O bibliófilo, que reúne mais de 38 mil títulos, entre eles obras raríssimas, afirma que não saberia viver nesse mundo ‘se os livros não existissem’
Flávio Freire – São Paulo
Os muros altos da casa construída em 1948, hoje instalada em meio a modernos edifícios do Brooklin, em São Paulo, protegem um dos mais preciosos acervos literários do país. Depois de quase 80 anos de garimpagem em sebos e livrarias de todo o mundo, o jornalista, advogado, empresário e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) José Mindlin, de 92 anos, reúne em sua biblioteca particular cerca de 38 mil títulos, com raridades como o original de “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa. Sim, ele tem em mãos o material que o escritor mandou em 1956 para a tipografia, datilografado e com rasuras feitas a lápis.
Os clássicos da literatura brasileira são uma paixão na vida de Mindlin, que, ao longo dos anos, também adquiriu peças raras como as primeiras edições de “Marília de Dirceu” (1810), de Thomaz Antonio Gonzaga; “A Moreninha” (1844), de Joaquim Manuel de Macedo; e “O Guarani” (1857), de José de Alencar. Também estão catalogados ali a obra completa de Machado de Assis, originais de “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, além do manuscrito de “O Quinze”, de Rachel de Queiroz, entre muitos outros.
Em alguns livros, Mindlin colocou o ex-libris elaborado por sua filha: “Le ne fan riem sam”, que, em português, significa “Não faço nada sem alegria”. Uma frase que explica o bom humor, a espontaneidade e a simpatia com que trata funcionários e amigos.
Embora dono de um dos mais valiosos acervos particulares do país, Mindlin tomou uma atitude pouco comum entre colecionadores. Após uma conversa com a mulher, Guita — que faleceu em 2006, depois de um casamento de 68 anos — e com os filhos, que abriram mão de incluir parte do acervo na herança, o empresário resolveu doar os títulos brasileiros para a Universidade de São Paulo (USP). A instituição começa, no ano que vem, a construir em seu campus principal um complexo que incluirá a biblioteca de Mindlin e o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), na chamada Brasiliana/USP. Uma iniciativa para lá de elogiada entre os intelectuais.
— No Brasil é raro alguém doar seu acervo ainda em vida. Isso é notável. Na verdade, ele acredita que todas essas obras são maiores do que ele e por isso dá ao país um presentaço — diz o secretário de Cultura de São Paulo, o cineasta João Batista de Andrade.
Vocação de colecionador despertada aos 13 anos
Enquanto a universidade prepara a construção do prédio, Mindlin guarda seu tesouro literário em prateleiras organizadas na sala da casa principal, em dois pavilhões construídos na área externa, além de estantes repletas de livros instaladas num apartamento de quatro cômodos e numa casa próxima à sua. São quase 50 mil volumes, que incluem ainda periódicos, mapas e revistas.
Mindlin conseguiu seu primeiro emprego como redator do jornal “O Estado de S.Paulo”, aos 15 anos de idade. Em 1930, ingressou na Faculdade de Direito da USP, abriu um escritório de advocacia e, numa “obra do acaso”, chegou à presidência da Metal Leve, uma das principais empresas de metalurgia do país, criada ainda antes da indústria automobilística ganhar terreno no Brasil. Mindlin também foi secretário estadual de Cultura na gestão de Paulo Egydio Martins.
Desde que passou a se dedicar exclusivamente aos livros, porém, ele tem usado seu tempo para separar as obras que serão doadas para a Brasiliana/USP, entre elas raridades do século XVI, como as primeiras descrições do Brasil por viajantes estrangeiros, como Hans Staden, André Thevet e Jean de Léry.
Apaixonado pelos livros, Mindlin sabe onde está cada um dos exemplares que ganhou ou comprou. O primeiro, diz, foi adquirido quando ainda tinha 13 anos de idade. Foi num sebo na região da Praça da Sé que o bibliófilo deu início à, em sua própria definição, “compulsão patológica”, com a compra de uma edição portuguesa, de 1740, do “Discurso sobre a História universal”, de Jacques Bossuet.
— Eu chamo essa compulsão patológica pelos livros de loucura mansa. Mas não sei como viveria nesse mundo se os livros não existissem — diz Mindlin, sentado à frente da imponente estante que emoldura a lareira na sala principal da casa.
Com um problema de visão que há dois anos o impede de ler, Mindlin precisa recorrer à ajuda de outras pessoas, que lêem os livros para o acadêmico, ou a obras em CD.
— A leitura é o interesse central da minha vida — conta Mindlin, que começou a montar sua biblioteca particular ainda na adolescência. — Eu tinha 15 anos quando descobri que os livreiros da Praça da Sé praticamente não se falavam. Andando por lá, percebi que um livro de cinco mil réis num sebo era vendido por 50 mil réis em outro. E vice-versa. Pois bem, comprava um de cinco mil réis numa livraria, vendia por 50 na outra, mas, em vez de dinheiro, pegava créditos e trocava em livros. Fiz isso por uns dois anos, até que descobriram — brinca o bibliófilo.
O interesse pela brasiliana, volumes em português ou dedicados à literatura portuguesa, também começou precocemente na vida de Mindlin, quando ele ganhou de presente a edição de “História do Bra$”, de frei Vicente do Salvador.
— Foi o que detonou o interesse pela brasiliana, seja literatura, viagem, história ou poesias — conta Mindlin, enquanto caminha pela biblioteca mostrando livros com dedicatórias capazes de matar de inveja qualquer amante da leitura.
“Procuro no dicionário; falta rima para corpo; não é nada extraordinário; sua rima é outro corpo”, escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade numa dedicatória a Mindlin assinada em 1985.
As dedicatórias dos amigos, porém, não estão apenas nos livros. O presidente da ABL, Marcos Vinicios Vilaça, diz que pode tecer dúzias de elogios sobre o bibliófilo — eleito em junho deste ano para a cadeira 29 da instituição, onde pretende continuar seu trabalho de estímulo à leitura — que nada mais seriam que constatações de sua importância para o país:
— O Mindlin tem um zelo pela memória dos livros impressionante. Ele não cuida apenas de seus exemplares. Ele cuida da compreensão e da história de cada volume. Cada livro que é incorporado à sua biblioteca não é apenas mais um livro. Ele faz uma análise crítica, pelo ponto de vista da edição e do trabalho histórico — afirma Vilaça.
A dedicação, generosidade e permanente atenção de Mindlin ao mundo dos livros também é destacada por Maria Amélia Mello, gerente editorial da José Olympio, que tem no bibliófilo, além de um amigo, um grande parceiro. Da fantástica coleção de Mindlin já saíram alguns textos ainda inéditos em livro (e sairão outros) para compor a recente coleção Baú de Histórias lançada pela editora.
— Do alto dos seus 92 anos ele continua atento, antenado. Ele não é apenas um colecionador, é um bom leitor, passou a vida fazendo isso. Vive ligando e dando idéias para a coleção — conta Maria Amélia. — Tenho orgulho de conviver e aprender com ele.
Fôlego de caçador de tesouros
SÃO PAULO. Não faltam boas e curiosas histórias nos quase 80 anos dedicados por José Mindlin aos livros. Entre elas está a epopéia que o empresário enfrentou para adquirir o original de “O Guarani” (1857), de José de Alencar.
Mindlin lembra que adquiriu dois dos quatro volumes do romance num sebo de Santiago, capital do Chile. Mas ter a obra completa era uma obsessão. Em 1977 ele soube que um livreire grego oferecera a obra para alguns amigos no Rio de Janeiro, por US$ 1 mil. Acontece que os amigos acharam caro e o romance escapou de suas mãos. Anos depois, Mindlin soube por um amigo que o livro seria leiloado em Londres. Para evitar contratempos, encaminhou uma ordem de compra sem limites a um livreiro inglês. O lance inicial seria de 20 libras esterlinas.
Para seu desespero, assim que os lances chegaram a 60 libras, o livreiro desistiu da compra.
__ Ele me disse que não comprou porque achou caro e eu não iria bancar. Quase morri do coração. – brinca ele.
O tempo passou e a idéia de adquirir “O Guarani” continuou firme. Até que, por intermédio de um outro amigo, soube que o mesmo livreiro grego que oferecera a obra no Rio estava em Paris, e queria vendê-la. Mindlin pegou um avião e seguiu para a França.
__ Negociamos muito. Acho que ele sabia da minha vontade imensa, então ele já pediu US$ 5 mil, mas fechamos por US$ 4 mil.
Com o exemplar em mãos, Mindlin voltou para o Brasil pronto para pôr a obra na estante. Mas, ao deixar o avião, já no táxi, percebeu que tinha esquecido o pacote na aeronave.
__ Pensei que nunca mais veria a obra, mas a companhia aérea encontrou o livro três dias depois em Buenos Aires e me desenvolveu.
Ao lado de Machado de Assis e Guimarães Rosa, a obra de José de Alencar ocupa uma das principais estantes da biblioteca do empresário.
ENTREVISTA
‘No fundo, acho que a bibliofilia é poligâmica’
O GLOBO: Qual o motivo que levou o senhor a doar um dos acervos literários mais importantes do país para uma biblioteca pública?
JOSÉ MINDLIN: A parte com livros de assuntos brasileiros, que venho formando desde 1927, é um conjunto praticamente indivisível. Além dos livros há muitos documentos, manuscritos. Se isso se dispersasse, uma parte seria quase impossível de reconstituir. A não ser por sorte. Então achamos que esse conjunto deveria ser conservado e se tornar um bem público, institucional, para que se assegure sua continuidade. A gente passa e os llivros ficam.
É possível avaliar financeiramente o acervo do senhor?
MINDLIN: Eu nem sei o valor, mas é alto. Tem livros de milhares de dólares. Mas ninguém leva nada consigo. Eu vou levar apenas os cerca de sete mil, oito mil livros que eu li, o que dá uns cem livros por ano.
O senhor tem carinho especial por algum de seus livros?
MINDLIN: Não, não tenho. Os livros são muito ciumentos e precisamos ter cuidado para não mostrar preferências, porque senão vai ter dor de cabeça (risos). Em 1999 fizemos uma exposição no Museu Segall com cem obras. E foi uma dificuldade para escolher. Eu digo que todos os livros achavam que tinham o direito de participar da exposição. No fundo, acho que a bibliofilia é poligâmica.
Mas, se fosse para uma ilha deserta, quais os títulos que o senhor levaria, entre os que fazem parte de sua coleção?
MINDLIN: Se tivesse que ir para uma ilha deserta, levaria Machado de Assis, Guimarães Rosa e Proust. Eu gosto muito da literatura francesa. E tenho uma preferência especial por Proust. Eu tinha 20 e poucos anos e estava na casa de uma amigo bibliófilo quando chegou o Tristão de Athayde, que foi um dos introdutores de Proust no Brasil. Na ocasião, eu disse que o Proust descrevia o sono tão bem que nós adormecíamos. E o Athayde disse que bastava ler as primeiras cem páginas com empenho que você nunca mais vai deixar de ler Proust.
O Brasil não é um país de muitos leitores. Como o senhor vê a questão da cultura no país?
MINDLIN: Precisamos mostrar para a juventude que a leitura é uma fonte de prazer, e não uma obrigação. A maior parte da população vive com salário-mínimo, não tem condições de comprar livros. Num país como o nosso, ter um livro não deveria ser condição de leitura. Deveríamos disponibilizar milhares de bibliotecas por todo país.
A crítica literária tem sido importante?
MINDLIN: Sim, mas hoje existe mais resenha do que crítica. Não é a crítica que determina propriamente se um livro é bom ou ruim, porque não existem critérios rígidos, a não ser que a obra seja obviamente ruim ou obviamente boa.
É verdade que o senhor não conseguiu manter aberta uma livraria nos anos 40?
MINDLIN: Sim, e essa é uma história engraçada. Em 1946 abrimos a livraria Parthenon. Fui para a Europa e comprei um monte de livros. Quando os pacotes chegaram foi uma grande alegria. Agora, quando entrava cliente para comprar um livros, era uma tristeza. Não queríamos vender. Depois que fechamos as portas, cheguei a procurar meus clientes para comprar de volta quase todos os livros que tínhamos vendido.
(Flávio Freire)
A maior brasiliana do mundo lusófano
SÃO PAULO. O prédio onde funcionará a biblioteca Brasiliana Guita Mindlin e José Mindlin, com obras do acervo particular do casal, reunido em quase 80 anos de garimpagem, ocupará 14 mil metros quadrados de um dos terrenos do campus da Universidade de São Paulo (USP). Juntamente com o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), a biblioteca deve se tornar uma das principais referências para pesquisadores da literatura brasileira.
Obras raras como originais de “Grande Sertão: veredas”, de Guimarães Rosa e “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, porém, só serão vistas por especialistas. O público terá acesso a cerca de 20 mil títulos, com cerca de 35 mil volumes.
__ Esta é certamente a mais importante coleção sob a forma de livros reunida por um particular. É de valor inestimável. Nenhuma universidade do Brasil, de Portugal ou de qualquer outro país de lingual portuguesa tem um acervo de brasilianas como o que temos na biblioteca e no novo Instituto de Estudos Brasileiros – diz o diretor da biblioteca Brasiliana/USP, o historiador Istvan Jcanso.
O terreno onde funcionará a Brasiliana foi escolhido a dedo pelo próprio Mindlin. O prédio ficará atrás da reitoria, uma das áreas mais nobres do campus. As obras da biblioteca devem começar no ano que vem. No início de dezembro, numa cerimônia que contou com a presença dos ministros da Cultura, Gilberto Gil, e da Educação, Fernando Haddad, foi lançada a pedra fundamental da biblioteca.
Criado em 1962 por iniciativa do historiador Sérgio Buarque de Holanda, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) irá compor o prédio. O Instituto possui hoje cerca de 300 mil manuscritos, 140 mil títulos em uma coleção de mais de quatro mil obras e objetos. No acervo estão obras de artistas como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Flávio de Carvalho, Anita Malfatti e Lasar Segall.
O Globo (RJ) 28/12/2006