Continua Fernando Pessoa a impor sua presença na poesia de língua portuguesa desta virada de século. O império português, com tudo o que de bom e mau teve, deixaria de existir em plena década de 70 no Século XX, quando Fernando Pessoa estava morto, havia quarenta anos. Aquele povo de fala nova, que em 1500 não ultrapassava de muito o milhão de pessoas, chega ao limiar do milênio com um saldo de poesia que, devido principalmente a Fernando Pessoa, o coloca numa vanguarda que não é menor por não ser reconhecida pelos cultores de línguas faladas nos impérios do momento.
Como herdeiros desse idioma, temos também, no Brasil, uma responsabilidade no pegar Pessoa, incorporar Pessoa, levá-lo às últimas conseqüências de uma poesia que vai além de nós mesmos. O mito Pessoa continuará sendo cultivado, mas a realidade onipresente e indestrutível da poesia de Pessoa contrabalançará o efeito desgastante do mito. Diga-se que também o mito é necessário, sem ele nada existe. No seu excelente livro Fernando Rei da Nossa Baviera, discorre Eduardo Lourenço a respeito do mito e cita, a propósito, a definição do próprio Fernando Pessoa: "O mito é o nada que é tudo". Eduardo Lourenço coloca o fim do império já no Século XIX, quando a poesia-música do Simbolismo representava uma "poética da Depressão absoluta que assolou a cultura do Ocidente desde os meados do Século XIX até aos princípios do Século XX". No marasmo de então, pergunta Lourenço: "Como ser o Camões de um Império extinto, o D. Sebastião de um futuro improvável e necessário para sair de um abismo mais fundo que o da antiga vil tristeza?" Ali estava aquele Pessoa-Caeiro, aquele Pessoa-Campos, aquele Pessoa-Reis, ligados ao Pessoa-Pessoa, tentando - ou não tentando - ser poeta de um mundo morto ou prestes a morrer e conseguindo essa coisa espantosa, que só os poetas conseguem, que foi lançar a comunidade lusitana - com sua mistura de gente, língua, presença gritante na Terra, factibilidade, compaixão e sentimento cada vez mais ampliado de que "navegar é preciso" - lançar o mundo criado pelo português, repito, para um futuro que, mesmo sem Império nem sebastianismo, explica a vocação universalista de um povo civilizador.
Em Pessoa reponta a outra grande vocação portuguesa, que nos leva a crer seja também a grande vocação brasileira: a da poesia, a da feitura do poema que ultrapassa a realidade e interpreta uma gente. Por causa dessa vocação talvez possa o mundo lusófono apresentar ainda uma contribuição significante a esta nova passagem, conflitual, aflitiva e necessária, de um tempo a outro.
Jornal de Letras, nº 20