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O melhor do mau humor

 

Patrick Moraes

A cada dia, João Ubaldo Ribeiro diz que faz uma ou duas inimizades novas. Desconfia que a conta ficará maior a partir de agora. Vencedor do Prêmio Camões, anunciado em Lisboa no sábado (26), o escritor baiano, 67 anos, no Rio há mais de vinte, tornou-se o oitavo brasileiro a ser agraciado com o prêmio mais importante da língua portuguesa pelo conjunto da obra. Ganhou também 100.000 euros. Ninguém esperava que fosse se meter a besta e sair contando vantagem no universalmente famoso Tio Sam, mas nem que fosse dar uma de humildezinho, modesto, imaginem, não mereço tanto. Felizmente, João Ubaldo correspondeu às expectativas: achou muito merecido entrar para a galeria onde figuram João Cabral de Melo Neto, Jorge Amado e Rubem Fonseca. Mas teme que, além dos inimigos, as amolações se multipliquem. "O assédio vai aumentar, e isso é um horror", antecipa-se. "Decepciono um por dia, pelo menos. É gente que me quer na inauguração de boteco, em vernissage ou em lançamento de livro. E eu não gosto." Sempre vestindo o traje nacional – bermuda e chinelos –, o escritor circula pouquíssimo. Em casa, não atende telefone. No apartamento de dois andares que comprou de Caetano Veloso, no Leblon, onde mora com a mulher, Berenice, e os filhos, Bento e Francisca, a secretária eletrônica fica num cômodo distante do escritório. Suas piores suspeitas invariavelmente se confirmam. "É sempre um pepino", diz. "Às vezes, um sujeito liga para recitar um poema e passa a tarde inteira no telefone. Ou então é um garçom do Villarino que me pede dinheiro e diz ter me atendido muitas vezes, embora nunca tenha posto os pés lá."

"Se fosse um prêmio concedido por uma revista americana ao melhor autor de prosa exótica ou tropical, ficariam mais felizes"

Seu programa de fim de semana é ir ao Tio Sam, a poucos metros de casa, almoçar com um grupo de amigos. Abstêmio há mais de uma década, depois de uma crise de depressão agravada pelo alcoolismo, diz que o encontro é um dos poucos motivos que o levam a sair de casa. Nem às reuniões da Academia Brasileira de Letras ele vai mais. Entre amigos, faz sucesso com suas imitações de deputados baianos e de músicos americanos. Louis Armstrong é um dos homenageados freqüentes. "É uma companhia divertidíssima", elogia o imortal Eduardo Portella, autor do discurso de apresentação de João Ubaldo na ABL. Foi Portella quem o avisou do Prêmio Camões. Pela secretária eletrônica. Por ora, o escritor dá forma a um romance, sem previsão de lançamento, além das crônicas publicadas semanalmente em O Globo e O Estado de São Paulo, que o transformaram num dos críticos mais constantes do governo Lula. "Não tem como não falar disso, por mais que eu prefira temas urbanos", afirma. "Votei no Lula na primeira vez e hoje faço parte da turma dos enganados". As patrulhas petistas ofendem seu senso de honra e justiça: "Ninguém acredita que você está agindo por motivação própria, porque você tem amor ao país, ao povo. Para muitos, eu estou é levando grana de alguém. É chato".

Desde que não agridam seus princípios, João Ubaldo é defensor fervoroso dos trabalhos sob encomenda – livros, orelhas, prefácios. "Não escrevo nada de graça", informa. "Quando me perguntam sobre a inspiração, digo logo que é um cheque. Afinal, quem vai pagar a minha obturação? Toda grande arte foi feita assim. Bach, o maior gênio da música, escreveu os Concertos de Brandemburgo para agradar ao margrave local. Michelângelo fazia tudo sob encomenda: Capela Sistina, Davi...", enumera, antes de atacar as maledicências sobre o cheque de 100.000 euros que acompanha o Prêmio Camões. "Parece até que virei um Onassis. Tem cantores que ganham isso num show."

O escritor mescla resmungos com ironias. As observações sarcásticas pontuam toda a obra de João Ubaldo, que escreve como dançam os grandes bailarinos: faz parecer fácil um ofício que demanda disciplina e trabalho constantes. Já produziu um rio de crônicas, contos, ensaios e romances desde a estréia, em 1968, com Setembro Não Tem Sentido, passando pelos celebrados Sargento Getúlio (1971) e A Casa dos Budas Ditosos (1999). Viva o Povo Brasileiro virou enredo da escola de samba Império da Tijuca, em 1987; O Sorriso do Lagarto, minissérie de TV, e Deus É Brasileiro, filme. Fluente em inglês, espanhol, francês e alemão, era obrigado pelo pai a ler Shakespeare, Homero, Sófocles e Camões. "Entre os contemporâneos, sou um dos escritores mais importantes da nossa língua", define-se. Vaidade assumida, é capaz de citar com precisão o espaço e a página em que as notícias sobre o Prêmio Camões haviam sido publicadas nos jornais dois dias antes. "Deveria ter tido um reconhecimento maior", diz. "Se fosse um prêmio concedido por uma revista americana ao melhor autor de prosa exótica ou tropical, ficariam mais felizes." Em 2004, cancelou a participação na Festa Literária Internacional de Parati (Flip) depois de ver o anúncio de sua mesa de debate em que era drasticamente reduzido. "Quando vi a propaganda, havia alguns famosos, outros desconhecidos e um etc. Ora, não fui porque não concordo com isso. Não sou etc."

Revista Veja Rio (RJ) 3/8/2008

04/08/2008 - Atualizada em 03/08/2008