O jogo e a aposta estão inseridos de tal forma na cultura brasileira, inclusive por influência estrangeira, que qualquer análise sobre o fato exige algumas reflexões sociais. O leitor não se deixe enganar pelo título, mas também não o ignore. Se está acompanhando o texto, foi a curiosidade por uma visão de Machado de Assis jogando a antiga representação do tigrinho, quando o animal virava bicho no jogo de todos conhecido.
Em seu delicioso "Anedotário Geral da Academia Brasileira", Josué Montello destina a uma das melhores anedotas o título de "O Jogo do Bicho". O texto recorda que por mais de uma vez, em contos, crônicas e romances, Machado de Assis se referiu às loterias, em cujos bilhetes se enxergava o emblema da luta de Jacó com o anjo, supondo-se, neste sentido, que o Bruxo do Cosme Velho, de maneira recôndita, como era de seu temperamento, "teimou em comprar o seu gasparinho, certo de que, conforme escreveu em Relíquias de Casa Velha - 'a loteria é mulher, pode acabar cedendo um dia'". Tratava-se do século 19.
De fato, não consta que o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras tenha apostado no "bicho", e sim na loteria oficial, fazendo a conhecida "fezinha", mas prossegue Josué Montelo, dizendo: "Se o presidente da Academia se aventurou à caçada da sorte grande, não é de estranhar que Guimarães Passos, poeta menor e boêmio, se dedicasse a uma caçada mais modesta, teimando em jogar no bicho". Trata-se, como visto, do poeta alagoano Sebastião Cícero dos Guimarães Passos (1867-1909), fundador da cadeira 26 da Academia Brasileira de Letras, e sobre quem João do Rio disse, ao sucedê-lo na mesma cadeira, que gostava de "viver pelas reuniões boêmias, e tendo como única profissão a de fazer versos e como único ideal o de continuar a fazer versos".
O leitor poderá dizer, então, que o título mais adequado para este texto seria "Guimarães Passos e a CPI das BETS", e não "Machado de Assis e a CPI das BETS". Sim e não. No primeiro caso, de fato, poderia ser correta a troca de Machado por Passos, mas isso faria referência ao aspecto sobre possíveis comparações entre o bicho e as "Bets". Contudo, a referida comparação não seria de todo adequada, e quem melhor que Machado de Assis para fazer um trocadilho irônico, como daquela vez em que fez uma de suas "mágicas linguísticas" no conto "A Sereníssima República", ao falar sobre "Caneca e Nebraska", o sobre o charuto, ao final desse artigo.
Voltemos à anedota contada por Josué Montello. Guimarães Passos era assíduo jogador do bicho, em busca não da sorte grande, mas do prêmio pequeno, modesto e "que daria para um mês ou dois de vida generosa". Certa vez teria ido ao morro buscar uma camisa na casa da lavadeira, e esta, ao vê-lo, impôs-lhe silêncio, com o dedo na boca: "- Fale baixo" - sussurrou, e, apontando para o interior da casa, disse: "- Seu José está sonhando com o bicho que vai dar". Conta-se que nesse instante o semblante do poeta desanuviou-se, deixando a irritação de lado. Puxou uma cadeira, sentando-se para esperar a camisa e o palpite.
Em outra oportunidade, entrando na Livraria Garnier para pedir 5 tostões ao filólogo João Ribeiro para jogar na cabra. Disse: "- É matemático. Hoje, com toda certeza dá cabra. E seu "pressentimento matemático" estava certo. Ao cair da tarde trazia o dinheiro do prêmio: "- Eu não lhe disse que dava cabra?".
Tempos depois, ainda segundo Josué Montello, por ocasião do enterro de José do Patrocínio, um velho amigo e companheiro de roda boêmia, o poeta fez questão de ser o último a deixar o campo-santo.
Ali, por sua vez, quem testemunhou o fato foi Olegário Mariano, que o havia acompanhado e ficou a esperá-lo no portão principal do cemitério, e vendo que o poeta não regressava, voltou para procurá-lo, encontrando o amigo junto à sepultura de José do Patrocínio, sussurrando ao amigo falecido: " - Zeca, eu trabalhei anos e anos no teu jornal e só de longe em longe te lembraste de me pagar. Agora, meu filho, tem paciência. Trata de me dar uma ajuda. Eu tomei nota do número de tua sepultura e vou jogar nesse milhar. Porque eu ando apertado. Dá um jeito de eu ganhar". No dia seguinte, apostou alto, afirma Josué Montello, e parece que ganhou!
Pois bem, a CPI das bets! Sabemos que há uma porção de temas interligados, alguns comprovados e outros por mera suspeita, como lavagem de dinheiro, crime organizado, tráfico de influência e manipulação de resultados nos esportes, questões que atingem a cultura política e também a cultura jurídica, se bem compreendem o que isso significa, não apenas a já alegórica afirmação de "jurisprudência lotérica" ou "produção legislativa do milhar", sem esquecermos que brasileiros apostam e, como visto, muitas vezes perdem tudo o que tinham e o que não tinham.
Aqui, uma vez mais, é Machado de Assis o protagonista das observações. As recentes imagens transmitidas pela tv e pelas redes sociais mostram investigados e investigadores sorrindo e brincando, mesmo que o cenário parecesse uma casa em chamas. A metáfora é inexata. Talvez fossem bombardeios e explosões que destroem hospitais e populações inteiras de civis, especialmente crianças e mulheres vitimadas.
Sobre os sorridentes, quem sabe estivessem, vai saber, pedindo licença para acender um charuto na chama que lambe a si mesma sobre o túmulo do cadáver que aparece ao fundo, e bem sabemos que a prudência exige que não deixemos de recordar a velha cena do bêbado personagem machadiano que, passando pela rua, avista uma casa em chamas, percebendo sua dona a chorar, quando indaga se a casa seria propriedade da mulher ("um triste molambo de mulher", diz Machado) ouvindo, como resposta: "- É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo", quando o ébrio então pede licença para acender seu charuto nas chamas que consomem a casa, permitindo que Machado nos diga, pela boca da personagem, que "não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias alheias", como pode ser lido no capítulo CXVII, em Quincas Borba.
É Machado de Assis, apostador da loteria oficial e, portanto, conhecedor das raízes culturais brasileiras, inclusive amigo de jogadores viciados na adrenalina da aposta, quem pede seriedade no trato sobre o tema das bets, em termos de investigação e regulamentação, e é ele quem apela: percebamos que muitas vezes estamos coletivamente acendendo um charuto nas misérias alheias.
Matéria na íntegra: https://www.migalhas.com.br/depeso/433619/machado-de-assis-e-a-cpi-das-bets
01/07/2025