CONTRA O TERRORISMO CULTURAL
Sr. Geraldo França de Lima,
quando, envergando o uniforme acadêmico, cruzamos pela primeira vez o umbral desta Instituição, como é o vosso caso, deixamos de ser poetas, romancistas, ensaístas, historiadores, juristas, médicos, cientistas, professores, jornalistas, ou diplomatas, e nos transformamos em Acadêmicos.
Passamos a pertencer a uma nova e misteriosa casta, objeto do respeito longínquo de muitos, da tolerância de vários, e até do alvoroço de certas penas anedóticas e bocas predatórias, portadoras da zombaria que nos diverte e até reclamamos, pois é o sal grosso que tempera a nossa dieta.
Nesta Casa, sob o patrocínio ao mesmo tempo austero e malicioso do grande céptico, que tinha a obsessão do adultério e dos braços nus das mulheres, nenhum de nós se sente sozinho.
Semanalmente, tornamos verdade o rito do convívio humano. Dir-se-ia que a nossa condição nos incita a amar mais a vida e a apegar-nos aos dias que passam.
Vindes de uma comunidade, a literária, cujo teor pacífico e solitário só ilude os olhares singelos ou apressados.
De verdade, ela se divide em grupos e hierarquias, procede a singulares alquimias, e estabelece antagonismos, propaga licenças e interdições, e atrai as rotulações fervorosas, num processo em que o selo estético é sempre ferido pela tinta forte do carimbo político e moral.
Entre as copiosas classificações que aspiram a caracterizar a comunidade da criação literária, figura a que divide os escritores em letrados e inocentes. Os primeiros refletem em suas obras as erudições que atraem a reverência pasmada dos leitores mais crédulos e bebem sequiosamente nos livros como se estivessem bebendo na fonte da vida. Os segundos se apresentam sustentados pelo mistério da vocação efusiva e o tirocínio de uma inspiração que é antes uma respiração ou uma transpiração, pois nenhum anjo nos dita um verso ou um capítulo de romance. Somos todos frutos de nós mesmos, de nosso trajeto e limites.
Nesta divisão incerta ou caprichosa como todas, e que atende à propensão humana de rotular para reconhecer ou negar, pertenceis à linhagem dos inocentes.
E foi a vossa inocência que vos trouxe até nós.
Em 1961, num tempo de acirradas experimentações literárias, e no qual mais de uma originalidade tonitruante escondia a visita noturna aos quintais alheios, o vosso romance de estreia, Serras Azuis, surgia no primeiro horizonte da Literatura Brasileira como um sopro matinal.
Essa aragem fresca e inesperada impunha, mais uma vez, a noção do romance-romance, ostentando a aliança da imaginação mais viva com a observação mais atenta e soldando a experiência pessoal com uma formação literária forjada nos estaleiros mais preclaros.
Assim, quando muitos buscavam aflitamente os seus caminhos, já surgíeis como um transeunte desembaraçado. Sabíeis em que chão pisáveis: o chão das Minas Gerais. Eram as ruas e praças e árvores de Araguari, onde nascestes, e de Barbacena, onde situastes o vosso primeiro romance. As portas e janelas das casas se abriam desde a vossa infância, e em cada uma delas estava postada uma personagem vossa. O que a vida costuma oferecer de graça aos poetas e romancistas se apressava a ser colhido pelo vosso olhar e a ser recebido pela memória criadora que o transmuda em novos seres e em novas paisagens.
Pela vida inteira, no longo caminho que vos trouxe até aqui – até esta usina de sonhos que hoje vos recebe – haveríeis de refletir, em vossos romances, o Brasil das pequenas e médias cidades, dos batizados e aniversários, das festas religiosas rajadas de foguetes, dos namoros e mexeriquices no largo da matriz, dos amores e dos grandes ódios escondidos; das farmácias sabiamente apetrechadas para aviar receitas em Latim; dos cartórios que promulgam os direitos e privilégios das famílias; dos funcionários de baixo escalão que, em seus cartões de visita, se proclamam portentosamente membros do governo federal; da vida que passa tão demoradamente que a sua lentidão parece um exagero de relógios ociosos; das facções políticas barbacênicas e irreconciliáveis; das intrigas domésticas e das ambições eleitorais que fervilham nos chamados grotões ou burgos podres das Minas Gerais.
Deste Brasil distante e silencioso que só sabe falar nas urnas eleitorais, sois o romancista inequívoco.
A copiosidade do elemento documental engastado nesse Serras Azuis, que o vosso amigo Guimarães Rosa tanto louvava, não turva a nitidez e o movimento dos tipos humanos que nele transitam, nomeadamente a fauna política e eleitoral, dotada de uma astúcia convizinha da ferocidade. A escondida vida cruel das pequenas cidades mineiras – e, por extensão, de todo o Brasil – constitui o tema dominante de vossa obra, que se desata na proliferação fervilhante de personagens secundárias e enredos e incidentes entrecruzados.
Como todo romancista legítimo, sabeis que a vida se tece de fios sem conta. De livro para livro, o vosso poder de observação se vai detendo mais demoradamente no coração humano, e a análise dos sentimentos primordiais das almas e dos caprichos dos corpos sobrepuja a face pitoresca dos cenários. As sombras impiedosas que se reúnem em Brejo Alegre – o vosso segundo romance, desenrolado em vossa cidade natal – e se espraiam por toda a vossa obra desmentem a noção idílica da vida transcorrida longe das metrópoles.
É uma ilusão, e das grandes, pensar-se que as pequenas cidades são paraísos terrestres. Onde bata mais de um coração humano haverá de ser sempre lugar de desacordo e litígio. E mesmo onde só um coração esteja a bater, o desentendimento estará presente, na luta intestina do homem dividido em si mesmo e em si mesmo dilacerado.
Em Branca Bela, abordais, com peregrina delicadeza, um assunto bem mineiro, um velho segredo guardado entre montanhas: o caso do padre e da moça. Mas, ao contrário do poema de Carlos Drummond de Andrade, o vosso romance não é uma história de fuga e danação. Nele, o padre não foge com a moça. O drama transcorre no coração de uma humilde caixeira que, munida de um amor inconfessável, marcha da escuridão para o que muitos presumem ser a claridade do mundo e a luz dos céus. Parece-me a mim que, amigo de Georges Bernanos, a quem conhecestes em Barbacena, e cuja obra amais, recolhestes toques bernanosianos nesse romance admirável. O peito mais anônimo abriga um coração que arde como uma pira: e, ao romancista, cabe desvendar esse fogo encoberto, contar a história desse ardor ao mesmo tempo suportável e insuportável, no qual se asila o mistério da condição humana.
Em Jazigo dos Vivos, que narra a disputa familiar por um velho solar, mais se alarga a vossa inclinação para desenovelar o novelo das ambições e inclemências domésticas – e a sua nota final de melancolia é a mesma que vai ensombrecer O Nó Cego e A Pedra e a Pluma, com o seu emaranhado de conflitos e impossibilidades, e amores tornados inconstâncias e desilusões.
Sabeis, como romancista, descobrir um centro magnético na rotina da vida e nos passos desacertados dos pequenos destinos. Essa exploração da zona viva da vida, na qual a solidão e a convivência se batalham, prossegue em A Herança de Adão e A Janela e o Morro, os dois romances em que, evadido do chão seminal das Minas Gerais, enveredastes pelos ambientes e paisagens do Rio de Janeiro. Mas, em vosso último romance, Aquele Natal, o leitor logo registra o retorno à terra antiga e segura que é o vosso domínio familiar.
Quando fostes eleito para esta Academia, Rubem Braga me ponderou, surpreso, que o vosso nome não figurava nos dicionários de Literatura por ele compulsados.
Tenho para mim que um escritor haverá de preferir ser um Acadêmico a ser um verbete, pois aqui o aguardam semanalmente o calor dos companheiros, um convívio intelectual de muito fruto, o chá propício às confidências rejuvenescedoras e ainda o jeton generosamente engordado pela imaginação perdulária da opinião pública.
No vosso caso, a Academia se antecipou aos dicionários de Literatura, reconhecendo o autor de Serras Azuis e Brejo Alegre, Branca Bela e Jazigo dos Vivos, antes dos repórteres de setor e dos pedagogos filauciosos.
É força aceitar a evidência de que a vossa ficção, embora guarnecida de tantos aplausos e apreços, tem esparzido em torno dela silêncios e exclusões, o que nos remete a uma reflexão sobre o ofício de escrever na época que respiramos.
Uma profunda transformação ocorreu no conceito e na prática da Poesia e da Literatura no nosso tempo.
No século XIX, ambas representavam, antes de tudo, a fidelidade a um ofício e o reconhecimento do poder da retórica para celebrar a existência do mundo. Mesmo os escritores e poetas malditos acreditavam na Poesia e na Literatura para exprimir a sua maldição.
Sabiam que elas constituíam, unidas, o caminho real para a afirmação de suas diferenças e a difusão de suas revoltas.
Essa confiança no poder da Literatura não só para mudar destinos individuais como também para projetar, pela linguagem, novas e convincentes imagens do mundo e do tempo, foi danificada pelos sucessivos movimentos que, a partir do Surrealismo, do Dadaísmo e de tantas outras experimentações e aventuras, converteram a Poesia e a Literatura num vasto campo de interdições e repulsas.
O não substituiu o sim. A recusa tomou o lugar da aceitação. A má consciência enxotou a inocência criadora. A dúvida sucedeu a certeza. O espaço da permanência foi ocupado pela sucessão veloz das contestações e rebeldias. A desestruturação linguística e ficcional se converteu numa nova estrutura.
Nesse cenário, surgiram os prosadores que se afervoram em expurgar da Prosa os seus elementos retóricos – como se estes fossem intrusos e não alicerces e fundamentos – e os poetas nutridos da presunção de que a ignorância das leis que regem a composição e a organização do Poema os tornará livres e poderosos.
Um verdadeiro terrorismo cultural, assemelhado ao terrorismo político, assenhoreou-se dos arraiais estéticos do Ocidente e, com o respeitoso atraso de sempre, repercutiu em nosso País, especialmente depois que as generosas traduções espanholas asseguraram aos plumitivos e aos professores das universidades as informações transformadoras, vindas dos grandes centros de criação estética.
No sistema de informação jornalística à transmissão pedagógica das criações culturais, estende-se esse terrorismo empenhado em só permitir a tramitação de um único tipo de romance ou poema e em intimidar, pelo silêncio, as vozes da diferença – como se a criação literária não fosse fundamentalmente o reino da diversidade e o território de um conflito interminável, no qual o estético e o psicológico se unem em misteriosa simbiose.
No Romance, a intimidação do terror se aplica em enxotar a história, o argumento, a peripécia e em transformar a Ficção numa monótona proeza linguística que exclui as personagens, as situações, as imagens e os diálogos do mundo, sequestrando assim a dimensão ambiental e vivencial que é inseparável da dimensão estética e literária.
Os maiores inimigos da Literatura são os escritores, que a alvejam com os seus queixumes e insultos, como se ela fosse um suplício e não um prazer – o prazer de escrever e o prazer de ler – e procuram limitá-la, aprisioná-la e até caluniá-la.
Semanas atrás vi, num suplemento, um autor ser louvado, porque, em seu romance, não usava metáforas. Não creio que o responsável pelo louvor estapafúrdio soubesse o que é uma metáfora – já que estas se acham de tal modo entranhadas em nossa Linguagem coloquial e cotidiana, que seria impossível expungi-las do texto literário. Mas o episódio extravagante documenta o processo de uma espécie de literatura que se insurge contra a Literatura e de uma espécie de poesia que se insurge contra a Poesia.
Os inimigos figadais da Metáfora ignoram que ela, quando expulsa pela porta dos fundos, torna a entrar na morada literária pela porta da frente e se instala, plácida e triunfante, na sala de visitas.
O nosso reino, de poetas e escritores, sendo o reino da Língua e da Linguagem, do conúbio da regra com a transgressão, é o império das metáforas, das hipálages, dos hipérbatos, das anáforas, das epígrafes, das analogias, dos assíndetos, das epanalepses, das prosopopeias, das alegorias – de toda uma parafernália verbal e linguística que nos permite criar um mundo paralelo ao mundo existente: esse mundo guardado pelas bibliotecas, as quais nos advertem de que devemos ser os herdeiros de tudo e nos incitam a repelir as proibições sazonais e a aceitar o grande horizonte aberto de uma estética da totalidade.
A atitude mais salubre será aquela que se esquiva à intolerância e recusa a violência das exclusões sistemáticas – as quais refletem, na verdade, um novo conformismo e uma repetida indolência intelectual. Aqueles que, em suas torres e apostilas, se empenham em limitar a Arte e a Literatura, impondo-lhes fronteiras estreitas, são os geógrafos do nada. O país mais belo estará além dessas divisas irritadas. E será sempre o país dos poetas e romancistas, dos criadores literários, dos portadores do estandarte, dos que estão interessados não na verdade, mas na mentira e no sonho do mundo. É o universo de promessa cumprida, daqueles para os quais, segundo a lição de Henry James, nada é perdido.
Pertenceis, Sr. Geraldo França de Lima, a esta última e generosa família, sois um romancista. Sabeis que a legítima Teoria Literária não está homiziada nas escuras e, às vezes, irrespiráveis furnas pedagógicas e, sim, na grande e eterna clareira do Romance e do Poema.
São os poetas que nos ensinam a fazer poemas. São os romancistas que nos ensinam a fazer romances. A teoria mais límpida e nutriente é aquela de Goethe: “Toda teoria é cinzenta e verdes são os frutos da árvore dourada da vida.”
João Ribeiro, o procurador de muitas causas literárias que é um dos vossos antecessores na Cadeira 31, adverte em uma de suas reflexões estéticas: “É um grande faltar, esse da vida”. Desse mal sem remédio, não padece a vossa obra, nem a de vosso grande e querido antecessor.
Autor de uma das mais primas obras-primas do Romance Brasileiro, esse O Coronel e o Lobisomem que continuará sendo lido, amado e admirado enquanto existirem a nossa Língua e a nossa Pátria, José Cândido de Carvalho canalizou para a sua ficção o que de mais vivo e populaceiro há na vida. E ainda o que há de mais vivo na Linguagem, que atingiu, nele, e com ele, incomparável e sumarento cunho pessoal, efusivamente adestrado para que nos contasse, com tanta graça e inventividade, os desconcertos de uma arraia-miúda ora cômica e ora patética, e pintasse, evocadoramente, as paisagens e cenas de seu lugar de nascimento.
Não encontro, no suntuoso arsenal da Ciência Literária, termos e referências que me habilitem a caracterizar a língua e o estilo de José Cândido de Carvalho, o que me obriga a compará-los ao sabor e ao frescor das frutas do seu amado norte fluminense, às mangas e pitangas maduras.
O veio arcaizante que irriga a sápida oralidade de sua prosa e ainda o seu tributo à memória e ao passado aproximam-no singularmente dos mineiros e nordestinos. Dos mineiros atilados e comedidos e dos nordestinos com os seus corações de manteiga derretida.
Havia nesse visceral fluminense de Campos, que foi José Cândido de Carvalho, a ironia, a malícia e o cepticismo pragmático dos mineiros – e a estas qualidades se ajuntava a doçura nordestina de quem nasceu e se criou numa zona de canaviais e, menino, se lambuzou de muito açúcar e comeu muita goiabada.
Não descabe, pois, apontar aqui as semelhanças que unem os aparentemente separados escritores mineiros e nordestinos. Esses dois componentes de nossa nacionalidade literária ostentam, como traços comuns e indeléveis, o uso eficaz de nossa Língua – um uso que é quase sempre uma secreta demonstração de amor –, a presença da memória e do passado e o sentimento do lugar nativo.
O Nordeste e as Minas Gerais representam o Brasil velho e até arcaico – aquele e este Brasil que soube guardar o idioma do Renascimento, a língua dos bufarinheiros e dos naufrágios, dos marinheiros e das tempestades, dos mercadores e das mulheres de vida airada, dos frades e almocreves, dos escrivães e das descobertas afortunadas. E é a administração desse patrimônio antiquíssimo, tornado mais doce e sedutor e vigoroso e inventivo em uma nova terra e sob um novo céu, que rege as criações estilísticas de tantíssimos nordestinos e mineiros – poetas e prosadores da Língua e da memória e portadores de uma experiência pessoal e hereditária que os leva a unir o passado e o presente num mesmo e só horizonte.
Os vossos romances seguem nessa linha irrompível.
Sabeis aliciar o leitor com uma prosa sempre atravessada de pequenas seduções que reclamam o olho avisado e o ouvido atento.
Sois um mineiro e com a vossa certidão montanhesa aumentais uma bancada que, desde a criação desta Academia, sempre se distinguiu pela sua numerosidade. Os mineiros que já ingressaram nesta Casa alcançam uma cifra respeitável: 23 acadêmicos, superando os 21 pernambucanos, os 21 paulistas e os 19 baianos. Só não se sobrepõem aos 40 cariocas que figuram em nosso quadro de sócios efetivos, e aos quais se acrescentam os 17 fluminenses.
Como todo mineiro, ufanai-vos de ter berço e raízes. A família Lima, a que pertenceis, aparece nas Minas Gerais quando Joaquim Teixeira de Lima assina, em 19 de julho de 1711, exatamente há 289 anos, a ata da fundação da Vila Real de Nossa Senhora da Conceição, no Arraial da Barra do Sabará. E vossa mineiridade mais se acentua porque sois descendente da virtuosa e aguerrida D. Josepha Carneiro de Mendonça, a heroína da Revolução de 1842, na Província de Minas.
Foi vosso avô paterno, o Tenente-Coronel Joaquim Simões de Lima, que conduziu ao Planalto Central a missão designada pelo alagoano Floriano Peixoto para fixar a localização da futura Capital Federal, o que se deu na manhã de 8 de agosto de 1892.
Outras peças fidedignas da provada e comprovada, sabida e consabida antiguidade de vosso nome e bom sangue poderiam ser aqui exaradas. Mas isto de desfolhar árvores genealógicas, especialmente quando estas são mineiras, é um nunca acabar. Prefiro perguntar, atraído pela vossa excelente origem: o que é ser mineiro? Qual será ou seria a sua qualidade mestra? A discrição, a sagacidade, a moderação, a astúcia política, o recato íntimo, a malícia, a habilidosa capacidade de transitar harmoniosamente no universo conflituoso da convivência? Ou a polidez, essa cordura que alguns atrevidos, invejosos da mitologia moral das Alterosas, ousam estampilhar de fingimento? Ou será esse desamor aos tributos, a impostos, que provocou a Inconfidência? Ou o sentimento de poupança, responsável pelo florescimento dos bancos mineiros de antigamente?
O nosso Confrade Otto Lara Resende observava-me, numa de nossas últimas reuniões, que cada vez mais vos assemelhais a Georges Bernanos, vosso amigo, e cujo retrato autografado adorna a vossa biblioteca habitada dos clássicos, que vos nutriram.
Nessa observação do vigoroso romancista de O Braço Direito, engasta-se o mistério da amizade. Os extremos se tocam. O furibundo e indignado convive com o afável e o conciliador.
Ousei ponderar a Otto Lara Resende que se a vossa fisionomia, por uma osmose da amizade, se afeiçoa à do grande escritor que, em anos apocalípticos, se exilou entre nós, o vosso rosto moral exibe outra parecença, assegurando-vos o direito de ser comparado a Alphonse Daudet, o Dickens francês, célebre pela sua bondade.
Não há fugir à verdade pura e lisa. A comunidade literária, sendo um microcosmo da sociedade humana, distingue-se pela variedade psicológica e moral dos seus habitantes. Há os orgulhosos, os petulantes, os vaidosos, os modestos, os biliosos, os dissimulados, os intolerantes, os agressivos – toda essa gradação que conhecestes nas comédias de Molière e nos romances de Balzac.
Nesta escala de luzes e sombras, será fácil reconhecer-vos pela vossa modéstia e irrepreensível sentimento da amizade, os semáforos morais que decerto contribuíram para que esta Casa abrisse meigamente para vós a sua porta, às vezes, cruel.
Não poderíeis ter escolhido melhor lugar para exercer o vosso pendor para a convivência espiritual e humana. Esta Academia é a enseada que abriga navios do mais vário calado.
É o ninho que atrai pássaros das plumagens mais surpreendentes. É o recinto dos antagonismos arrefecidos e dos afetos finais.
Sr. Geraldo França de Lima,
o vosso dia foi belo e proveitoso. E a noite veio com as suas constelações.
19/7/1990