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Fila anda para João Ubaldo

 

Treze dos livros do escritor baiano são relançados pela editora Alfaguara

Acostumado a usufruir há anos dos benefícios oferecidos pelo computador, o escritor João Ubaldo Ribeiro não resiste, porém, a um toque de nostalgia - enquanto escreve, deixa acionado um programa que transforma o som de seu dedilhar de teclas no antigo barulho de máquina de escrever. Até a mudança de linha faz lembrar a corrida do carro.

"Isso me faz recordar do tempo em que trabalhava no jornal, quando cumpria horários rígidos - o que também me ajuda a não atrasar meus trabalhos", conta ele, no escritório instalado em seu apartamento, no bairro carioca do Leblon.

As tarefas, de fato, são múltiplas: além da coluna semanal publicada no "Globo" e no "Estadão" (a qual escreve regiamente às quartas-feiras), Ubaldo dá contornos a seu novo romance (a ser publicado, espera-se, ainda neste ano, pela Nova Fronteira) e se empenha em projetos para a televisão - ao lado do poeta Geraldo Carneiro, prepara uma minissérie e um seriado interativo, "Faça sua história", cujo piloto foi exibido pela Globo no final do ano passado.

Finalmente, contrariando a fama de sossegado atribuída aos baianos, Ubaldo participa do relançamento, em grande estilo, de 13 de seus livros, agora sob o selo da Alfaguara.

E a fila começa a andar com dois pesos pesados: "Viva o povo brasileiro", lançado em 1984, e "Sargento Getúlio", de 1971. Sobre estes e o restante de sua obra, o escritor vai participar de um debate no Centro Cultural Banco do Brasil, no dia 11, encontro mediado por Geraldo Carneiro.

Mestiçagem

Autor de uma escrita contraditoriamente barroca e lapidada, João Ubaldo produz uma literatura mestiça, no entender da pesquisadora Zilá Bernd, em várias dimensões: na da linguagem que, inspirada na tradição oral, é totalmente reinventada; nas fontes de inspiração, incluindo desde a cultura popular nordestina até o clássico (Homero, Shakespeare, Rabelais, Baudelaire); e na dimensão temática, ao unir temas filosóficos (como o Mal) com tópicos extraídos das religiões afro-brasileiras. "A mistura é ainda temperada com o sal da sensualidade, do erotismo, do humor e da malícia", afirma Zilá. "Mas é um processo em que nada foi planejado", ressalva Ubaldo.

Em meio a diversas pilhas de livros e com a praia da sua Itaparica ilustrando o fundo da tela de seu computador, João Ubaldo conversou sobre mágoas, personagens insubordinados e o novo livro.

Por que você trocou a Nova Fronteira pela Alfaguara?

JOÃO UBALDO - O curioso é que eu já era publicado pela Alfaguara na Espanha. Mas aconteceu o seguinte: fiquei chateado por não ter sido avisado da compra da Nova Fronteira pela Ediouro. Soube por terceiros e fui vendido junto, por fazer parte do catálogo. Me dou bem com os novos donos, mas foi um processo atabalhoado que me fez sentir abandonado. Fazia 30 anos que estava na Nova Fronteira, onde deixei originais, bagulhos que trouxe do exterior, ou seja, era uma espécie de minha casa. Por isso, fiquei atônito, desamparado. Pior: não sei fazer negócios. Tenho um agente, também um grande amigo pessoal, Thomas Colchie, que me socorreu. Como é amigo do Roberto Feith, ele negociou minha transferência para a Alfaguara. Mas sobraram alguns rabos de contrato, como um romance inédito que ainda vou publicar pela Nova Fronteira neste ano. Ou seja, estou com um pé lá, outro cá.

Inicialmente, são 13 livros que agora migram para a nova editora. Como é seu processo de criação?

Não é planejado, são fiapos de histórias, às vezes cenas, que me chegam. Adoro observar as pessoas. Eu gostava de almoçar sozinho, em um hotel antigo de Salvador, para observar as pessoas disfarçadamente. Aí entrava um sujeito com uma moça e, a depender da forma como conversavam, ele saía de lá como prefeito de não sei onde, enfrentava um problema terrível com sua mulher feiosa, mas boa gente, e agora transava com aquela moça, sua secretária, que já pensava em chantageá-lo. Eu biografo as pessoas, especialmente casais. Aí comento essas histórias com a minha mulher e, dependendo do resultado, acho que tenho uma idéia para um livro. Só sei escrever assim.

Mas o computador facilita o trabalho, não?

Sim, facilita mexer no texto. Quando eu escrevi "Viva o povo brasileiro" na máquina de escrever, em 1984, enfrentei problemas que hoje não tenho. Foram ao todo cerca de 1,7 mil laudas datilografadas e, de repente, lá pela, digamos, 780, via que, se modificasse um determinado fato que sucedeu antes, melhoraria a história. Mas até encontrar essa determinada cena, cortar e colar a nova versão, era um inferno tal que eu preferia deixar como estava.

Assim, deve ter tido gente que se casou e se deu mal no casamento porque tive preguiça de fazer as pazes (risos). Tenho uma sistemática no trabalho que não modifico nunca: faço sempre pela ordem, ou seja, crio o título, depois a dedicatória, em seguida a epígrafe (que normalmente também invento), para, então, começar o romance, mesmo não tendo idéia da história.

Até que ponto sua formação acadêmica, a leitura que você fez dos clássicos, está presente na sua obra?

Acho que tudo está lá, guardado. Passo por um fenômeno que ataca outros escritores, ou seja, a sensação de que não fui eu quem escreveu aquilo. E, para não ser hipócrita, garanto que são manifestações narcisistas (risos). Tenho desde influências chiques, como Homero, até outras nem tanto, como Mark Twain. Sem esquecer de Monteiro Lobato, além de Shakespeare, dois autores que li muito. Mas, desde meu primeiro livro, tomo a mesma medida: a de não ler nada enquanto produzo porque acabo plagiando sem querer. Afinal, se gosto de um volteio de frase qualquer, acabo incorporando-o ao meu patrimônio de ferramentas literárias e solto a frase alheia com a maior cara-de-pau, como se fosse minha. Aconteceu durante a escrita de meu primeiro livro, "Setembro não tem jeito": plagiei Stendhal lá no meio da história. Felizmente, meu anjo da guarda buzinou e desconfiei de que aquele trecho não era meu. A partir dali, não li mais nada.

Você se preocupa em evitar que a linguagem se torne também uma protagonista?

Não me incomodo. Tenho muito apreço, até. Tenho narradores itaparicanos, que combinam pouca sofisticação com uma erudição única, e ninguém vê incongruência nisso, pois há uma certa verossimilhança nesse narrador maluco. Não me incomodo que meus personagens sejam insubordinados. Às vezes, acontece de a narrativa entalar porque estou tratando de forma errada determinado personagem, até ele assumir o comando da história. Quando escrevi "A casa dos budas ditosos", pensava em uma mulher de 78 anos, mas a desgraçada insistia em ter 68. Tentei forçar a barra, mas desisti.

Algum livro foi mais complicado?

Depende do momento. Escrevi alguns livros na fase ruim do alcoolismo. Bastava estar acordado para estar bebendo. Foram torturantes. Escrevi meia versão dos "Budas ditosos" que, certamente, condenaria o livro ao fracasso. Era coisa de bêbado. Graças à minha fé, consegui retomar o livro, mexer em três ou quatro fases, e evitar que se descaracterizasse a personagem.

E o livro novo?

Está atrasado, mas pegará pique. Tive problemas pessoais (depressão, morte da minha mãe), mas sou um homem de cota. Criei com o Rubem Fonseca uma forma de medição de produção diária: temos um Graham Greene, que escrevia 500 palavras por dia. Um Conrad, que se aproxima de mim, produzia 800 diárias. E uma Virginia Woolf, minha meta agora, com 1,2 mil palavras. Mas gosto de lembrar uma frase de Glauber Rocha, que adotei na carreira: o artista não mente.

Tribuna da Imprensa (RJ) 4/3/2008

05/03/2008 - Atualizada em 04/03/2008