No Trip FM, ele bateu um papo com Paulo Lima sobre seu livro “Escrever É Humano: Como dar vida à sua escrita em tempo de robôs”, em que defende, com a ajuda de Tchékhov, Clarice Lispector, Jorge Luis Borges e Chimamanda Adichie, que escrever literatura é trabalho de gente.
O colunista da Folha de S.Paulo relembra a própria trajetória e comenta o papel da formação literária no Brasil: “Se eu dependesse só do que a escola me mostrou, eu teria ódio da literatura. Eram livros completamente fora da época e do lugar. Se você não pegar os adolescentes pelo prazer de ler, aquilo vira uma obrigação escolar chata. A literatura é o contrário disso. Literatura é a vida.”
Trip. Onde você nasceu? Como era o entorno, sua família?
Sérgio Rodrigues. Eu nasci em Muriaé, no interior de Minas, na época uma cidade bem pequena e hoje um centro regional na Zona da Mata, com mais de 100 mil habitantes. Meu pai era gerente do Banco do Brasil, então a gente se mudava muito. Quando eu tinha 12 anos, fomos para Resende, depois Itaperuna. Minha adolescência foi marcada por essas mudanças: eu era arrancado do lugar, das amizades, e tinha que começar tudo de novo. Acho que minha paixão pela literatura nasceu dessa solidão forçada. Os livros eram a única coisa estável, e eu me voltei para eles para me equilibrar emocionalmente. Cheguei ao Rio com 17 anos para fazer pré-vestibular e jornalismo. Sempre quis ser escritor, mas via o jornalismo como uma forma de profissionalizar o impulso de escrever. Ele acabou funcionando tão bem que me afastou da literatura por um tempo. Publiquei meu primeiro livro já com trinta e poucos anos.
Esse processo foi algo sofrido? Como foi sua adolescência? Tem uma medida de sofrimento, sim, mas eu não diria que tive uma adolescência infeliz. Existem histórias muito piores, mas um garoto de 14 anos não fica dentro de um quarto lendo compulsivamente se tiver muita opção. Tem um fundo de dor, mas principalmente de introspecção – e isso é fundamental para escrever. Aprendi ali, meio na marra, a lidar com meu silêncio interior.
Além da leitura, o que te formou como escritor? Você teve alguma formação específica? Não. Eu fui adolescente nos anos 70, quando não existiam oficinas de escrita como hoje. Era tudo autodidata, errando muito, batendo cabeça. Acho que o fator decisivo para eu me tornar o escritor que sou foi o jornalismo. Ele me tirou o provincianismo muito rápido. Passei a ter trânsito por todos os estratos sociais e isso nenhum outro ofício dá. Fui correspondente em Londres ainda jovem. Eu botava a culpa no jornalismo por atrasar meu primeiro livro, mas, na verdade, foi o tempo necessário para amadurecer um projeto literário que fizesse sentido.
Você critica o ensino de literatura na escola. Por quê? Porque é muito erudito, começa pelo que é mais difícil. Eu não sou pedagogo, mas fui aluno e escritor. O cardápio de leituras que me passaram teria me feito odiar literatura se eu não já tivesse meu percurso de leitura em casa. São livros ótimos, mas completamente fora da época e da experiência do adolescente. Hoje a concorrência com outras formas de entretenimento é brutal. Se você não captura o jovem pelo prazer, ele só associa literatura à obrigação chata da escola. Acho que começar pela literatura contemporânea seria mais inteligente.
Ao mesmo tempo que você cuida da língua, também aceita a língua viva. Como enxerga expressões novas, mudanças e desvios da norma culta? A literatura pode tudo: inventar palavras, errar todas as concordâncias, o que for — desde que funcione. Mas isso não significa vale-tudo. A norma culta é um dos registros importantes da sociedade e deve ser ensinada. Tirar isso de alguém seria discriminatório, porque ela será cobrada em provas, entrevistas. É uma ferramenta de ascensão social.
E a Academia Brasileira de Letras? Qual é a importância dela hoje? Você teria vontade de participar? A ABL é uma instituição cultural importante, que deve ser valorizada. Acadêmias conservam tradições — não são o lugar da ruptura. Mas acho que a ABL tem sido muito feliz nas últimas escolhas: Gilberto Gil, Fernanda Montenegro, Milton Hatoum, Ana Maria Gonçalves. O elenco está forte. Vejo um papel cada vez mais decisivo para ela num futuro em que a própria escrita humana está sob ameaça pela inteligência artificial. Quanto a mim, nunca pensei em ser acadêmico. Sou meio avesso. Mas algumas pessoas têm me procurado, já saiu matéria me citando como virtual candidato. Não tem nada concreto.
Como foi trabalhar no programa do Bial? Eu já tinha feito TV nos anos 90, como chefe de redação no Rio. Aprendi muito ali. Depois, quando o Pedro me chamou para o programa, abracei na hora. É um programa de altíssimo nível na TV aberta. Trabalhei ali por anos com muito prazer. Saí porque estava tomando tempo demais e eu queria me dedicar à literatura. Foi um gesto tresloucado pedir demissão da Globo, uma das melhores empregadoras do país, mas era o que eu precisava fazer.
O roteiro audiovisual cresceu muito. Você tem interesse nessa área? Não. Meu tempo, cada vez mais, é para a prosa — romances e contos. Mas concordo que o campo profissionalizou muito e evoluiu. Amigos roteiristas dizem que o ambiente dos streamings é um pouco selvagem: muitas oportunidades, mas modelos de gestão duros, pouca liberdade. Não conheço profundamente esse mundo para falar mais.
Falando em dinheiro: dá para viver de escrever livros no Brasil? Hoje tem mais gente conseguindo viver. Mas eu não vivo só de livros. Se não fosse o jornalismo, seria difícil. Tenho coluna na Folha, faço projetos, palestras. Tenho 25 anos de estrada e 13 ou 14 livros publicados, que vão vendendo aos poucos. Sou um long seller: vendo devagar e sempre. Juntando tudo, dá para segurar as pontas. Não é ultra confortável, mas é uma escolha. E sim, hoje há muitos best-sellers no Brasil — quem vende acima de 100, 200 mil exemplares vive muito bem.
Como você enxerga a inteligência artificial? O que mais te desconcerta nela? O fato é que o texto que a IA produz — raso, com clichê, sem imaginação — ainda assim é melhor do que o da maioria das pessoas. Porque nossa educação é muito fraca. Ela não supera o melhor texto humano, mas supera o texto comum. Um exemplo: ao revisar meu livro Escrever é humano, o Adobe sugeriu fazer um resumo. Aceitei. Em dois minutos, fez um resumo de oito páginas excelente. Uma pessoa levaria dois dias. É impressionante. E consigo imaginar que a maioria das pessoas vai preferir ler resumos. Mas ler um resumo não é ler o livro: você perde a experiência estética e intelectual. Acho que há o risco real de parte da humanidade desaprender a ler e a escrever, o que considero gravíssimo.
A IA ameaça empregos de gente que escreve? Ameaça, sim. A maior parte dos textos que circulam são funcionais, tarefas que a IA faz barato e rápido. As empresas vão escolher IA. É inevitável um grande massacre de empregos. E ainda tem o custo ambiental, que é enorme. As big techs mantêm a IA artificialmente barata. Quando nos viciarem, devem começar a cobrar.
Fala um pouco sobre erro, vergonha, falha. Tenho até sorte de ter começado no mundo analógico. Erros ficaram para trás, escondidos em edições impressas. Hoje qualquer deslize viraliza, é distorcido. É um campo minado. Antes dava para errar com mais tranquilidade.
Para terminar: Ancelotti na seleção brasileira de futebol. Dá esperança? Torço por ele. É um baita técnico. Mas chegou tarde para o ciclo da Copa: terá só um ano de trabalho. O Brasil estava uma zona. Não sei se dá para fazer muita coisa com tão pouco tempo. Ainda lidamos mal com o trauma do 7 a 1. Rimos rápido demais e atrasamos o luto necessário. O drible, meu romance, celebra criticamente a glória passada do futebol brasileiro. Se eu tivesse escrito depois do 7 a 1, talvez não publicasse. Aquele resultado mudou tudo. A gente ainda não ouviu o que ele queria dizer.
Matéria na íntegra: https://revistatrip.uol.com.br/trip-fm/ia-escrita-sergio-rodrigues/amp
19/11/2025