Ricardo Miranda
Da equipe do Correio
Rio de Janeiro – Espécie de biógrafo oficioso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o professor, cientista político e acadêmico Cândido Mendes, reitor da universidade que leva seu nome, acaba de lançar Lula apesar de Lula (Editora Garamond), uma espécie de alerta vermelho ao presidente reeleito. Em seu quarto livro sobre o atual presidente — depois de Lula: a opção mais que o voto, Lula entre a impaciência e a esperança e Lula depois de Lula —, Cândido Mendes, 78 anos, afirma que o operário-presidente vive uma espécie de contagem regressiva histórica. “Ou ele se torna fortíssimo em um ano e meio, ou não terá mais nenhuma expressão.” Mesmo tendo apoiado a reeleição, o professor mantém sua pena a serviço da história, lançando um aviso que muitos, mesmo próximos do Planalto, não ousariam dar: a paciência do povo tem limite. Pior: ninguém sabe qual é esse limite. “Lula foi eleito por um inconsciente coletivo. E o inconsciente coletivo dá prazos que não são do Brasil oficial”, explica. O encanto, informa, pode se quebrar de repente, mesmo com toda a força das urnas. Sobre 2010, o professor lança um presságio. Se tudo der certo, o sucessor de Lula, mesmo apoiado por ele, não será do PT. Esse nome poderia ser o do governador de Minas Gerais, Aécio Neves (PSDB).
Narrando o que chama de “história imediata”, uma lupa colada sobre a história ainda em curso — método que já rendeu outros livros sobre os governos Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso —, Cândido Mendes procura entender as razões para a popularidade presidencial, mesmo com toda a seqüência de denúncias contra o seu governo. “Lula é maior do que o partido e hoje é maior que a sua própria persona. Ele é portador dessa esperança, o que o transforma num governante frágil”, avalia o professor. Em entrevista ao Correio na reitoria de sua faculdade, no Centro do Rio, Cândido Mendes diz que a aliança PT-PMDB será o embrião de uma nova força política e que Lula não precisará praticamente do Congresso para governar. Legislativo que, segundo ele, é tão ruim que só serve à Cosa Nostra. Ele acredita que reforma política alguma acabará com o clientelismo, a corrupção e o caixa 2 na política, que já é institucional. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Voto inconsciente
Por que o senhor decidiu escrever um quarto livro sobre o presidente Lula?
Estudar a história imediata é manter o acompanhamento dia-a-dia do presidente, sem que isso signifique um diário. É uma velha vocação ligada à minha formação, combinando história e ciência política, e que me levou antes a escrever três livros sobre os presidentes Collor e Fernando Henrique. Infelizmente não existe uma história imediata do presidente Getúlio Vargas e seu diário pessoal é a maior contradição com sua importância como presidente.
O senhor apoiou publicamente a reeleição do presidente Lula. É possível essa paixão ou admiração de um intelectual por um homem público?
A paixão é pelo Brasil. E a admiração é pelos que conseguem responder a essa expectativa. Minha geração sempre defendeu a idéia de que, nos países que saíram de uma estrutura colonial, como o nosso, o povo como povo é melhor do que a elite como elite. E que as estruturas político-partidárias não capturam a consciência da mudança. Da minha militância na esquerda católica brasileira (foi secretário-geral da Comissão de Justiça e Paz por 25 anos) vem a idéia de que, em países assim, a consciência da mudança depende de quem a sofre, não de quem a patrocina.
O governante Lula está à altura da lenda do operário-presidente?
Lula é maior do que o partido e eu diria que hoje é maior que a sua própria persona. Ele é detentor de uma simbologia de mudança absolutamente transcendente ao seu desempenho. Ele é portador dessa esperança, o que o transforma num governante frágil. Daí Lula no segundo mandato ser um Lula sem um partido, sem herdeiros e que ganha com o chamado povo de Lula, esse Brasil que saiu da marginalidade. Essa eleição resistiu ao mensalão, aos sanguessugas e ao moralismo — a configuração da derrubada de Vargas. Essa resistência foi a garantia de que se virou a página.
Lula tem repetido que não tem mais o direito de errar. Não tem mesmo?
Lula foi eleito por um inconsciente coletivo. E o inconsciente coletivo dá prazos que não são dos partidos, nem do Brasil oficial. E ao mesmo tempo tem condições de paciência que são muito diferentes e que vêm de toques distintos. No Brasil de hoje o toque da mudança não vem pelo emprego. Lula não ganhou ou fracassou pela pobreza com que apresentou novos empregos ao fim do primeiro quadriênio. Ele tocou o povo pelo acesso a serviços e pelo que representou o Bolsa Família. A novidade do povo de Lula é que ele se mobilizou pelo acesso a educação, saúde e programas sociais. E, numa nova perspectiva, esse povo não quer mais, ele quer ter o que tem. Mudaram as formas de acesso desse Brasil marginal às condições de estabilidade no mercado de trabalho. Ele se beneficiou do Bolsa Família, do salário sem carteira, da experiência do minicrédito e do auxílio à agricultura. Não é o Brasil dos sindicatos que ganha com Lula, nem mesmo o Brasil dos movimentos sociais. Por isso esse fato extraordinário: a eleição de Lula independente de partidos, das suas lideranças e sem uma cobrança imediata que não seja “rehipotecar-lhe” a esperança.
Depois de tantos escândalos envolvendo pessoas próximas ao presidente, o senhor diria que o povo absolveu Lula ao reelegê-lo ou decidiu que isso não importava mais?
Embora historicamente isso seja irrelevante, eu, pessoalmente, acho que Lula não sabia. Mas que o PT prevaricou, não tenho a menor dúvida. Isso vem da própria tentação da máquina. Isso contaminaria qualquer sistema que chegasse ao poder. O grande problema hoje é saber até onde o próprio PT vai fazer a sua purga. O que me parece é que o questionamento político do problema considerou que o moralismo tem que ser visto na sua verdadeira dimensão. Não é a do governo dos puros, mas de que a nação injusta deve prevalecer sobre o país decente.
Como fica Lula para a história?
Lula fica na história por ter sido o presidente da mudança e da consciência da mudança, que não pode jamais ser exprimida pelo Brasil oficial. Quem mudou, sabe disso. E Lula conseguiu se identificar com isso de uma maneira extraordinária. Não há nada de carismático em Lula. Ele é a expressão de uma identidade ligada à condição de mudança. É o companheiro, não é o líder. Isso precisa ficar muito claro. Ele é o cidadão da prodigalização do espetáculo e desse absoluto companheirismo. Nesse sentido se vê a distinção de um personagem carismático, ainda que apodrecido, como Collor. O carismático é um líder, ele assume a expectativa, não dá mais conta dela e vai em frente. A política de Lula é o contrário do populismo. Esse é o lulismo: a política de melhoria social independe da relação de emprego numa sociedade de classes.
O que seria essencial fazer nesse segundo mandato?
Ele vai trabalhar a mobilização do Bolsa Família de uma maneira ainda mais intensa, vai continuar a política do minicrédito rural, somado ao que me parece o essencial: uma política urbana que até hoje não pôde ser desenvolvida. Nesse processo, entrará uma forte ação do Estado. Estaremos diante de mobilização de trabalho não especializado que vai dar emprego e atender a essa fome de vagas. Tudo isso terá muita influência nas futuras eleições municipais (de 2008). As bancadas regionais dos partidos vão se vincular ao governo Lula independentemente das siglas partidárias. E daí a importância fundamental do PMDB, que é o grande parceiro de Lula por ser o maior partido brasileiro e estar enraizado em qualquer município do país. Essa nova expressão, nascida de uma aliança do PT com o PMDB, colocará pela primeira vez na oposição com marcas certas o PSDB e o PFL. Teremos pela primeira vez um Partido Conservador no Brasil.
E o PT?
O PT esgotou muito de seus quadros e não se renovou. Quais são as novas lideranças federais do PT? São muito poucas. Novas lideranças vão surgir no quadro dessa grande política de urbanização e no desenvolvimento dos programas de acesso à cidadania, que foram o sucesso do primeiro mandato.
Qual a importância de uma maioria no Congresso nesse segundo mandato?
Eu não vejo em que sentido de uma maneira essencial a melhoria social de que depende o governo Lula vai exigir reformas ou mudanças de estatutos jurídicos no Congresso. O presidente vai coabitar com a estrutura burocrático-parasitária do serviço público e da previdência. O acordo de Lula com o PDT elimina o reformismo nesse aspecto. O novo governo Lula não vai entrar na briga da desburocratização do aparelho público brasileiro. Ele está confiando no desenvolvimento das políticas sociais que não precisam em nada do Legislativo.
E a reforma política?
Reforma política só interessa a quem não quer fazê-la. A reforma com o que está no Congresso, com a consagração do caixa 2, com a absolvição dos sanguessugas no Senado, nos dá a certeza de que o Brasil continuará clientelístico. O Congresso vai continuar a servir à Cosa Nostra. Quem se elegeu, se elegeu com o caixa 2. As negociações do Orçamento vão continuar. A absolvição dos sanguessugas criou um brevê de impunidade para o novo Congresso, que é pior que o atual. Uma consciência brasileira que não começa pedindo a desinvestidura de um (deputado) Clodovil (Hernandez) já pagou o pato do achincalhe nacional. Quem joga três quartos de milhão de votos num personagem desses não acredita que o Congresso vá servir a outra coisa.
O que representa para a democracia um Congresso assim?
Isso é um risco institucional. E ainda há uma instituição pior do que o Legislativo, que é o Judiciário, com esse número enorme de ganhadores de salários e proventos além do máximo permitido. O Legislativo e o Judiciário ainda estão mais atrasados no processo de mudança que o próprio Executivo. Eles continuam corporativos. A consciência política do povo avançou mais do que a consciência política da elite.
Que quadro político o senhor visualiza para 2010?
Ou o presidente se torna fortíssimo em um ano e meio ou não terá mais nenhuma expressão. De repente, o encanto acaba. Ninguém conhece os prazos secretos da paciência. Isso vai depender muitíssimo de um auscultamento popular constante, da busca por bons conselhos e sobretudo da revitalização dos movimentos sociais. Por isso, esse mandato continua entre a impaciência e a esperança.
Sem Lula no páreo, haverá uma alternância de poder?
Vai haver mudança do poder, não necessariamente alternância. Lula tem dois anos para definir, num governo dessa união nacional restrita, o que pode ser uma política de mudança. Acredito que o sucesso de Lula vá levar outros a disputar sua continuidade, não a sua oposição. E acho que faz parte da mineirice esse segredo. Não vejo um Lula contra Aécio, vejo um Aécio herdeiro de Lula.
Correio Braziliense (DF) 03/12/2006