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José Lins do Rego visto pelo fascínio de Vladimir Carvalho

 

Documentarista faz uma homenagem de fã ao escritor paraibano

Carlos Helí de Almeida

A objetividade, ou seja, a imparcialidade diante do tema ou personagem a ser investigado, está entre os principais objetivos do manual do bom documentarista. Velha raposa do gênero, Vladimir Carvalho manda este e outros mandamentos para o alto em O engenho de Zé Lins, um descarado afago à memória do escritor paraibano José Lins do Rego (1901-1957), sem comprometer o brilho de seu trabalho. O novo filme do cineasta, responsável por poderosos documentos de fundo sociopolíticos, como O país de São Saruê (1971) e O evangelho segundo Teotônio (1984), oferece um olhar apaixonado sobre o autor do romance Fogo morto (1943), que tanto influenciou a formação de Carvalho.

- Quando eu era criança, numa época anterior à TV, meu pai lia para mim trechos dos livros do Zé Lins - lembra o diretor, nascido em Itabaiana (PB) há 72 anos.

O engenho de Zé Lins contém preciosos depoimentos do escritor Carlos Heitor Cony - segundo o qual o movimento modernista começou no Nordeste, com a literatura de Lins, Rachel de Queiroz e outros escritores da região. Também conta com a contribuição de outros contemporâneos do escritor, como o dramaturgo Ariano Suassuna e o poeta amazonense Thiago de Mello. Este último, que conviveu com Zé Lins nos últimos três meses de vida do escritor, morto em decorrência de cirrose hepática, descreve com emoção, no filme, a degradação física do amigo.

- Quis mostrar o ser humano por trás do escritor, com todos os defeitos e méritos - justifica Carvalho, que, na entrevista a seguir, ao JB, descreve a lógica do método de abordagem de fã.

É sabido que o filme nasceu de sua admiração de infância por Zé Lins. Como essa admiração se manifestava naquela época?

- Por conta das histórias que meu pai narrava a respeito de Zé Lins e do ambiente em que vivi numa cidade do interior. Fui filho único até os 8 anos e sofri das mesmas interdições que Zé Lins criança enfrentou: proibido dos banhos no rio Paraíba, o mesmo das histórias de Zé Lins, e de brincar com os moleques que viviam em liberdade. Eu tive um tio Juca assim como o personagem de Menino de engenho. Tudo isso concorria para uma identificação que só fez crescer por mais de 60 anos.

Até que ponto essa admiração interferiu na objetividade do documentário?

- Eu me deixei levar pela subjetividade, de maneira a trazer para dentro do filme o clima e a força de Zé Lins. Retrabalhei esse aspecto na edição ao descobrir que o romance Menino de engenho era quase que simbiótico com o livro de memórias Meus verdes anos, o último livro dele, um explicando o outro como num intercurso. Isso concorre para apagar, no filme, uma linha imaginária entre documentário e ficção.

Há pequenas e grandes revelações sobre o escritor, como a encenação da Paixão de Cristo, que virou um trauma para o então garoto Zé Lins, ou mesmo o tiro acidental que matou um amigo de infância. Como foi lidar com esses fatos?

- Esses fatos já eram do conhecimento público. Uma prima de Zé Lins, Maria Emília, de 90 anos, revelou os segredos da família. Hoje eles convivem normalmente com o episódio do tiro e não se sentiram constrangidos. O caso da Paixão de Cristo, única encenação de que lancei mão no filme, materializou uma página das suas memórias de infância. Usei de toda discrição para transmitir o fato humano, sem alardes.

Por que o filme levou cinco anos para ficar pronto?

- Demorei para terminar o filme por falta de recursos, problema crônico do documentário no Brasil.

Em termos de estilo, você considera O engenho de Zé Lins um passo adiante?

- O filme representa para mim uma espécie de volta às origens, uma viagem de volta a temas meus já conhecidos, no meio nordestino. Mas é em muito diferente de tudo que venho fazendo, sobretudo se considerarmos meus dois últimos filmes "brasilienses", Conterrâneos velhos de guerra (1991) e Barra 68 (2001), filmes do asfalto, com uma carga de compromisso muito forte, na linha de uma memória épica - para não dizer política - da realidade. Quanto ao estilo, eu o percebo como conseqüência do tratamento dado aos variados conteúdos. Ambos afloram sempre entrelaçados.

Jornal do Brasil (RJ) 14/12/2007

13/12/2007 - Atualizada em 13/12/2007