Pedro do Couto
Foi sem dúvida uma tarde encantada a que o presidente Marcos Vilaça promoveu na quinta-feira passada na Academia Brasileira de Letras sobre ritmo, poesia e samba, reunindo Nelson Sargento, os acadêmicos Alberto da Costa e Silva, José Murilo de Carvalho e Murilo Melo Filho, além do cantor e compositor Lenine e do historiador de frevo (Vilaça cultiva a pernambucanidade) Leonardo Dantas Silva.
O encontro encerrou o Seminário Brasil, Brasis, que a ABL realizou pela primeira vez este ano, quando se fecham as cortinas do final da administração de hoje da Casa de Machado de Assis. Com Marcos Vilaça, a ABL foi ao encontro da alma popular, descendo do antigo pedestal e se abrindo à participação de todas as formas de arte.
Foi um avanço extraordinário, tenho certeza. Aliás, em minha opinião, a Academia Brasileira de Letras deveria chamar-se Academia de Letras e Imagens. Até porque as imagens estão contidas nas palavras, nas expressões, nas frases deste eterno processo humano que se chama cultura. A cultura é a passagem de todos nós pelo mundo e pelo tempo. Nosso eco, nosso rastro, nossa sombra. No rastro da aventura de existir, deixamos nossas impressões digitais, como costumava dizer o ministro que encerra em dezembro seu brilhante mandato de dois anos.
Nelson Sargento foi um espetáculo à parte, comoveu a todos com seu violão, com os sambas antigos que apresentou - no que foi, pela primeira vez na ABL, acompanhado pela platéia, mas sobretudo em face de sua interpretação espontânea, bela e comovente. Eu estava lá e me emocionei. A arte emociona.
Quem não se emociona com uma obra de arte bom sujeito não é - frase de Dorival Caymmi na canção de meio século atrás. A história não é só o passado, é também o presente, na insuperável definição do historiador Arnold Toynbee. "Patrão, o trem atrasou", saí da ABL e continuei ouvindo Nelson Sargento, grande artista popular.
Alberto da Costa e Silva falou sobre as letras poéticas musicais e aquelas que ficam só no papel e agora nas telas da internet. Referia-se ao samba "Felicidade", de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, ao "Com que roupa eu vou", de Noel, e do "Azulão", poesia de Manuel Bandeira, musicada por Jaime Ovale, menos conhecida, quase música clássica. As colocações de Costa e Silva foram como sempre muito inteligentes e importantes, mas não se pode a rigor separar uma coisa da outra. Afinal o conjunto não é igual à soma das partes.
Sei não ter sido essa a interpretação do palestrante, porém é necessário assinalar que, na vida, existem encontros e desencontros. Como aquele entre Michelangelo e Rafael, Noel e Vadico, João Gilberto e Tom Jobim, Ari Barroso e Jouber de Carvalho, João Gilberto e a própria Bossa Nova. Ao longo da história uma infinidade de exemplos. Completam estatísticas do êxito. Mas como não aparecem, não temos sequer indícios dos desencontros. Às vezes decisivos para manter obscuros tantos talentos.
Um exemplo, não letras, porém nas imagens, um encontro essencial para sua carreira de ator: a descoberta do personagem Madame Satã por Lázaro Ramos. Um Lázaro - ironia do destino - na estrada percorrida por um homem cuja imagem se inspirava em valores das trevas. Não fosse o homem da Lapa, Lázaro Ramos não estaria hoje em tantos filmes brasileiros. Coisas da vida.
José Murilo de Carvalho, com sua elegância, deu seqüência ao painel, antes de Lenine cantar, falando sobre poesia e música, citando "Chão de estrelas", de Orestes Barbosa, cujo verso "tu pisavas nos astros distraída" era considerado por Manuel Bandeira como o mais belo verso da língua portuguesa.
Verso? Pois é. Como uma etapa de arte leva à outra, e uma tarde conduz à noite, lembro-me da noite do final de 56 quando Décio Pignatari, Augusto de Campos, José Lino Grunewald, Ronaldo Azeredo e Haroldo de Campos lançaram, em conferência do prédio da antiga UNE, o movimento concretista. Tiveram apoio de Manuel Bandeira e Antonio Houaiss. Porém houve reações contrárias.
Inclusive um aspecto interessante: o poeta e intelectual Ferreira Gullar abriu uma dissidência e desencadeou o movimento neoconcreto. A revista "Manchete" da época, senão me engano dirigida por Helio Fernandes, abriu uma manchete fantástica: "Concretismo, o rock and roll da poesia".
O concretismo utilizando-se do espaço visual e da imagem aprofundava o rompimento da geração de 22 com a poesia rimada. Era de fato o rock and roll. Os concretistas projetaram suas obras em vários países, alcançaram êxito muito grande, desencadearam polêmicas maiores ainda, e José Lino terminaria traduzindo "Os cantos", de Ezra Pound, obra fantástica, hoje com traduções em Lisboa e Berlim. Mas isso hoje pertence ao passado. E agora retorno a Alberto Costa e Silva, aproveitando sua colocação entre poesia escrita e musicada. Pois é. A rima foi torpedeada em 22, submersa em 56, mas na música é insubstituível.
Uma melodia sem rima, como iria ficar? Obrigado Marcos Vilaça e Costa e Silva: vocês me deram a oportunidade agora de dizer o que sempre desejei falar sobre verso, rima e música.
Tribuna da Imprensa (RJ) 4/12/2007
04/12/2007 - Atualizada em 04/12/2007