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ABL na mídia - Matinal - O Cinema Novo que conheci: Cacá, Nelson e Coutinho

 

Embora o texto de Bloom aponte para grandes poetas que influenciaram outros grandes poetas, não é difícil transferir a lógica para prosadores e cineastas (que nem precisam ser tão gigantescos assim): quando gostamos do trabalho artístico de alguém, é inevitável que haja uma influência em nosso próprio trabalho. Às vezes sutil, às vezes decisiva. Para Bloom, há um momento em que um autor decidido a ser original precisa abandonar essa influência, e para isso deve “matar” seu pai espiritual, embora a admiração continue.

Essa, com certeza, foi uma simplificação bem precária da obra de Bloom. Peço perdão. Serve apenas para iniciar esse depoimento sobre Cacá Diegues, que nos deixou na semana passada. E, seguindo uma inevitável cadeia de pensamentos, vou incluir dois outros cineastas que influenciaram minha geração: Nelson Pereira dos Santos e Eduardo Coutinho. O que eles têm em comum? Primeiro: já partiram. Segundo: fazem parte do Cinema Novo, o mais importante movimento estético e político da história do cinema brasileiro. Terceiro: eu conversei com eles. Sim, tive essa sorte. Não foram meus amigos, não tive longas discussões intelectuais com eles, não posso dizer que os conheci a fundo. Simplesmente estive perto deles por algum tempo e conversamos.

Nelson Pereira e Eduardo Coutinho, por conta de breves estadias em Porto Alegre para comentar suas obras, jantaram lá em casa. Lembro de Nelson Pereira como um homem magro, que falava pausadamente e que parecia cansado. Me lembrou Átila Iório, o Fabiano de “Vidas Secas” (1963), o primeiro filme brasileiro que me impactou intelectualmente, graças a uma cópia em 16mm alugada por meus irmãos mais velhos e exibida lá em casa no projetor do meu pai.

Ver na tela aquele Brasil – nordestino, pobre, esfarelando-se na seca implacável – era algo muito revolucionário naqueles tempos. Grande Nelson. Gigantesco Nelson. E, no entanto, parecia tão frágil naquela noite. Por mais que quiséssemos falar de seus filmes, ele preferia falar de coisas trivais e, no máximo, contar algo dos bastidores das filmagens de “Como era gostoso o meu francês” (1970).

Eduardo Coutinho, ao contrário, foi bem comunicativo, pelo menos nos intervalos das tragadas em seus cigarros. Encheu três cinzeiros. Pensei que era um homem bem diferente de sua “persona-entrevistador”, sempre com a voz baixa e mais disposta a ouvir que falar.

Seu filme mais influente, historicamente falando, é “Cabra marcado para morrer” (1984), mas, como nesse caso opto por um desvio histórico, destaco “Santo forte” (1999) e “Edifício Master” (2002), especialmente o segundo, obra-prima em que um outro Brasil aparece – desta vez carioca, classe-média, esfarelando-se num prédio gigantesco que luta para sobreviver em meio à desumanização implacável dos aglomerados urbanos. Grande Coutinho. Gigantesco Coutinho. E, contudo, tão disposto a compartilhar sua visão de mundo e sua coragem cinemanovista em meio à fumaça de seus cigarros.

Cacá não jantou lá em casa. Estivemos juntos no júri do Fica (Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental), que acontecia na cidade de Goiás (ou Goiás Velho, como é mais conhecida). Foram alguns dias de convivência com esse outro gigante, que era o presidente do júri e, obviamente, poderia ditar a premiação do festival, que todos nós, meros mortais, assinaríamos sem pestanejar.

Nada disso. Ele ouviu a todos, falou de suas dúvidas, propôs critérios e dirigiu votações. Senti, naqueles momentos, uma grande inveja do meu amigo Nelson Nadotti, que, ainda bem jovem, escreveu o roteiro de “Quilombo” (1984) ao lado de Cacá e trabalhou nas filmagens como assistente de direção.

O que eu não daria para estar perto de Cacá nas filmagens de “Chuvas de Verão” (1977) e vê-lo dirigir Jofre Soares e Miriam Pires, em especial na revolucionária cena de sexo entre dois idosos que transam calorosamente, recusando-se a aceitar que seus desejos e sua humanidade se esfarelem frente a um mundo dominado por jovens insensíveis que, coisa cada vez mais comum, estão dispostos a subir nos cadáveres dos mais velhos para subir na vida. Grande Cacá. Gigantesco Cacá. No entanto, era um homem que abraçava as lutas do cinema brasileiro com ardor juvenil e queria construir um caminho mais inclusivo para seus colegas de profissão.

Interessante notar que estes três cineastas cruzaram seus caminhos algumas vezes. Cacá Diegues conta que visitou Nelson Pereira dos Santos quando era um adolescente e aspirante a cineasta.

Com certeza foi um encontro importante. Coutinho, em início de carreia, foi gerente de produção do longa-metragem “Cinco Vezes Favela” (1962), que tem um dos episódios dirigidos por Cacá Diegues. Como eles estão próximos, em termos geracionais, o espírito colaborativo foi mais importante que a influência. No início do Cinema Novo, os orçamentos eram muito baixos, quase amadores, e, sem uma equipe colaborativa, seria impossível fazer filmes. Era exatamente assim que funcionou, por alguns anos, no início da década de 1980, a produção na bitola super-8 em Porto Alegre.

Não é coincidência que, guardadas as proporções, fôssemos buscar inspiração no Cinema Novo, e não na Chanchada, e não nos filmes da Vera Cruz, esquemas de produção muito mais endinheirados e profissionais.

Não é coincidência que Cacá, Coutinho e Nelson Pereira tenham cruzado, por breves momentos, a trajetória da minha vida. Confesso que não houve angústia nessa influência, nem precisei “matar” estes pais espirituais de uma geração anterior. Para mim, e ouso dizer que para o cinema gaúcho, esse trio mostrou o caminho, tanto na política, quanto na estética. E, é claro, depois esse caminho foi se bifurcando e apresentando sensíveis diferenças. Tomamos outros atalhos e recebemos outras influências. Mas essa é outra história.

Matéria na íntegra: https://www.matinaljornalismo.com.br/parentese/ensaio-parentese/o-cinema-novo-que-conheci-caca-nelson-e-coutinho/

19/02/2025