositivo da Fundação Getúlio Vargas.

— Achei que era uma brincadeira do Paulo, ou uma gentileza para levar o público da mostra dele para a minha. Então, continuei tocando minhas atividades, até que ele disse: “Olha, aquele bilhete lá é verdade” — conta Krenak. — Então tive que desmontar o meu acampamento para poder seguir essa caravana do Paulo em direção ao Rio.

Herkenhoff admite que não foi a única “ação entre amigos” realizada no Itaú Cultural: o curador aproveitou para ampliar o espaço dedicado a objetos “afanados” na sua exposição, no qual exibe a sua coleção com partes de instalações e restos de obras coletadas em instituições e galerias, ao longo de 50 anos.

— Pedi para vários curadores estrangeiros e crianças pegarem pedras da sua exposição e levar para a minha — sorri com ar travesso o crítico de 76 anos. — Essa exposição na FGV só faria sentido se fosse dividida com o Ailton, que, além da própria sabedoria, do conhecimento sobre muitos assuntos, também canaliza o pensamento de muitos outros indígenas.

Assim, criada a quatro mãos, a mostra na FGV reúne trabalhos de nomes como Cildo Meireles, Adriana Varejão, Anna Maria Maiolino, Cláudia Andujar, Camille Kachani, Ayrson Heráclito, Zé Carlos Garcia, Octavio Cardoso, Jaider Esbell, Denilson Baniwa, Xadalu, Gustavo Caboclo, Pajé Manuel Vandique Kaxinawá e do Povo Apinajé. Às vésperas da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP30, que terá início na próxima segunda-feira, em Belém, a coletiva pega emprestado parte do best-seller de Krenak “Ideias para adiar o fim do mundo” (Cia das Letras, 2019), para debater, a partir de diferentes abordagens artísticas, a urgência ambiental.

— Em determinado momento, passou-se a pensar que a Terra produz recursos e que temos a autorização para expropriar o corpo dela a partir dessa chave. O capitalismo trata tudo dessa forma, inclusive a nós mesmos, que passamos a ser recursos humanos. Só que não somos um recurso, somos pessoas, assim como uma árvore é uma árvore, um rio é um rio — analisa Krenak. — Meu medo é que a COP30 vire um balcão de negócios desse mercado dos serviços ambientais, como captura de carbono, em vez de se discutir como diminuir a velocidade com que nós estamos comendo a Terra.

Veja obras das mostras de Ailton Krenak e Paulo Herkenhoff no Rio e SP

Para o ambientalista, a urgência dos problemas pede propostas e metas mais ambiciosas, tanto em relação às questões urbanas quanto na manutenção do patrimônio ambiental.

— As grandes metrópoles estão passando por uma etapa de falência, a governança desses lugares com gente demais é impossível. As crianças só vão ter a oportunidade de outra infância fora das cidades — diz. — Estamos indo para a 30ª COP sem ter avançado na transição dos combustíveis fósseis na 29ª edição (realizada em Baku, no Azerbaijão, em 2024). Se chegarmos a 2050 com um aumento de 3°C, o planeta vai torrar, e fósseis seremos nós.

Em vez de contemporânea, arte utilitária

Referência em curadoria e crítica de arte, Paulo Herkenhoff pesquisa há décadas a produção de artistas de povos originários, e escreveu seu primeiro artigo sobre o tema na década de 1990, ao conhecer o amapaense Pituko Waiãpi, que era tetraplégico e pintava com a boca.

— Ele dizia que, quando pensava em português, não desenvolvia o trabalho. Ele era heideggeriano, porque ele realmente habitava a sua língua, e nietzschiano, pela vontade de poder com que superava as limitações físicas para criar — analisa Herkenhoff. — A partir desse interesse, consegui iniciar a coleção do MAR (Museu de Arte do Rio), começando com os Huni Kuin (do Acre) e depois expandindo para uma maior diversidade.

Para Ailton Krenak, a dificuldade do conceito de “arte indígena” está no fato de não haver uma separação entre o fazer artístico e a vida cotidiana entre os povos originários.

— Em vez de arte contemporânea eu chamaria de utilitária. Se uma mulher faz uma tigela de cerâmica, como se fazia há 2 mil anos, é porque ela precisa daquele artefato. Ela não quer fazer uma obra-prima — comenta o escritor. — As pessoas ditas índios, indígenas, nativos, nunca foram integrados à vida brasileira. Então, os seus fazeres também nunca se integraram. Dizer que existe uma arte indígena contemporânea é alinhar o pensamento indígena ao pensamento branco europeu, colonial. Os brancos são muito gentis, mas gostam de engolir os outros.

Herkenhoff conceitua o contemporâneo como “algo importante para o seu tempo”:

— É um termo do mercado que divide a produção de arte em várias categorias. E existe também o signo material da arte, que fala do seu tempo. Que pode ser a tinta a óleo, mas também o carvão, para uma pintura rupestre, ou o urucum e o jenipapo, no caso de uma pintura corporal. É preciso ter um olhar mais abrangente.

Krenak lembra uma frase do antropólogo Darcy Ribeiro, sobre admirar a “mania de beleza” dos indígenas: “Se faz um balaio, uma canoa, tem que sair perfeito”.

— O Darcy contava uma história de uma mulher carajá que fazia bonecas magníficas, mas que eram quebradas pela filha na sequência. Quando perguntou, irritado, por que a menina fazia aquilo, a mãe respondeu: “Porque ela ainda não gostou” — conta o escritor. — Eu não acho que uma boneca carajá fica atrás em beleza de uma obra grega ou troiana. Acho que a gente deveria ter a visão da menina na arte e quebrar o que ainda não está bom. (Colaborou Vitor Marroni)

Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2025/11/05/ailton-krenak-divide-com-paulo-herkenhoff-curadoria-de-mostra-as-vesperas-da-cop30-nao-somos-um-recurso-somos-pessoas-diz-escritor.ghtml

05/11/2025