Leandro Konder
A história só mostra a força que possui quando modifica a vida cotidiana do povo. Os acontecimentos espetaculares explodem como bombas, fazem muito barulho. Fazem barulho, matam pessoas.
Nem sempre, contudo, os supereventos conseguem substituir a organização social contra a qual se rebelavam na busca por outra, diferente, melhor.
Kafka – um conservador de gênio – dizia que, após uma revolução, o que ficava era o lodo de uma nova burocracia. Sem precisar da agudíssima sensibilidade do escritor, seus leitores perplexos e assustados, silenciosamente, concordavam.
O senso comum tem exigências conservadoras teimosas. Às vezes, relativamente razoáveis. O italiano Antonio Gramsci afirmava que cabia ao bom senso superar o senso comum. Mas o senso comum tem resistido muito.
Uma das fortalezas mais resistentes do senso comum tem sido a dos preconceitos contra as mulheres.
E não se trata de ignorância: trata-se de um processo de exercício de autoridade, de uso do corpo feminino para o prazer exclusivo dos homens.
Por via das dúvidas, as mulheres eram afastadas da política, suspeitas de bruxaria. Minha admirável amiga, a ex-senadora Heloisa Helena, não teria nenhum espaço para aparecer. Provavelmente seria presa, e, acusada de ser feiticeira, seria queimada numa fogueira.
Além de serem praticamente excluídas da política, as mulheres foram perseguidas, discriminadas. Tornaram-se as humilhadas e ofendidas da modernidade.
Sob pressão da opinião pública, passaram a revidar com êxito os golpes dos reacionários. Ultrapassaram os limites do círculo estreito em que tinham sido educadas.
São numerosas as mulheres importantes na política, nas artes e na literatura. Recentemente, emocionei-me com o livro Aprendiz de Homero, de Nélida Piñon.
Há muitos anos li um romance escrito por Nélida – A república dos sonhos - e cometi um erro: gostei muito da obra, porém não acompanhei a trajetória da autora.
Nélida é uma escritora que fala de tudo, da sua vida, de dom Quixote, Sancho e Dulcinéa, do seu professor de matemática, de Homero e da Grécia antiga, de Portugal e da Espanha, de Machado de Assis, de Carlos Fuentes, de Mario Vargas Llosa, do amor de Jesus pelas mulheres etc.
A autora dos 24 ensaios reunidos no volume é muito discreta no modo de lidar com a sua erudição. Os homens, porém, desconfiaram de algo que estaria sendo feito para ajudar as mulheres na propaganda das coisas boas que elas trouxeram para a humanidade.
Por meio de seus êxitos, Nélida Piñon se impôs à admiração de seus pares. Em alguns momentos, se sobrepõe a eles. E fala, escreve, sonha, sempre na condição de mulher.
Carrega com ela o peso de colossais, sofisticadas sugestões filosóficas, dialéticas (além de integrar a Academia Brasileira de Letras, que uma vez chegou a presidir, Nélida integra a Academia Brasileira de Filosofia.)
"Tudo o que penso e falo é de duvidosa simetria."
"É com corpo e memória de mulheres que analiso a minha espécie".
São algumas das frases cativantes da escritora. Não nos remetem, certamente, a panfletos revolucionários, a uma literatura de agitação.
Mas, recorrendo às armas próprias da boa literatura, plantam sementes que só mais tarde os leitores descobrirão que são aquelas que brotam no espírito, na forma de inquietações radicais.
Jornal do Brasil (RJ) 7/6/2008
09/06/2008 - Atualizada em 08/06/2008