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ABL na mídia - Estadão - Lima Barreto, obrigatório para quem deseja entender o Brasil

 

Lima Barreto morreu em 1922, ano da Semana de Arte Moderna. Junto a Machado e Mário de Andrade, formam uma trindade de autores negros brasileiros de gênio fundamental. Importante ler o texto de Lilia Moritz Schwarcz sobre Lima Barreto (Cia das Letras). Triste Fim de Policarpo Quaresma é obrigatório para quem deseja entender o Brasil.

Hoje falarei de um livro que o autor não viu publicado: Clara dos Anjos. Enredo? Começamos com o mineiro Joaquim, que vai de Diamantina para o Rio acompanhando um naturalista inglês. Casa-se com dona Engrácia e moram na periferia da capital. Da união sobrevive só uma filha: Clara dos Anjos.

Surge no romance o perfeito vilão: Cassi Jones de Azevedo. A mãe do crápula protege o sedutor semianalfabeto e insensível. Nem as irmãs e nem o pai toleram Cassi. O rufião envolve-se em esquemas escusos e cria galos de briga como fonte de renda. Cassi seduz moças mais pobres e mulheres negras. O texto é construído para que nós odiemos o Dom Juan.

O caminho é previsível: a ingênua Clara é atraída por gestos românticos e cartas copiadas de outros autores. Ela cede e engravida. Desesperada, pensa em aborto. A angústia de Clara é absoluta. O cinismo de Cassi Jones também. O final da obra mistura emoção e revolta: “Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara e abraçou muito fortemente sua mãe, dizendo, com um grande acento de desespero:

– Mamãe! Mamãe!

– Que é minha filha?

– Nós não somos nada nesta vida”.

Sou leitor, não um especialista em literatura brasileira. Em Machado de Assis, as contradições sociais, o problema do racismo e de seres humanos escravizados, a desigualdade extrema do Brasil e as mazelas da política são tratados com um viés genial psicologizante. Machado disseca a alma humana e quase demole os valores. Porém, ele não adota uma visão subversiva. É um aplicado funcionário público, trabalhador exemplar, devotado a sua esposa Carolina, confiável entre os amigos e sempre com hábitos morigerados (aprendi esta palavra com Machado). Um exemplo? O conto Pai Contra Mãe, escrito nos anos finais do autor, tem a escravidão como pano de fundo, mas é o sentimento paterno e materno que se apresenta ali, não uma denúncia em si do horror da coisificação do ser humano.

Lima Barreto não tem fontes de renda fixas, lida com problemas com álcool, foi declaradamente rejeitado por ser negro e pobre. Seus textos são mais ácidos e sua condenação aos preconceitos é declarada. Em Lima, aborto é aborto: trágico, violento, destruidor. É aborto de negra pobre, não um debate filosófico humanista sobre a vida humana. Lima Barreto foi esmagado pela máquina que denuncia. Machado apresentou um grau de resiliência e adaptação bem maior na sua biografia com a sociedade branca e excludente que o cercou no Império e na República. Um morreu como celebrado fundador da Academia Brasileira de Letras. O outro, pobre e esquecido, nem conseguiu publicar Clara dos Anjos durante sua vida. Ambos são gênios. Ambos são negros. Ambos mudaram nossa literatura. O destino foi diverso por completo para cada um.

Não gosto de explicar tudo pela biografia. Acho entediante a pessoa que busca em um parágrafo de Clarice Lispector um universo a revelar, pelo uso de uma preposição, sua origem judaica e ucraniana. Também confesso: nunca compartilhei a ideia de que uma mulher só possa escrever sobre a opressão feminina e um negro tenha como destino a denúncia do racismo. Uma autora mulher pode escrever o que desejar, seja a evolução do capitel coríntio ou o feminismo. Liberdade feminina implica isto: você não tem um decálogo obrigatório e prévio que dite a essências antes da existência.

Todos somos inseridos na História e bastante marcados pelo nosso mundo. Vítima do racismo e de preconceitos sobre pessoas pobres, Lima parece incorporar algumas coisas negativas na sua visão de mundo. Exemplo? Ele analisa a obra missionária de um pastor norte-americano, Mr. Shays. Era a época do protestantismo de missão. Ao analisar o público simples que ia ao culto do pastor, diz: “O templo estava sempre cheio, nos seus dias solenes. Os frequentadores dessa ou daquela natureza lá iam sem nenhuma repugnância, pois é próprio do nosso pequeno povo fazer uma extravagante amálgama de religiões e crenças de toda a sorte, e socorrer-se desta ou daquela, conforme os transes e momentâneas agruras de sua existência. Se se trata de afastar atrasos de vida, apela para a feitiçaria; se se trata de curar uma moléstia tenaz e renitente, procura o espírita; mas não falem à nossa gente humilde em deixar de batizar o filho pelo sacerdote católico, porque não há, dentre ela, quem não se zangue: Está doido! Meu filho ficar pagão! Deus me defenda!”.

Estaria Lima Barreto apenas descrevendo características de pessoas pobres ou julgando como inferiores ou bizarros os impulsos “sincréticos”? Aqui cabe também sua opinião, estimado leitor e querida leitora. Usando metáfora gasta, somos anões nos ombros de gigantes. Tenho esperança na literatura como forma de pensar e de ver mais longe.

Matéria na íntegra: https://www.estadao.com.br/cultura/leandro-karnal/lima-barreto-obrigatorio-para-quem-deseja-entender-o-brasil/

25/08/2025