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O poeta do pensamento

 

Frederico Gomes

T.S. Eliot declarou certa vez, cremos que numa entrevista, que o poeta perde o potencial criativo, decorrida mais da metade da sua vida, quando lhe restariam apenas três escolhas: rebaixar-se literariamente, repetir-se, ou parar de escrever. Trata-se, sem dúvida, de uma generalização equivocada, embora rara, do pensamento eliotiano, pois a leitura de O Outro Lado (Editora Record, 2007), sétimo volume de poemas de Ivan Junqueira, produzidos entre 1998 e 2006, desmente-o expressamente nesses 40 anos de poesia publicada. Após a consagração crítica do premiado A Sagração dos Ossos (Editora Civilização Brasileira, 1994), o que percebemos neste livro mais recente é o modo como o talento do poeta brasileiro vai, de livro para livro e retomando os mesmos temas, adquirindo mais forças para atingir cumes mais elevados. De fato, deparamo-nos, aqui, com o mais alto índice desse patamar assinalado por Antonio Carlos Secchin na quarta capa, não só em relação ao poeta, mas a tudo o que se fez e se faz na poesia brasileira. E pensamos, então, em nomes que constituem o cânone dessa atividade entre nós. E mais: em todos que escrevem, falam e pensam em língua portuguesa. Isto porque nessa admirável reunião de poemas não se percebe a mínima fissura em sua construção formal, um lapso de pensamento.

Poeta de sólida formação cultural, Ivan Junqueira nos doa, generosamente, com a sua poesia, todo o conhecimento que o distingue e singulariza, usando-o para a vida e não por mera erudição. A nós, leitores, cabe sorver, linha por linha de cada poema, as múltiplas fontes que o abastecem.

Fazendo um paralelo entre linguagem poética e linguagem pictórica notamos que, se Picasso transitava com facilidade por diversos estilos, indo de uma linguagem para outra, sem que nunca deixássemos de reconhecê-lo em sua singularidade de artista, é em Cézanne que detectamos semelhanças da poesia de Ivan Junqueira com a pintura. A obsessão do pintor francês em esgotar todas as possibilidades de apreensão plástica de seus temas – simbolizados, sobretudo, pelas telas que retratam La Montagne de Sainte-Victoire (que, diz a anedota, foi a única coisa que ele realmente pintou durante toda a vida, mesmo quando pintava um rosto ou um corpo feminino) – é a mesma que move o poeta de O Outro Lado em sua apreensão metafísica da morte. A morte é a sua Montagne de Sainte-Victoire, a sua obsessão mais notável, seja afirmando-a ou recusando-a. Porém, ao atingir, na poesia, o momento extremo da oposição vida-morte, o poeta o faz de forma afirmativa, ora afirmando os sentidos da vida no sentido da morte (a infância, o amor, a arte), ora afirmando o sentido da morte nos sentidos da vida (a vanidade, o absurdo, o sem-sentido). Dupla afirmação que, em última análise, somente a poesia de alta fatura consegue realizar. Ou, melhor ainda, conforme as exatas palavras de Eduardo Portella finalizando as orelhas do livro: “O poeta Ivan Junqueira parece mobilizar, com um sentido e todos os sentidos, a sua elegia à vida e o seu hino à morte. Superiormente.”

O poeta, ao mostrar-se, como vimos, consciente de que o é, faz ecoar em nossa memória as palavras de Hofmannstal, quando este afirmava que o núcleo da essência do poeta é precisamente ele se saber poeta. O que observamos aqui e que observaremos em todos os poemas do livro, é que Ivan Junqueira circula por um espaço temporal bem mais distendido que o dos modismos literários, pois também percebemos ecoando, quase em silêncio, nessas transfigurações imagéticas das vidas anteriores do poeta (“Na infância, quando fui relva...”, “Depois, quando fui cipreste...”, “Quando fui córrego...”, etc.) os versos de Empédocles que dizem: “Eu fui donzela, eu fui um ramo, eu fui um cervo e fui um mudo peixe que surge no mar.”

É sabido o cuidado e o respeito que o autor dedica à tradição da cultura ocidental e que, como não poderia deixar de ocorrer, é bastante visível em sua obra poética e ensaística. Neste sentido, mais para o final do livro, no poema intitulado, não sem certa ironia, “O novo”, ele tece ácidos comentários aos modismos literários, demonstrando-nos, desse modo, que o novo é o que sempre fica, aquém e além de quaisquer novidades. É importante lembrarmo-nos que, apesar de sua obstinada referência à morte, ao nada e ao sem-sentido da vida, surgem na obra do poeta breves, mas refinados interlúdios amorosos que o domínio do ritmo, da melodia e da imagem torna dignos de constar de qualquer seleção que se publique visando ao tema, em língua portuguesa ou não. Sabemos, entretanto, que o amor, mesmo quando o poeta não o refira de modo direto, amiúde e indiretamente serve de contraponto à recusa da morte em seus poemas.

A maior parte dos poemas que constitui O Outro Lado pode ser considerada, sem hesitação, antológica (e ontológica) por seu altíssimo nível técnico e existencial, além de ser o que de melhor se tem produzido entre nós – sobretudo os longos “O rio”, “A história” e “O testemunho” (Ivan Junqueira nunca foi adepto dos poemas curtos, geralmente descuidados) –, o que nos obriga, infelizmente, a transcrevê-los em fragmentos. Dos três citados acima optamos por essas passagens da esplêndida viagem pelo passado e presente da História que é “O rio” (pode-se falar de viagem ao futuro, pois o poeta nos fala também daquele rio heraclitiano “que está vindo a ser, mas que não é ainda”). Há muitos outros poemas no livro que merecem registro: por exemplo, os metalingüísticos “A mão que escreve” e “Elogio de Plínio”, juntamente com os belíssimos “A ilha” e “O outro lado”, além de “O mesmo: o terceiro”, uma belíssima autodefinição desse poeta do pensamento que é Ivan Junqueira e que nos leva,  com seus poemas, da sombra da morte à luz da poesia. E, portanto, da beleza.

Jornal do Commercio (RJ) 19/10/2007

22/10/2007 - Atualizada em 22/10/2007