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Um apaixonado pela razão

 

José Serra

O Globo (22.11.2004)



Início de 1963, aeroporto de Congonhas, São Paulo, porta de desembarque, sábado ensolarado. Lá estava eu aguardando a chegada de um Convair da ponte aérea que trazia o então ministro do Planejamento, Celso Furtado, para levá-lo a um debate sobre o Plano Trienal, preparado por ele mesmo para João Goulart, cujo governo saíra fortalecido depois da recente vitória do presidencialismo contra o sistema parlamentarista, num plebiscito. Eu tinha 20 anos e presidia a União Estadual dos Estudantes, que, junto com a UNE, organizara o seminário. Celso chegou sozinho, elogiou a iniciativa do debate e propôs tomarmos um café, antes de seguirmos para a Cidade Universitária. Por seus livros e, principalmente, pela Operação Nordeste e a criação da Sudene, para nós ele já era um mito e foi uma surpresa constatar que era um homem simples, cordial e discreto.

Na mesa, o debatedor principal era Mario Alves, baiano da geração do ministro e dirigente nacional do Partido Comunista Brasileiro. O Plano Trienal pretendia, de fato, combater a inflação, naquela altura superior a 50% ao ano, promover reformas no setor público e oferecer um caminho para que a economia brasileira retomasse o dinamismo da segunda metade da década anterior. Previa deter o galope inflacionário combatendo o déficit público, controlando a expansão monetária, melhorando a oferta agrícola, atenuando o desequilíbrio externo e freando a espiral preços/salários. A esquerda criticava não os objetivos mas os instrumentos e a consistência do próprio plano, que, embora defendesse a reforma agrária, não previa a ampliação da participação do Estado na economia nem maiores restrições ao capital estrangeiro, considerados por ela como fatores-chave de qualquer estratégia econômica nacional que se pretendesse bem-sucedida.

Para os padrões atuais, o debate foi civilizadíssimo. Mario Alves - que poucos anos depois morreria assassinado sob tortura nos porões da ditadura - falou de forma crítica mas bem educada e as perguntas e comentários do público seguiram a mesma linha. As pessoas, principalmente estudantes, estavam a fim de se informar, de aprender. Celso fez uma exposição clara, com domínio de conceitos e perspectiva histórica, rebateu de forma suave as críticas, esclareceu dúvidas e respondeu com clareza e elegância todas as questões. Um poço de racionalidade. Ganhou o debate e mesmo aqueles que não se convenceram de suas teses devem ter saído de lá desejando que sua razão fosse a verdadeira. A maioria, estivesse ou não fora da realidade, não apostava no quanto pior melhor.

Naquela tarde, assistindo ao debate (e até falando, imaginem!) decidi que, depois de concluir meu curso de engenharia, iria estudar economia. Ficara fascinado pelo duelo entre Mario e Celso, e, acima de tudo, com a complexidade da economia e dos problemas econômicos do país, cuja compreensão pareceu-me essencial para a construção do Brasil que ambiciosamente sonhávamos.

No bojo da instabilidade política e sob o impacto da aceleração da inflação, que já estava em andamento, as diretrizes do Plano Trienal mal saíram do papel. No segundo semestre daquele ano Celso já havia voltado para a Sudene. Em abril do ano seguinte rumava para o exterior, depois do golpe militar que cassou seus direitos políticos e vitimou a democracia brasileira do pós-guerra.

Já nos primeiros meses angustiados do exílio, inicialmente na França, depois de ler um par de manuais de economia, debrucei-me sobre três livros do ex-ministro brasileiro: “Formação econômica do Brasil”, “Desenvolvimento e subdesenvolvimento” (um conjunto de ensaios que, para mim, é o melhor livro de Celso Furtado) e “A pré-revolução brasileira”, já editado em francês. Ele combinava os instrumentos da melhor análise econômica cambridgeana, o conhecimento histórico, o domínio e a confiança na razão como elemento mobilizador e transformador das sociedades. Um estilo seco, objetivo, sem qualquer grandiloqüência.

Nenhum intelectual exerceu tanta influência entre nós quanto Celso Furtado, e nenhum brasileiro foi tão reconhecido, ouvido e publicado no exterior como ele, com sua obsessão pela compreensão histórico-estrutural do processo de subdesenvolvimento e das condições complexas para superá-lo. Um dos fundadores da “escola” estruturalista latino-americana foi seu mais profícuo formulador.

Com Celso, aliás, vai o último grande personagem dessa escola, que firmou o que há de identidade latino-americana, na segunda metade do século passado: Raul Prebisch, Jorge Ahumada, Juan Loyola e o grande Anibal Pinto. Como disse ontem seu principal auxiliar na época da Sudene, Francisco de Oliveira, “poucos cientistas sociais podem se orgulhar de terem visto suas idéias transformarem-se em força social e política; a obra de Furtado passou por essa dura prova da História. Contra ou a favor ela exige que se tome posição a seu respeito”.

Uma obra cuja valorização é extremamente oportuna quando nosso país vai completando um quarto de século de semi-estagnação econômica - a pior fase desde o último terço do século XIX - e, mais ainda, quando a falta de um projeto nacional de desenvolvimento chega a ser apreciada pelo pensamento dominante como virtude nacional. Como se as grandes questões econômicas e sociais pudessem ser resolvidas pela combinação de “inativismo” estatal, sinalizações amigas ao mercado e ao assistencialismo, estigmatizando-se o debate sobre políticas macroeconômicas alternativas.

A última vez que encontrei Celso Furtado foi em abril último, no seu pequeno apartamento em Paris, que visitei em companhia dos jornalistas Reale Junior e Mario Sergio Conti. Sua lucidez estava intacta, ao contrário de suas condições físicas. Entre outros temas, numa conversa despretensiosa, ele falou de sua formação, da figura de seu pai. Mas começou esclarecendo-me que a poltrona de couro já havia sido aposentada, houvera poucas semanas.

Explico: quando houve o golpe no Chile, em 1973, antes de ser preso, eu havia enviado móveis e livros para a França, para onde iria com minha família, convidado para trabalhar em universidade. Depois da prisão e de uma longa reclusão numa embaixada, mudei os planos. Uma vez na Europa, visitei-o em Paris, onde ele morava, e depois em Cambridge, na Inglaterra, onde passou um tempo como professor visitante. Hospedou-me alguns dias em sua casa. Numa conversa descontraída, eu lamentei: “Se for mesmo para os Estados Unidos (como veio a acontecer), vou acabar perdendo meus móveis. Você não quer guardar, e usar, uma poltrona de couro nova, que eu gosto tanto e mal cheguei a usar?” Ele topou e, no final, é óbvio, eu nunca quis a poltrona de volta, a mesma que durante 30 anos foi usada por ele, Rosa e suas visitas, para minha enorme satisfação?

JOSÉ SERRA é economista, prefeito eleito de São Paulo e foi ministro do Planejamento e da Saúde no governo Fernando Henrique Cardoso.

 


Um grande brasileiro

Aloizio Mecadante

Mestre e referência intelectual, há quase meio século, de uma parcela expressiva dos economistas brasileiros, Celso Furtado sempre foi também um símbolo da esperança de transformação do nosso país, de ruptura com seu passado de dependência e desigualdade social. Ele nunca abandonou o sonho de ver o Brasil desenvolvido - e desenvolvimento, na sua concepção, não é um processo meramente econômico, envolve também conotações sociais, éticas e políticas, dentro das quais valores como democracia, soberania e cidadania ocupam um lugar central.

Este sonho alimentou sua criatividade e sustentou sua coerência e integridade ao longo de sua trajetória como intelectual e homem público. Foi, em realidade, o substrato de toda sua imensa contribuição ao entendimento da realidade social brasileira e à formulação de políticas de desenvolvimento nacional e regional.

Não por acaso sua obra tem como fio condutor, que articula suas análises em diversos momentos da nossa evolução econômica, o resgate da dimensão histórica e estrutural na abordagem dos problemas do desenvolvimento brasileiro. Isso se evidencia em sua visão do subdesenvolvimento como condição específica dos países periféricos e em sua insistência em colocar a análise da realidade social como matriz constitutiva para a formulação das políticas de desenvolvimento.

Daí derivam suas teses sobre o papel do Estado e do planejamento no desenvolvimento, sobre a subordinação das políticas monetária e cambial à política de desenvolvimento e sobre a necessidade de articular a transformação econômica com a homogeneização social através de reformas estruturais e políticas redistributivas. Esses elementos convergem para a formulação de um projeto de Nação - expressão de uma vontade nacional articulada em torno a objetivos fundamentais - mediante o qual se avançaria na implementação do processo de transformação da economia e da sociedade.

Esses temas continuam sendo peças relevantes no debate econômico atual. A discussão entre monetaristas e estruturalistas, por exemplo, que opunha nos anos 50 as correntes liberais às reformistas, é a mesma que hoje opõe os monetaristas, travestidos de neoliberais, aos chamados desenvolvimentistas. Também são os mesmos, embora com invólucros aparentemente diferentes, os debates envolvendo a relação Estado/mercado e o caráter da inserção do país na economia internacional.

Hoje, lamentavelmente, não podemos mais nos beneficiar do convívio e da criatividade de Mestre Furtado. Mas seu exemplo e sua obra permanecem, são parte do patrimônio ético e cultural de nosso país. Por isso, creio que a melhor homenagem que lhe podemos prestar é aplicar, na prática, as reflexões contidas em um dos seus últimos escritos, sobre a responsabilidade do economista:

“O valor do trabalho de um economista, como de resto de qualquer pesquisador, resulta da combinação de dois ingredientes: imaginação e coragem para arriscar na busca do incerto.... Mas não basta armar-se de instrumentos eficazes para alcançar esse objetivo. Atuar de forma consistente no plano político, portanto, assumir a responsabilidade de interferir no processo histórico, impõe ter compromissos éticos.”

E mais adiante, conclui:

“Quando o consenso se impõe a uma sociedade, é porque ela atravessa uma era pouco criativa. Ao se afastar do consenso, o jovem economista perceberá que os caminhos já trilhados por outros são de pouca valia. Logo notará que a imaginação é um instrumento de trabalho poderoso, e que deve ser cultivada. Perderá em pouco tempo a reverência diante do que está estabelecido e compendiado. E, à medida que pensar por conta própria, com independência, conquistará a autoconfiança e perderá a perplexidade.”

Aloizio Mercadante é economista e líder do governo Lula no Senado, eleito por São Paulo.

 

07/06/2006 - Atualizada em 06/06/2006