POESIA
(sem título, transcrita de um álbum)
Quero... porém, sem querer...
Amo, e muito... sem amar...
Tenho um prazer... sem prazer...
Sou como quem busca ver -
mas... que prefere cegar...
Se eu dissesse: "Não!" mentia.
Se: "Sim!" faltava à verdade.
Tenho a calma... da agonia:
Metade, sou de alegria,
Sou de dor a outra metade...
Que a face alegre aparente...
Que importa? - a face escondida,
Como n’água transparente,
Vê-se um tumulto latente
No fundo de minha vida...
Porque... Quero... sem querer.
Amo e muito... sem amar,
Sofro do próprio prazer...
Mando a minh’alma dizer,
E ela me manda calar...
(O Jornal, 28.01.1934.)
CINEMA BRASIL
Começam a se desenhar no horizonte brasileiro os primeiros sinais da tormenta...
O ronco precursor partiu de S. Paulo.
Mal puderam nossos olhos acompanhar a trajetória da rápida fita luminosa do raio, desferido pela primeira descarga.
Por enquanto essa ameaça fulmínea se apagou na escuridão da sua própria nuvem. Não se apagou tanto, porém, que não percebêssemos nitidamente, à luz do seu relâmpago, a restauração da monarquia, como uma visão que se aproxima para descer inopinadamente ao campo das nossas misérias...
Dos membros do governo provisório só três sobrevivem: o Sr. Rui Barbosa, o Sr. Demétrio Ribeiro e o Sr. Francisco Glicério
O sr. Rui é um vulcão solitário... A coluna de fogo que se lança de sua cratera ilumina os céus com singular fulguração, entretida pelo subterrâneo e profundo calor do gênio da nossa raça. A admiração dos compatriotas paga-lhe a excelência confinando-o na honorífica imobilidade do seu papel de fenômeno... Alguns que se julgam diminuídos por essa magnificação platônica, e que medraram à sua sombra, e pela sua influência, atiram-lhe de quando em quando o metal já frio de suas escórias para conspurcá-lo. Desse expediente fez-se uma espécie de regalo para desagravo dos adventícios, que procuram reduzi-lo a uma simples figura de espavento, da qual eles se desfazem despejadamente, mal termina a comédia das pugnas partidárias em que o envolvem. O Sr. Rui que espere as futuras crises, em que a velhacaria dos seus supostos idólatras o glorifique de novo com o maior dos brasileiros, para o enjeitar, passadas elas, como o mais incapaz dos governantes!...
Em um país onde tais coisas acontecem, nada mais natural que homens políticos da vultosa estatura que conhecemos, sejam quinhoados do poder, do qual o Sr. Rui é sistematicamente excluído!...
O segundo ministro, ainda vivo, do governo revolucionário de 1889, é o sr. Demétrio Ribeiro.
Este apagou-se. Como o pastor, depois de uma sortida contra os lobos, ele voltou descuidoso e tranqüilo ao seu rebanho. Fechou-se no esquecimento de sua obra, e talvez de si.
O terceiro é o Sr. Francisco Glicério. Este ilustre estadista goza o estranho privilégio de ser o único dentre os fundadores oficiais do regímen republicano que considera paradisíaca a situação atual, a que nos conduziu o sistema de governo modelado pela Constituição de 24 de fevereiro de 1891.
O estado de espírito do interessante senador define-se admiravelmente nos conceitos que externou por ocasião da sua conversa com a Reportagem de A Noite, segundo foi publicada, com a autenticação do seu fiel retrato, estampado no corpo da primeira coluna da primeira página, da edição desse vespertino, em 19 do corrente mês.
A palavra com que o egrégio entrevistado rompe a resposta ao primeiro tópico da inquirição do jornalista, é o monossílabo contundente - "Não!".
Este "Não!" é venerável. Tem setenta anos de idade, e vinte e seis anos de experiência do poder...
O Sr. Glicério não quer a reforma constitucional!
Alegaram-lhe que a República está sem crédito, está falida; correndo para a humilhação da insolvência em dias que voam; e que o solo nacional responde ao credor estrangeiro no termo das dívidas descumpridas.
- A isso o engenhoso financeiro de Campinas obtempera que "a culpa é dos homens; porque a constituição não os autorizou a se desmandarem"...
De tão sábias palavras deduz-se que a democracia republicana no Brasil é um regímen que comporta comodamente homens sem escrúpulos, governos sem corretivo, que dissipam, gozam, mentem, fraudam, estorquem, raspam a nação, e se retiram fartos, sadios, felizes...
Os monarquistas vêem isto, ouvem isso e naturalmente o registram.
Pergunta-se ao Sr. Glicério se não tem notícia das concussões do Amazonas, das rapinas do Pará, das misérias do Maranhão, das barbaridades do Ceará, da anarquia de Alagoas, do descalabro da Bahia, das ignomínias da política regional, da beligerância de Estados para a conservação, ou conquista, de territórios vizinhos, afrontando a autoridade da mais alta corte judiciária, e esta, por outro lado, levada aos boleios, na inconsistência de uma jurisdição mal definida, sob a pressão do interesse partidário, suspeitada, fraca, hesitante, desrespeitada...: pergunta-se ao ilustre general honorário se nunca entrou no conhecimento desses fatos...
E o provecto parlamentar, sorrindo, com o seu largo sorriso de fauno, responde que sim, porque em raros deles deixou de interferir: - mas que o defeito é dos costumes, e não da constituição, que os não faz...
Portanto, a República onde a degenerescência dos costumes invade o organismo político para corromper, sem que as instituições a protejam da infecção, não passa de uma expressão nominal de nacionalidade, sem as condições morais de sua independência entre as unidades políticas do mundo culto.
***
Estas considerações já se não limitam a afagar o espírito tendencioso dos adeptos da monarquia; desiludem os mais ardentes republicanos, e vão infiltrando na alma dos brasileiros o desgosto, a incredulidade na honra dos que os governam, até o dia trágico da reação.
Inquire-se do Sr. Glicério se ele não está testemunhando a desagregação dos elementos políticos deste país, no fracionamento da sua justiça, pela cerebrina invenção, pela inverossímil concepção indígena que desmembrou a autoridade legislativa, e confiou a execução das leis federais à processualística de vinte legislaturas, como outras tantas nações estrangeiras...
E S. Exa. adverte que é a isso que cientificamente se denomina autonomia!...
Mas quando se vem a saber que um disparate desse tomo é articulado por um dos mais celebrados fundadores do regímen republicano do Brasil, obstinadamente surdo aos conselhos da experiência, acaba-se por acreditar da depravação do senso nas mais altas camadas da política, na insanidade do patriotismo, ou na ausência da integridade intelectual necessária para as manter na altura da sua vocação, como guias de seus compatriotas.
Estamos assistindo a um espetáculo estranho: a importação reduzidíssima, em presença da exportação crescente. É certamente a situação ideal do nosso intercâmbio. Mas é também evidente que essa ocorrência inesperada, na intensidade com que nos surpreendeu, oprime a União onerada, em desafogo dos Estados favorecidos. Não há, porém, remédio a esse desequilíbrio. O poder tributário está inabalavelmente plantado em nossa lei fundamental; à União o pouco que entra; aos Estados o muito que sai. Padeça, pois, a União: dissolva o seu exército, venda os seus navios de guerra, não pague os juros de sua dívida interna e aos empreiteiros de suas obras. O Sr. General Glicério continuará a desfrutar copiosamente a sua verde e jovial madureza, no contato gasalhoso do velho amigo Rodrigues Alves, e do seu jovem e esperançoso correligionário Altino Arantes.
Quando roncar o trovão, feche os ouvidos com obturadores de algodão, canforado. Isto lhe dará a bem-aventurança de uma surdez acalmada.
O seu depoimento, e dos próceres do seu partido, hão de ter a sua justa conta de influência na elaboração dos acontecimentos que nos aguardam.
Estou com o ilustre campineiro: a Constituição que temos é um broquel miraculoso contra a peste, a fome, a miséria e a vergonha.
Conservemo-la, meu ilustre amigo, conservemo-la, e vamos ali tomar um cafezinho...
(Prosas de Cassandra, 1918.)
OS TRÊS EFES DA FATALIDADE
Por longo tempo atribui-se à mulher a detenção da batuta na regência da universal partitura. Todos os fenômenos sociais se imputavam a uma causa feminina, que certo dramaturgo francês banalizou na fórmula: "Cherchez la femme!"
Hoje a rubrica se ampliou: "Cherchez la faim! Cherchez la fame!..."
A "Fêmea", a "Fome" e a "Fama" são assonâncias com que a língua designa as zonas em que arde o fogo interior e latente dos nossos anseios, flamejantes por aquelas três crateras do delírio.
Era uma eqüidade que se devia ao sexo formoso, essa redução da sua responsabilidade nas lidas, menos do nosso amor, que da nossa insaciável cobiça...
(Retalhos e bisalhos, 1923.)
A NOBRE ARTE DE FURTAR
Se nos dermos ao trabalho de passar de leve uma raspadeira na epiderme da democracia - com a concebem alguns de seus pontífices - breve depararemos assombrados as tatuagens de Marat...
Ora, eu me apresso em declarar o mais ardente fanatismo por aquela personagem patibular. Acho interessantíssima a sua queixada tiritante de javali sanguinário. E tanto que, se ele ressurgisse entre nós, com a sua boca negra, golfando imprecações ululantes, eu, com meias de seda que estivesse, logo as descalçava; enfiaria umas pantalonas largas de listrões vermelhos e azuis, talhadas pelo figurino do terror, e lhe seguiria atrás, com o meu chuço, para ajudar a carnagem dirigida contra todos que representassem algum indício de fortuna, real ou imaginária!...
Ninguém ignora que o melhor meio de granjearmos pasto à nossa cobiça de dinheiro, é, por uma simulação da piedade, nos fazermos patronos da miséria alheia.
O grande Marat é um dos imortais fundadores da igualdade humana pelo item eficaz das vias de fato.
A igualdade humana, considerada na latitude em que a compreendeu aquele gênio sublime, não tolera superioridades de qualquer espécie. Bem entendido: não suporta distinções, sejam quais forem, oriundas da lei, e menos da autoridade... Este princípio funda-se na incapacidade absoluta dos que legislam, ou governam, para outorgar honrarias.
Dinheiro, sim, podem dar; dignidade, não!
Daí resulta que o instinto de subir, o anseio de dominar, se realizam por certos expedientes, confiados pelo maratismo ao engenho, associado à audácia e desescrúpulo dos ambiciosos.
No fundo, essa doutrina envolve a apologia do ladrão insolente ou manhoso, e feliz!
Eu a subscrevo com ambas as mãos...
A ratonice torna-se, assim, uma síntese de atividade admiravelmente adequada à evolução da vida nacional! Deixa de ser um objeto de ignomínia, para se converter em função intelectual da sociedade.
***
O ladrão, seja o baixo ladrão específico, que tem os dedos impressos nos registros da polícia, ou o traficante que veste a sua rapina do título formal e notariado, a cujo serviço estão os meios judiciais de exacção, a nobre categoria dos vorazes velhacos, tão variados em suas espécies, exerce na economia de um povo influência muito benéfica, para merecer o desdém platônico de que é vítima.
Sem ladrões desapareceriam inúmeras indústrias: a dos cadeados, a dos cofres e fechaduras. Milhares de policiais expiariam na penúria a diminuição dos quadros de vigilância. O trabalho forense cairia em estado comatoso. A arrecadação dos impostos sobre transmissão de propriedade e hipotecas sofreria incalculável esbulho pela falta das transações aladroadas. As farmácias perderiam o consumo dos calmantes e mezinhas para as palpitações da miséria, e para as consumações das enfermidades que alucinam e matam prematuramente as vítimas da rapacidade. Até se arruinariam as fábricas de tecidos de véus para viúvas, e as casas de artefatos de luto para os sobreviventes das famílias espoliadas.
Enfim... que sei eu?! - a supressão da engenhosa arte de furtar sacudiria a sociedade em seus alicerces.
O ladrão é, pois, um fator essencial na economia política.
E eu omiti o seu inesgotável contigente como promotor de curiosidade e alegria universal, na composição das fábulas dos romances e cinemas.
Não faltam, assim, os louros heróicos da fantasia, com que as mãos mais puras e castas coroam os ladrões afortunados...
(Retalhos e bisalhos, 1923.)