No artigo da semana passada falei aqui do Tempo (com maiúscula mesmo) no livro mais recente de romanista Autran Dourado, "O senhor das horas". Hoje estou de novo no Tempo, mas de um poeta, no livro de sonetos de Luiz F. Papi, "Irreparabile Tempus".
Em seu bom estudo sobre Proust (seguido de Stendhal, Balzac, Flaubert e Zola), analisou Julien Gracq o Tempo também de Beethoven e de outros compositores, achando que o "lento maestoso" de Wagner está próximo da poesia de Baudelaire. Claro que, em termos de Tempo, coloca-se Proust, com suas mais de seis mil páginas de busca do Tempo, à frente de qualquer outro escritor, terminando a última página de sua "Recherche" com a palavra "Temps" que, na sua largueza dada pela Memória, colocava-o (a ele, Proust) como vivido, pensado, segregado pelo Tempo, através da Memória, naquela vertigem de dias, semanas, meses e anos que se tornavam subordinados todo o tempo ao Tempo.
No caso de Luiz F. Papi, cada verso de seu livro esmiuça o passar dos minutos, de cada hora, da longa e infinda expansão do Tempo que se mistura com as palavras, tem a duração das palavras, além de uma duração íntima, no Tempo atravessado pelo som e na especificação de versos como estes: "O antigamente, o depois, o agora/ em uma ou tripartida dimensão/ dispersam-se no pó da vastidão/ soprada pelo Tempo". No mesmo poema os versos mostram o que sobra no fim: "O que sobrou do dia/ se esfuma na mecânica da fria/ trituração convencional da hora,/ na trôpega instância do presente/ em vertigem de fuga".
Tempo e ritmo não são palavras de sinonímia perfeita, mas pertencem ambas ao emprego de uma cadência que flui temporalmente e pode-se dizer que todo Tempo tem seu tempo próprio, no sentido real de que usemos, em poesia, um excesso, por exemplo, de alexandrinos ou de decassílabos ou de versos livres. Mesmo os poemas concretistas, por muito espaciais que sejam, estão ligados a uma decorrência temporal.
Na sua busca de um Tempo e na aceitação da presença imanente do Tempo em toda poesia, presta Luiz Papi homenagem a poetas brasileiros - Jorge de Lima, Bandeira, Drummond, João Cabral, Cecilia Meirelles, Murilo Mendes, com Proust visitando "sombras de antanho, plagas do sem fim".
É preciso, porém, dar atenção não só ao Tempo, mas também ao que não é o Tempo. Daí, a enumeração do poeta: "Som, objeto, odor, sabor, palavra, não são o Tempo, mas aí correm/ em bruxuleio, e no Tempo morrem/ irreparavelmente". E o drama do estar ou não estar no Tempo é "drama que se repete/ no Tempo proustiano dissecado".
E há "porções de tempo", como está no final deste poema: "A hora perfumada por incenso/ evola-se no ar espaço afora/ no repentino esvoaçar de um lenço./ Em caos e cosmo, sândalo e mandrágora/ o mago avia no portal da agora/ a fórmula instantânea da noturna/ resina jasminada. Aqui e agora/ a cinza do passado numa urna/ que se destampa ao sol e o vento leva/ em sarabanda à revisitada/ aba da sombra. E cristais de cânfora/ diluem numa ânfora gretada/ porções de tempo, o alvorecer, a treva,/ a coisa, o cosmo, o caso, o aqui e o agora".
Poesia instigante, consegue a de Luiz F. Papi chegar a um ritmo que vai além da cadência comum do poema bem comportado, pois apanha os sons na pureza de sua força como sons, de tal maneira que o poeta dá a impressão de ter conseguido insuflar um sentido oculto no silêncio entre um verso e outro, entre uma palavra e outra.
"Irreparabile Tempus" é um lançamento das Edições Galo Branco. Capa com reprodução de esculturas de pedras e ferro do próprio autor, orelhas e contracapa com textos de James Amado, Marcos Lucchesi, Fábio Lucas, Flávio Pinto Vieira e Emil de Castro.
Tribuna da Imprensa (RJ) 9/1/2007