Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Noticias > "Eu me recuso a morrer"

"Eu me recuso a morrer"

 

Às vésperas de completar 80 anos, Ariano Suassuna vê sua obra-prima chegar à TV, critica editoras e assume que gosta de novela

Nelito Fernandes

Vestido todo de branco como seus ralos cabelos, Ariano Suassuna entra no salão do Hotel Glória para a entrevista e admira-se com a suntuosidade do lugar. "Vixe, parece o Senado nos tempos do Império", diz. Às vésperas de completar 80 anos, estava de bom humor para a última entrevista do dia. Pouco antes da conversa, o gravador do repórter de Época quebrou. "A culpa não é sua: eu não gosto das máquinas, elas não gostam de mim. Por isso seu gravador quebrou, elas tentam se vingar de mim o tempo todo", disse ele, antes da conversa que durou 40 minutos e só terminou quando Ariano, com a voz rouca, disse que não conseguia mais falar. A seguir, os principais trechos da entrevista.
 
Época - O senhor já disse que se fossem queimar todos os seus livros e só pudesse escolher um, escolheria "A Pedra do Reino". Por que?

Ariano Suassuna - Porque foi nele que eu expressei de modo mais completo todo o universo interior que se tumultua dentro de mim. As peças são muito baseadas em diálogos. No romance, você pode trazer os delírios, os fantasmas dos personagens, ir e voltar no tempo.

Época - O senhor acha que a TV vai conseguir captar esse universo interior dos personagens?

Suassuna -Acredito que sim. O Quaderna é ao mesmo tempo um sonhador e um pícaro, megalomaníaco, um poeta frustrado. Todo o livro é dominado por um ambiente quase onírico, quase de sonho. A TV pode reproduzir isso e até ampliar.
Época - A Pedra tem algo de autobiográfico, não?

Ariano - De certa forma eu busco uma espécie de redenção pela morte de meu pai (o ex-governador João Suassuna, assassinado durante a revolução de 1930). Na década de 50 eu tentei escrever uma biografia dele, mas não consegui, a carga de sofrimento era grande demais para mim. Depois tentei um poema e não consegui também. Em 1958, comecei a tomar as primeiras notas do que seria a Pedra. O livro é a descoberta do rei que nunca morre, é dedicado a meu pai e mais 12 pessoas.

Época - No romance, o crime não tem solução. Não se sabe se foi suicídio ou assassinato. O senhor acha que o espectador da TV vai gostar de uma série que tem final em aberto?

Ariano - A história foi baseada num primo de minha mãe, que assassinou o presidente João Pessoa. Ele foi encontrado morto dentro da cela e até hoje ninguém sabe se mataram ou se foi suicídio. Para a TV eu reescrevi e criei um final mágico, acho que as pessoas vão gostar.

Época - O senhor gostou das adaptações já feitas de sua obra para a TV?

Ariano - Começaram a me procurar na década de 60 com propostas de levar peças e romances para a TV mas eu nunca quis, porque queriam que eu me adaptasse à TV e eu achava que a TV é que tinha que se adaptar a mim. Quando encontrei o Luiz Fernando (Carvalho, diretor), a identificação foi perfeita. Se eu tivesse deixado antes, eu teria vendido a alma e não ganhado nada para o corpo.

Época - Falando em TV, o que o senhor assiste hoje na televisão?

Ariano - Por incrível que pareça eu gosto de ver novela. São muito melhores do que esses enlatados americanos, dão de mil. Mas não é de toda novela que eu gosto, não. Também temos novelas ruins. A última que gostei muito foi renascer.
Época - O senhor já assistiu ao Big Brother?

Ariano - Não gosto. Não perco meu tempo, fico com muita pena porque eu conheço o Pedro Bial. É um desperdício usarem o Bial para fazer aquilo.

Época - E o "Arriando Suassunga", personagem do Casseta, o senhor já viu?

Ariano - Vi uma vez mas não achei engraçado. Meus netos me disseram que eu dei azar, porque os outros foram muito bons. Acho que ele ficou muito parecido comigo, com aquelas sobrancelhas brancas enormes. Fico feliz porque para mim é uma homenagem um escritor aparecer num programa de humor visto por tanta gente. Vai ver não tem outro escritor tão caricato, né (risos).

Época - O senhor falou nos seus netos. São 15 e 11 vivem no mesmo quintal que o senhor. Dá para trabalhar com tanta criança perto?

Ariano - Ah, dá. Eu adoro estar com eles, brinco o tempo todo. Só não jogo futebol, porque não consigo.

Época - E videogame, já jogou com eles?

Ariano - Não consigo, eu não uso nem computador. Não estou dizendo que não acho o computador importante, mas eu não uso. Como eu disse, tenho um problema com as máquinas. Eu escrevo à mão, meu genro digita tudo, imprime, eu releio e ele muda. É mais fácil assim, não me acostumei. Eu gosto de ter o contato com o papel, sinto prazer em escrever à mão. Já disseram que o computador vai substituir o livro, eu não acho. Eu adoro ler na cama, sentir o livro. Não vou dormir com um computador no colo...

Época - E o que o senhor anda lendo?

Ariano - Estou relendo muitas coisas, como o Conde de Monte Cristo, que muita gente considera subliteratura mas que eu tenho como um dos maiores clássicos já escritos; reli Scaramouche, reli Don Quixote. Também li e reli dezenas de vezes a obra completa de Dostoievski. Eu tenho uma obsessão por livros e não tenho mais tanto tempo para me arriscar. O último romance novo que li foi "2 irmãos", de Milton Hatoum, uma releitura de Caim e Abel, muito boa mesmo. Mas tenho preferido reler o que mais gostei durante a vida.

Época - O que o senhor acha de não termos há meses um único livro brasileiro nas listas de mais vendidos em ficção?

Ariano - Estão comprometendo o público brasileiro com livros de segunda ordem. Se houvesse uma ajuda do poder público e da mídia para divulgar nossos autores, o povo leria. Já tivemos grandes autores brasileiros que foram muito lidos. Eu nem li Harry Potter, mas não gostei. As crianças deveriam estar lendo Monteiro Lobato. Eu ia bem na escola e ganhei uma coleção completa de Monteiro Lobato da minha mãe. Aquilo me influenciou para sempre. Como Lobato, eu também usei personagens para dar vazão a um lado irreverente, o João Grilo. Sempre que eu vejo Emília eu me lembro do João Grilo. Tem que editar livros nossos, publicar, divulgar. Um país não vive quando a juventude só tem acesso a valores de outros povos.

Época - Mas as editoras acham que o povo não compra...

Ariano - Eu tinha um amigo, o Capiba, que dizia que as pessoas diziam que cachorro só gosta de osso porque só dão osso ao cachorro. Dá filé para o cachorro para você ver. Se só dão osso, como eles vão gostar de filé? Não estão deixando a juventude brasileira ter acesso ao filé.

Época - O senhor fez campanha pela reeleição de Lula. O mensalão não o desanimou?

Ariano - Não sou político, mas sempre fui de esquerda. Tenho que ajudar aquele que eu acho que pode ajudar o Brasil. O Lula tem a sabedoria popular para enfrentar as dificuldades. O Lula tem uma coisa de Sancho Pança, de Cervantes.

Época - Mas Sancho não era um ingênuo bobalhão?

Ariano - Tanto Lula quanto Sancho precisam ser reavaliados. Acho que no futuro, quando fizerem um balanço de tudo, eles serão.

Época - Por falar em balanço, tem gente que aproveita aniversário para fazer um balanço da vida até ali. Qual é o seu?

Ariano - Não tem muita diferença entre fazer 70 e 80 anos, tem vantagens e desvantagens. Se por um lado você tem mais experiência e não tem mais aquela urgência, também está mais perto da morte. Eu chego aos 80 bem humorado e animoso. A vida me deu muitos golpes, mas eu segui de cabeça erguida. Tem um causo que eu conto de dois artistas de um artista de circo que ia fazer papel de santo. O dono do circo disse a ele que o leão correria atrás dele e ele cairia. O leão ia chegar perto dele, cheirar e perceber que ele era um santo e que por isso não ia matá-lo. O dono pergunta ao artista: "O Senhor entendeu?". O artista responde: "Entender, eu entendi. Só não sei se o leão entendeu". No Nordeste, a gente chama a morte de Caetana. Eu não gosto dela não. Eu não pretendo morrer. Toda morte tem um componente de suicídio e eu não me rendo não. Essa é minha teoria. É aquela história do leão. Não sei se dona Caetana vai entender também.

Revista Época on-line

05/06/2007 - Atualizada em 04/06/2007