LISBOA – Certos momentos revelam que tudo valeu a pena. Um deles foi no início da tarde de 17 de fevereiro no restaurante do Museu Calouste Gulbenkian, dos melhores do mundo. Éramos 7 para almoçar, incluindo a neta Antonia, 1 ano e 9 meses. Ela tinha gritado, animada, diante das pinturas do século 15. Sabe-se lá por quê. No dia seguinte, embarcaríamos para as Correntes d’Escritas, em Póvoa de Varzim, onde nasceu Eça de Queiroz e morou Camilo Castelo Branco. Este, o Balzac português, teve vida aventureira e deixou 88 volumes. Havia todos na Biblioteca de Araraquara, anos 50.
Tínhamos pedido um vinho, quando ouvimos um estrondo, chão e paredes pareceram mexer. Era o terremoto de 4,8 graus que deu o ar em Lisboa. Ninguém na sala se moveu. Não sabíamos o que fazer. Veio novo movimento e uma voz anunciou que era o terremoto, todos deviam se preparar para uma evacuação. Faltava-me isso na vida, um terremoto.
A calma sucedeu à excitação, terminamos nossos pratos, pedimos outro vinho, saímos. Lisboa continuava de pé. Mas eu me senti diferente. Viajei a vida toda, até passar por um terremoto aos 88 anos. Antonia, com 1 ano e 9 meses, já passou por um. Soube, desde cedo, que a vida é cheia deles, de várias magnitudes.
Dois dias depois, iniciadas as Correntes d’Escritas, 100 autores de língua portuguesa reunidos, eu estava no restaurante do Axis Hotel, em Póvoa de Varzim, na mesa do jornalista José Carlos de Vasconcelos, editor do Jornal de Letras.
Tínhamos pedido uma garrafa de vinho verde, quando Helder Macedo chegou. Poeta maior, ícone português. Agitei-me internamente. A conversa decorreu serena, bem-humorada, ele e eu temos apenas um ano de diferença. Talvez tenhamos sido os mais idosos dessas Correntes, ele é de 1935, eu de 1936. Mas literariamente, Helder, um mito, se distancia quilômetros de mim. Calmo, sorriso suave, bem-humorado. Duas horas, eu ali, ouvindo. Meu impacto seria o mesmo se encontrasse Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Vinicius de Morais, João Cabral, Adélia Prado, Cora Coralina. Pensava: “Cheguei até aqui! Valeu”.
Na manhã seguinte, no trem para o aeroporto, abri o livro e copiei de Helder: “Porque nasci entre espelhos/ tenho pressa/ de encontrar-me face a face/ e a minha imagem mudou/ quando te amei/ porque nasci/ e fui nascendo sempre/ por amar-te até ficar sozinho/ só/ sem mim/ no espanto encruzilhado de o saber/ cresci sozinho para além de mim/ perdi a própria sombra/ e vivo onde não sei quem estou a ser”.