"Parece que a gente resolveu fazer uma entrevista sobre o fim do mundo, não foi?”, diz um bem-humorado Ailton Krenak, 71 anos, quase ao final da conversa com Época NEGÓCIOS. O líder indígena, ativista, ambientalista e escritor não está totalmente errado. Ao longo da longa e abrangente entrevista, não faltaram temas como fim das reservas naturais da Terra, temperaturas capazes de destruir a humanidade e guerras se espalhando pelo planeta.
Mas houve também momentos mais tranquilos, especialmente quando o autor de livros como Ideias para Adiar o Fim do Mundo e Futuro Ancestral falou das novas gerações. “Nós não vamos conseguir mudar nada, mas elas podem. O que precisamos fazer é trabalhar para que as novas gerações não repitam nossos cacoetes, nossos defeitos e nossos vícios.” Entre os maus hábitos, diz o único indígena eleito para ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL), está o costume de se viciar em tecnologia e perder totalmente o contato com a realidade. Ou endeusar os magnatas tech e esquecer que eles “só trabalham em benefício próprio”.
Para um dos maiores pensadores do Brasil, está na hora de fazer uma escolha por uma vida conectada – não com aparelhos, mas sim com a Terra. “Não vai ser fácil, porque terá que ser uma decisão profunda”, diz. Mas vai valer a pena.
ÉPOCA NEGÓCIOS Eu queria falar sobre o futuro. Você tem um livro chamado Futuro Ancestral. O que quis dizer com isso?
AILTON KRENAK Nesse livro, eu digo que a maneira como nós lidamos com a nossa vida no planeta é centrada no ser humano. Ela não leva em conta a existência de bilhões de outros organismos, e do próprio planeta. A Terra é um organismo vivo e tem uma cultura ancestral. É dessa ancestralidade que se trata. Os humanos que estragaram o planeta não podem ter a pretensão de consertá-lo. Se a gente pensar em lidar com as mudanças climáticas com a mesma ferramenta que a gente usou para comer o mundo, não vai dar certo. A gente tem que buscar outras referências. Cultura ancestral não significa voltar ao passado, e sim se informar sobre as experiências dos nossos antepassados e de nós mesmos, em momentos passados.
NEGÓCIOS Considera possível sair dessa definição de humanidade como algo centrado no ser humano?
KRENAK Não enquanto prevalecer esta mesma geração, que está viciada em mercadoria e consumo. Mas nós podemos trabalhar para que as novas gerações não repitam os nossos cacoetes, os nossos defeitos e os nossos vícios. Se a gente conseguir fazer isso, podemos sair desse pensamento antropocêntrico que atropelou tudo e deixou o mundo totalmente caótico, tanto do ponto de vista ambiental, sistêmico, quanto do ponto de vista político, e transitar para uma cultura biocêntrica, na qual todos os seres vivos têm valor.
Nós tivemos agora há pouco no Azerbaijão uma cúpula na qual 148 governos do mundo inteiro [a COP 29] falaram sobre pobreza e fome no mundo. Mas não houve um consenso, porque ninguém parece determinado a renunciar aos seus privilégios em favor da proteção do planeta. Nós estamos, na verdade, na iminência de uma guerra global. Se você prestar atenção ao que está acontecendo na Europa agora, verá que a Alemanha está convocando os jovens para se alistarem para um eventual conflito. Chegamos nesse ponto. A gente tem que ser realista. Se você está vendo que o mundo está em guerra, não dá para ficar fazendo uma promessa otimista de futuro. Isso seria alienação ou cinismo.
NEGÓCIOS Você falou em uma geração viciada em mercadoria e consumo. Qual é o papel das grandes corporações nessa desconexão entre o ser humano e a Terra?
KRENAK As corporações estão tentando transformar a gente em máquinas. Criaram essa história de cultura digital, e o resultado é que todo mundo está plasmado em uma tela o tempo inteiro, vivendo em outros mundos. Antigamente a gente ia se encontrar e conversar pessoalmente. Agora usamos as ferramentas criadas pelas corporações. E achamos bom. É como se fosse uma droga. Vamos consumindo, gostando e ficando. Mas a gente pode sair disso. Só que precisa ser uma decisão profunda, uma escolha mesmo. Não podemos ficar o tempo inteiro dizendo que as corporações estão transformando a vida da gente. Elas fazem isso porque a gente permite, porque não fazemos o que é necessário para sair disso. Eu estou tentando cancelar minha assinatura no Facebook já tem mais de três semanas. E estou tendo que usar todas as minhas competências para sair daquele aplicativo. Só para te dar um exemplo. Se você quiser pular desse trem, vai ter que fazer um esforço.
NEGÓCIOS Mas a pessoa pode questionar: eu preciso disso para o trabalho, para a família. Como me desconectar quando a vida inteira é conectada?
KRENAK O emprego é uma situação com a qual você concorda temporariamente para que possa realizar outros desejos seus. Que tal você buscar os seus verdadeiros desejos e esquecer essas desculpas de corporação, emprego, conexão? Caso contrário, fica parecendo uma conversa de viciado, sempre volta ao mesmo lugar, entendeu? É mais ou menos como se fosse uma perda da consciência. É terrível. Mas é claro que não é tudo preto no branco. Ninguém tem que ir morar no meio do mato. Mas você precisa buscar outras tonalidades da vida. E daí não ficará tão abismada com a tragédia corporativa, com a fúria capitalista, com a doença do consumismo, essas coisas todas. A gente pode se livrar delas e viver melhor.
NEGÓCIOS Dá para fazer alguma previsão positiva para 2025?
KRENAK Acho difícil, quando estou vendo países inteiros sendo bombardeados. O que eu posso dizer é: “O futuro é agora. Não é no mês que vem, no ano que vem ou em 2030. É agora”. Esse é o máximo de otimismo a que a gente pode se propor. É olhar a vida de frente. E daí interromper a transmissão das ideias que sucessivas gerações produziram: esse abismo cognitivo, essa falta de amor e de cuidado com a vida. Um bom exemplo do que é possível fazer é o que aconteceu na pandemia. Se não tivéssemos bloqueado a covid, estaríamos mortos. Mas nós conseguimos. Para mim, essa é uma mensagem de otimismo. A gente escapou da pandemia, agora precisamos ser capazes de escapar da distopia.
NEGÓCIOS Nesse processo, as empresas ajudam ou atrapalham?
KRENAK Antes de responder essa pergunta, eu acho importante lembrar que empresas são pessoas. Elas se empoderam com o capital e querem falar em nome dos outros, mas geralmente são indivíduos, e a maioria deles são imbecis como o [Jeff] Bezos e o Elon Musk. Esses magnatas, esses bilionários, são eles que determinam o que uma companhia é. Então não existe uma coisa chamada empresa: é só uma fachada para as pessoas atuarem por meio das corporações. A ideia de que as companhias vão cooperar para a gente criar um ambiente melhor no planeta Terra é falsa. Porque as empresas faturam vendendo o corpo da Terra. A maior parte das atividades, principalmente aquelas atividades de vulto, são feitas de extrativismo. Elas estão extraindo do corpo da terra o petróleo, o alimento, a roupa, os óculos que você usa, a calça que eu uso. Quem mobiliza esses recursos são as empresas. Deveríamos parar de dar esse status que damos a elas. Porque a gente não sabe o que acontece nos bastidores. Se soubéssemos como elas operam mesmo, não ia ficar o tempo inteiro invocando entidades que não se importam conosco.
NEGÓCIOS Invocando entidades? Você se refere aos donos das empresas?
KRENAK Sim, porque chega a ser uma religião, entende? Essa reverência pelos bilionários. Como eu disse, nós não temos como pensar em uma chave que vai mudar esse modo errado de habitar o mundo. Mas nós precisamos pensar em como não transmitir para as novas gerações os mesmos cacoetes que carregamos desde o século 19. Por exemplo, perpetuar a ideia de uma humanidade planetária com o mesmo objetivo é uma proposta totalitária, porque prega que toda a humanidade deve seguir o mesmo modelo dos países ricos. Em vez disso, a gente deveria reconhecer a diversidade, admitir que cada povo, em cada continente, em cada região do mundo, pode se organizar da melhor maneira possível para viver. E não submeter todos os povos a uma mesma lógica. Eu não quero ser igual. E não quero ficar me culpando porque não sou igual a eles. “Olha, eles são incríveis. Eles fazem robôs. Eles fazem máquinas voadoras. Eles vão para o céu.” Eu não quero ter esse tipo de concorrência com ninguém. Quer ir? Ótimo, vai nessa. Quer inventar robô que faz piruetas? OK, mas fica na sua.
Se nós pudéssemos reformar alguma coisa de verdade nessa velha humanidade, o mais importante seria reconhecer o direito de cada povo de ter a sua vida sem ser submetido ao terror totalitário. Eu falo isso a partir de uma experiência milenar. Os povos originários que viviam aqui no continente americano não tinham Estado. Eles não tinham uma superestrutura. Eles passavam suas vidas pescando, caçando, vivendo. Mesmo quando eles tinham um conflito, eram conflitos locais, regionais. Eles nunca aniquilaram ninguém. Eles nem tinham meios para aniquilar o outro. Seria muito bom que a gente se desarmasse e ninguém tivesse meios para aniquilar ninguém.
NEGÓCIOS Como você vê a situação dos indígenas hoje no Brasil?
KRENAK Eu diria que a guerra contra os povos originários continua. E parece ter se espalhado para outros campos. Agora não precisamos apenas garantir a sobrevivência do povo indígena, mas lutar para que o mundo viva em paz. Porque agora a gente tem guerras em escala global. Talvez essas guerras também façam parte dessa desconexão entre o homem e o planeta. E a reação da Terra é uma irritação com o nosso modo errado de viver.
NEGÓCIOS Quando fala em “reação da Terra”, está se referindo a todos os desastres ambientais dos últimos tempos?
KRENAK Sim. Eu creio que estamos sendo expulsos do planeta. A Terra está dizendo: “Você não vai morar mais aqui não. Vá embora”. Tempestade, furacão, inundação, violência, guerras... é tudo uma coisa só. É sistêmico.
NEGÓCIOS E como podemos quebrar esse ciclo?
KRENAK Quem dera eu tivesse uma chave para mudar essa narrativa. Pois o planeta Terra não suporta mais a nossa presença aqui, e está a ponto de nos cuspir ou vomitar. O que eu acho muito bom. Ele vai ficar muito melhor sem a gente. Bilhões de outras espécies não humanas vão agradecer. Vai amanhecer um dia pós-tudo, com os passarinhos cantando com um timbre diferente, de uma maneira maravilhosa. É só lembrar que, na pandemia, por um breve período, os humanos botaram o pé no freio e os golfinhos festejaram, as baleias dançaram, a água dos rios e dos oceanos ficou mais bonita. Tudo ficou mais bonito quando a gente parou de fazer nossa avassaladora bagunça. E tudo isso porque a gente ficou quieto dentro de casa por alguns meses. Imagina se a gente tivesse desaparecido?
NEGÓCIOS Qual a sua expectativa para a COP 30, aqui no Brasil?
KRENAK As minhas expectativas sobre as COPs se esvaíram na década de 1990. O Brasil fez a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente, a Eco 92, que foi uma espécie de COP zero. Depois nós tivemos uma série de conferências, e agora vamos ter a 30. Ficamos viciados. E a cada conferência desmanchamos os compromissos da anterior.
O presidente do Azerbaijão abriu a COP 29 dizendo: “O petróleo é um presente de Deus”. [A frase foi dita pelo presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, no dia 12 de novembro de 2024, data da abertura da cúpula.] Uma conferência do clima que abre com um sujeito falando uma coisa dessas é um prejuízo para quem viajou para lá procurando uma discussão séria. Agora o Brasil vai receber uma conferência. Tem muita gente achando que o fato de ela acontecer na Amazônia vai sensibilizar os governos. Eu não acredito, não. Eu acho que os governos não se sensibilizam com nada, a não ser grana e arma. Os Estados Unidos já disseram que vão continuar explorando petróleo em qualquer lugar onde tiver. Quando eles exaurirem todas as reservas, a Terra vai estar com temperatura tão alta que talvez a gente não possa mais sair de casa.
NEGÓCIOS Acredita mesmo nisso?
KRENAK Olha isso, parece que a gente decidiu fazer uma entrevista sobre o fim do mundo, não foi? Mas veja, o otimismo não está fora das pessoas. Isso que a gente chama de otimismo não deveria depender das condições externas. Por exemplo, quando houve um cessar-fogo entre Israel e Líbano, no final de novembro, milhares de pessoas voltaram para lá, correndo para aquele lugar destruído. E agradeceram a Deus por poder voltar para casa. Isso é otimismo.
29/01/2025