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Os centenários de agora

 

Felipe Fortuna

Já se falou e se escreveu bastante sobre o centenário de morte de Machado de Assis, e o ano de 2008 mal começou. Até o momento já foram publicados livros importantes, livros oportunistas e livros equivocados sobre o escritor carioca, que geraram seminários, debates e programas inesgotáveis. Há sempre uma expectativa sobre qual será o próximo livro de peso sobre Machado de Assis - mas tenho certeza de que o romancista de Quincas Borba (1891) ironizaria a moda que o persegue, talvez dessa maneira: "Imagine o leitor um funcionário público, pacífico mais no corpo do que na alma, e também dado a escrever e a publicar os seus devaneios mais precários. À sua porta acodem pessoas que nada lhe perguntam sobre o andamento de um processo ou sobre uma nomeação para a vaga aberta em Friburgo, mas sobre as páginas de folhetim que vem publicando num importante diário da capital. O que pensar, a não ser que um funcionário público também pode sonhar e criar um público ansioso pelos próximos capítulos, e não pelo carimbo bem posicionado num documento?".

No centenário do escritor, porém, não teremos a edição definitiva de sua obra completa: ainda não foi possível coordenar uma equipe para organizar, indexar e editar todos os contos, romances, cartas, poemas, peças, correspondência e o que mais haja, e dar início à publicação dos volumes que fazem falta. Conhecemos os textos estampados em Dispersos (1965), graças a Jean-Michel Massa, e as crônicas compiladas por John Gledson; anuncia-se a edição de uma Correspondência, sob a direção de Sergio Paulo Rouanet. Mas ainda falta a edição definitiva de toda a obra. O centenário de morte, assim, pode ser celebrado com entusiasmo cético - bem ao gosto do romancista, aliás.

Os centenários costumam ser tristes - pois, mesmo quando se referem a um nascimento, o escritor costuma não mais se encontrar entre nós. Não é o caso de Claude Lévi-Strauss, que de vez em quando nos volta em entrevista. Até o momento em que escrevo este artigo, ele celebra em vida os seus 100 anos no seu apartamento na rue Marronniers, e deve estar preparado para as homenagens que sempre mereceu. Já não existe mais o debate entre estruturalistas e existencialistas, com o iracundo Jean-Paul Sartre a atacar a pouca importância que o antropólogo dava ao sujeito. Mas uma existencialista de valor, Simone de Beauvoir, havia lido escrupulosamente As estruturas elementares do parentesco (1949) - inspirador para a redação de O segundo sexo (1955) - e admirava o interesse do etnólogo pela mulher nas culturas não-ocidentais.

Simone de Beauvoir? Também centenária (1908-1986). Meu interesse se volta para as cartas que enviou a tantos amigos, marcadas pela disciplina intelectual e pelo rigor, quase sempre com duras avaliações sobre a personalidade de amigos, de escritores e de suas relações mais próximas. Romances como Os mandarins (1954) e memórias como A força das coisas (1963) são os documentos eloqüentes de uma época e de um ambiente intelectual. Mas, sem dúvida, O segundo sexo se perfila entre os 20 livros mais influentes do século 20, com perceptível repercussão em movimentos sociais, no aparecimento de obras literárias e filosóficas e na base fundamental do feminismo.

Da trupe existencialista, outro centenário é o do Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), cuja obra maior, Fenomenologia da percepção (1945), enveredou por uma alternativa ao cartesianismo, sobretudo no reconhecimento de uma "intencionalidade corporal" que superava a dicotomia corpo-espírito. Escritor talentoso, o filósofo também praticou o mais alto ensaísmo, em especial na análise das artes plásticas. Minha sugestão de homenagem é a leitura do ensaio "A dúvida de Cézanne", republicado em Sentido e não-sentido (1966), aguda interpretação sobre a elaboração da obra de arte visual na qual se percebe o vetor da fenomenologia: "De nada serve opor as distinções entre alma e corpo, entre pensamento e visão, já que Cézanne volta justamente à experiência primordial de onde essas noções são tiradas, entregando-as para nós como se fossem inseparáveis".

Mas deixemos o filósofo e a filosofia na companhia de um romancista centenário, João Guimarães Rosa (1908-1967), que respondeu da seguinte maneira a uma pergunta do seu tradutor Günter Lorenz: "Você tem alguma coisa contra os filósofos?" "Tenho. A filosofia é a maldição do idioma. Mata a poesia (...).". Pois muito bem: no centenário do escritor, as trilhas do Grande Sertão devem ser percorridas uma vez mais, já que sempre convidaram a infinitas viagens; e, por contraditório que seja, pode-se também reler os ensaios de O dorso do tigre (1969), de Benedito Nunes, onde se aprende muito sobre a relação entre literatura e filosofia na obra do escritor mineiro. Pois fica a lição: toda contradição deve ser explorada.

Haverá quem comemore o centenário de William Saroyan (1908-1981), o prolífico escritor de peças e romances que expôs e analisou a diáspora armênia - e, assim, criou um modelo impactante para a compreensão de tantas outras diásporas, como a dos judeus, dos ciganos, de milhões de refugiados. Haverá também quem se lembre do centenário do Cesare Pavese (1908-1950), cujos livros - e especialmente A lua e as fogueiras (1950) e seu diário, O ofício de viver (1952) - salientam a incontornável solidão do indivíduo e prenunciam, talvez, a trágica decisão que o romancista italiano decidiu tomar ainda jovem.

Por puro sentimentalismo, sou levado a recordar o centenário de Emil Staiger (1908-1987), um dos mais renomados scholars dos estudos literários. Seu pequeno livro, Conceitos fundamentais de poética (1946), foi um dos melhores acontecimentos da minha vida de estudante, desvendando e organizando idéias sobre os gêneros literários que costumavam ficar muito confusas até então. Obviamente, o volume também serviu de isca para outros estudos do mesmo Emil Staiger, poderoso intérprete de Goethe e Shakespeare.

Muitos nomes podem ser escolhidos ou pinçados (está por aí o de Ian Fleming, por exemplo) - afinal, todo centenário é pretexto, embora possa indicar resistência ao tempo. Prova cabal é que o Prêmio Nobel de Literatura de 1908 foi concedido ao agora obscuro Rudolph Christoph Eucken - num alerta sobre como são inseguras todas as glórias.

Jornal do Brasil (RJ) 5/1/2008

06/01/2008 - Atualizada em 06/01/2008