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Para falar sobre palavras

 

Sergio Martins

Jornal do Brasil (03.04.2006)


Raro rosto pouco conhecido a ocupar uma cadeira na ABL, Domício Proença Filho diz que chega à casa de Machado como especialista em linguagem.

''Esse menino vai acabar entrando para a Academia Brasileira de Letras.'' A frase, de parentes e amigos de seus pais, acompanhou o professor (como prefere ser identificado) carioca Domício Proença Filho por toda a infância. Assim que se alfabetizou, o mais recentemente eleito dos integrantes do seleto grupo da ABL, tornou-se leitor voraz de história em quadrinhos, o primeiro passo para a descoberta do livro, que passou a ser o amigo de todas as suas horas.

A aventura de ler já dura mais de 65 anos (nasceu em 1936 e está com 70 anos) e a profecia do tempo de menino se tornou realidade há duas semanas. O também poeta, ficcionista e crítico literário foi eleito para a cadeira 28, ocupada antes pelo ex-ministro Oscar Dias Corrêa, morto em novembro de 2005. Nome menos conhecido que os últimos a serem eleitos pela casa - que vão de Paulo Coelho ao cineasta Nelson Pereira dos Santos, passando por Zéli Gattai e o sociólogo Hélio Jaguaribe - Proença Filho recusa a idéia de que atue hoje na ABL uma tendência a dar mais espaço a nomes mais famosos.

- Tenho uma proximidade com a Academia de mais de oito anos. Participei de muitas conferências e debates. Sou um especialista em linguagem, área em que trabalho há mais de 40 anos, e a casa estava procurando exatamente uma pessoa com o meu perfil, até porque está trabalhando num novo dicionário. Chego para somar e participar de todas as atividades culturais - diz ele ao JB, em sua casa, em Copacabana, cercado pelos sete mil volumes que compõem sua biblioteca.

A posse na ABL está marcada para a segunda quinzena de julho - depois da final da Copa. Vai ficar dependendo somente do fardão. A princípio, pode vir a ser doado pela Associação dos Ex-alunos do Colégio Pedro II, que estão se cotizando, embora Domício Proença Filho ainda tenha esperança de que a governadora Rosinha Matheus ou o prefeito Cesar Maia se antecipem e lhe garantam a vestimenta tradicional dos acadêmicos até lá. O cineasta Nelson Pereira dos Santos, por exemplo, paulista, eleito para a ABL duas semanas antes, recebeu a promessa do governador de São Paulo, Geraldo Alkimim, de que ganhará dele o traje.

Antes disso, porém, deixando claro seu trânsito livre na Academia, Domício já faz uma conferência sobre a obra do também acadêmico João Ubaldo Ribeiro, amanhã, às 17h30, no Teatro Raimundo Magalhães Júnior, na ABL.

- O convite da Academia para eu participar do ciclo de palestras foi feito bem antes da eleição. Li tudo do João Ubaldo Ribeiro. Por causa da conferência, reli todos os seus livros. Ele é um dos mais importantes ficcionistas contemporâneos brasileiros. Tem o total domínio da palavra, além de possuir uma erudição e uma cultura vastíssima. Nota-se em seus textos o prazer da linguagem. Além disso, fui convidado pela Laura Sandroni para participar da coleção que está lançando, chamada Nova seleta e me coube exatamente a obra do João Ubaldo - afirma.

O caminho percorrido por Domício Proença Filho até a ABL teve algumas pedras. A primeira foi a morte do pai, Domício Proença, quando ainda tinha nove anos, morando na Ilha de Paquetá, onde a família se instalou quando ele tinha apenas três meses de idade. Foi lá que passou a infância e descobriu os livros, por intermédio da biblioteca da escola pública Joaquim Manuel de Macedo. Sua mãe, Maria de Lourdes Proença, a quem chama de ''mãe coragem'', viúva jovem e com quatro filhos (Gilberto, Walter e Áurea, além de Domício), teve a abençoada visão de incentivá-lo a fazer prova para o internato do Colégio Pedro II, em São Cristóvão, escola de referência nas décadas de 40 e 50 e até hoje. E ele correspondeu às expectativas da mãe.

- Fui primeiro aluno da classe o tempo todo, desde o tempo do primário (hoje, ensino fundamental, da 1ª à 8ª séries). Por sete anos vivi no internato do Pedro II, onde fui considerado aluno eminente. Fiz o ginásio e depois o clássico. A biblioteca do colégio era meu playground e lá descobri autores brasileiros como José de Alencar e Machado de Assis, por exemplo, e a leitura passou a ser um vício, no bom sentido, naturalmente.

A descoberta de Machado de Assis levou Proença Filho a se tornar um estudioso e especialista da obra do Bruxo do Cosme Velho. Autor de 47 livros, o mais novo acadêmico publicou, em 1998, o romance Capitu - memórias póstumas, pela Record, esgotado em oito meses. No livro, ele se propõe a enfrentar um dos mais intrigantes mistérios da literatura: Capitu traiu ou não?

- O mistério continua e as pessoas somente vão entendê-lo, e entender a personagem Capitu, lendo o livro. Ou melhor, os dois livros. O de Machado de Assis, Dom Casmurro, imprescindível, e o meu. Conheci, se você permite, a moça dos olhos d'água nos meus longínquos 15 anos. E como todo adolescente do meu tempo, me apaixonei por ela - capitula.

Doutor em Letras, livre docente em Literatura Brasileira, professor titular dessa disciplina na Universidade Federal Fluminense (UFF) atualmente aposentado depois de 38 anos de magistério, Domício Proença Filho deu aula também no Pedro II. Como também em muitos outros estabelecimentos de ensino, além de ter sido professor de redação jornalística na Faculdade Hélio Alonso.

- Um dos momentos que guardo com muito carinho foi quando meus colegas do Pedro II, alunos e professores, manifestaram alegria pela minha eleição para a Academia. Minha indicação teve uma repercussão muito grande e emotiva entre eles. E querem me oferecer o fardão, mas acho muito difícil administrar uma coleta como pretendem - afirma.

 

22/05/2006 - Atualizada em 21/05/2006