Em “O outro lado”, Ivan Junqueira reflete sobre seu ofício e sobre a existência
Ricardo Vieira Lima
“Deus é um conceito através do qual medimos a nossa dor", diz a letra de "God", a inesquecível e simbólica canção de John Lennon. De fato, parece ser essa uma das funções do Deus "déspota, deposto", "ambíguo e pretérito", na poesia de Ivan Junqueira. Em "O outro lado", 11º livro de poemas do autor (incluindo-se, nesta contagem, duas reuniões de obra e duas antologias), o nome de Deus é citado não menos do que sete vezes, quantitativo bastante expressivo, se considerarmos que, até o presente volume, Deus aparecera apenas outras sete vezes, ao longo da lírica junqueiriana.
Todavia, essa nova e acentuada “presença divina" não permite concluir que estejamos diante de um poeta religiosos ou de alguém que tenha sido objeto de uma recente conversão. O Deus de Ivan Junqueira, por vezes . próximo ao "deus canhoto" drummondiano, não é uma presença religiosa, nem representa as qualidades do homem idealizadas. Ao contrário, é a medida da dor humana. Junqueira não deseja, jamais desejou, "restaurar a poesia em Cristo". Para ele, Deus é o imponderável, o mistério, aquilo que o homem não consegue controlar e chama de "fatalidade" ou "destino".
O poeta "que finge partir para permanecer mais”
Nesse sentido, a epígrafe que abre o livro é sintomática. Ivan Junqueira retirou-a da obra de Fernando Pessoa: "Há um poeta em mim que Deus me disse". Esse verso retrata, com precisão, o patamar alcançado pelo autor. Até a publicação de "A sagração dos ossos" (1994), seu penúltimo livro, Junqueira era mais conhecido - e reconhecido – como crítico literário, ensaísta e tradutor. Pois bem: "A sagração" arrebatou os mais significativos prêmios literários do país e alçou Junqueira à condição de um dos maiores poetas brasileiros vivos. A partir desse feito, ele foi, aos poucos, abandonando os demais afazeres, para poder dedicar-se, quase que com exclusividade, à sua própria poesia. Daí o trecho inicial de "Prólogo", esse admirável poema-abertura de "O outro lado": “Eu sou apenas um poeta/ a quem Deus deu voz e verso."
Não obstante, Junqueira, ainda que lentamente, começa a despedir-se das coisas, dos amores, da vida. Primeiro, refletindo sobre seu oficio: "A mão que escreve é aquela/que compôs alguns versos,/odes, canções de gesta/e elegias sem metro,/às quais ninguém deu créditoInem ouvidos" (A mão que escreve"). Em "São duas ou três coisas", primoroso soneto composto com a paixão e o rigor formal que lhe são peculiares, Junqueira produz um texto ambíguo, onde não fica claro se está falando de um amor platônico, fantasioso, irrealizado, ou ainda da finitude de sua obra poética: "São duas ou três coisas que eu sei deIa,/ e nada mais além de seu perfume./Sei que nas noites ermas ela assume/esse ar de quem flutua na janela,/ (...) Sei que ela vive no halo de uma vela/e queima, sem consolo, em minha cela."
Saudável retorno ao início da carreira
O poeta das despedidas precoces, aquele que "finge partir para permanecer mais" - de acordo com a arguta observação de Eduardo Portella, nas orelhas do volume -, prossegue, agora, em “O que me coube", e, principalmente em "Vai tudo em mim": "Vai tudo em mim, enfim, se despedindo/neste pomar sem ramos ou maçãs,/sem sol, sem hera ou relva, sem manhãs/que me recordem o que foi e é findo." Ainda sob o mesmo tom elegíaco, destacam-se peças como "Indagações", "Eis que envelheces", "Carta régia", "A tênue luz", e sobretudo os irretocáveis "Testamento" e "O testemunho", poemas que, ao lado do antológico e caudaloso ‘O rio", estão entre os melhores do livro.
Quanto ao aspecto formal da obra, avultam as elegias e os sonetos, com destaque, ainda, para o notável uso da terça rima dantesca. O mesmo se pode dizer com relação à presença da assonância no verso junqueiriano, conferindo-lhe rara musicalidade, a exemplo de: "os ratos roem os restos"; "traçam a trêmula trama" ou "a fria fauna do que é findo aflora".
A par do comprovado domínio das formas poéticas tradicionais, o autor de “Os mortos" realizou, desta vez, um saudável retorno ao início de sua carreira, investindo novamente em poemas de fatura mais prosaica, onde o verso é branco e sem metro, como nos casos de "A árvore", "Una voce poco fá" ou "Baía formosa", o qual surpreende por apresentar duas belas estrofes que funcionam como haicais independentes do resto do poema: "o pássaro na relva/dia (grama)/ entre o solene e o banal” e "arbustos retorcidos/o gemido esguio das casuarinasIfazia frio na baía".
A aposta total no "infinito e na beleza"
Poeta de temas e dicção classicizantes, era de se esperar que, como exímio cultor dos princípios da chamada "ars antiqua", Junqueira se debruçasse sobre a tópica existencial do "Para onde vamos?", indagação fundamental do poema “O outro lado", que intitula o livro: "Diz-me: o que haverá do outro lado,/quando o corpo a tua alma/se desgarrar e, arrebatada,/romper o mármore das lápides/(...) A eternidade? Deus? O Hades?/(...) A salvação? Ou não há nada?", conclui o poeta, eivado de dúvidas, num tom pessimista semelhante ao do Raimundo Correia de "Fetichismo".
Mas Ivan Junqueira sabe que não há partida possível para quem apostou tudo "no infinito e na beleza". O poeta que acreditava que a vida era maior que a morte, percebe, enfim, que morte e vida são apenas faces de uma mesma moeda, já que "somos o princípio e o fim, na mesma medida" e "a um só tempo o êxtase e a agonia". Desse modo, o volume em questão pode ser lido também como uma elegia única - a elegia de uma despedida sem partida, formada por um sublime e coeso conjunto de textos, incorporados que estão, de agora em diante, ao cânone da poesia brasileira.
O outro lado, de Ivan Junqueira
Editora Record, 111 pgs. R$ 30
O Globo (RJ) 22/12/2007
02/01/2008 - Atualizada em 02/01/2008