Resposta do SR. ALOÍSIO DE CASTRO
SR. LAUDELINO FREIRE:
Se nos fora necessário confirmar o acerto da escolha que vos trouxe ao nosso grêmio, nada melhor nos serviria do que as belas palavras que tão efusamente acabamos de aplaudir.
A modéstia pode ser uma forma da elegância. Talvez por isso esteja na tradição acadêmica que o recipiendário nunca encontre em si aquelas mesmas qualidades que na véspera julgava possuir, sendo simples candidato. Não vos ficou mal essa faceirice, quando, aludindo ao vosso preexcelso antecessor, o Conselheiro Rui Barbosa, nos dizeis que nesta sucessão buscamos o último para seguir-se ao primeiro. Ele foi, por sem dúvida, o primeiro em tudo. Mas vós sois da sua escola, e, vestindo a toga dos juristas e dos letrados, não deixareis extinguir-se a luz do facho.
Compondo o nosso número sem preocupação de semelhanças intelectuais entre os que já foram e os que chegam, amamos a unidade dentro da variedade, somos enfim como aqueloutra Academia, que veneramos por modelo, e Voltaire definiu: “un corps où l’on reçoit des gens titrés, des hommes en place, des prélats, des gens de robe, des médecins, des geomètres et même des gens de lettres...” Por muitos desses títulos, estando aqui, estais em vosso lugar.
Naquela página que há anos escreveu um dos vossos amigos, mal conhecendo que o seu dia tão breve lhe não concederia sentar-se na Cadeira a que fora chamado, ele aplicou a esta Casa a letra que o grego Platão fez esculpir no friso da Academia, onde ensinou a serenidade: “Aqui não entre quem não for geômetra.” Ora, muito bem podeis aqui entrar, Sr. Laudelino Freire: sois geômetra.
Tendo professado essa disciplina no Colégio Militar, mostrais que o vosso talento deitou raízes na especulação matemática, para luzir nas múltiplas formas da cultura superior. Eu vos felicito, porque a mim sempre me pareceu uma invejável forma de poetar esse viver com a imaginação nas figuras e nos corpos do espaço.
Haverá assim um como sentido artístico nos axiomas e nos postulados, e no mais que bebestes nos Elementos de Euclides, passeando, entre os álamos. Afinal os helenos mostraram que a beleza reside na forma e na proporção, e neste universo onde tudo são relações matemáticas quem amar o belo tem de amar a geometria.
Nem por outra cousa assinou Platão a arquitetura como a arte preclaríssima, senão por ser a mais regrada nos princípios geométricos.
Geômetras por geômetras sejam entendidos. Eu admiro Pitágoras e o seu quadrado da hipotenusa, mas confesso não sou forte nos teoremas, nem na medida dos ângulos, e vou pouco além da distinção da linha reta com a linha curva. Porém, médico, aprendi que a medicina tem as suas matemáticas e, como está na coleção hipocrática, toda consiste em adição e subtração. “Medicina nihil aliud est nisi adpositio et ablatio.” Não sei ao certo o que isto seja, mas Galeno interpretou: dá as forças, se faltam, e retira os humores, se excedem.
Se não foi esta remota analogia entre as nossas cogitações que me indicou para receber ao consumado filólogo que sois, então terá sido aqueloutra, posta pelo Nietzsche, ao apontar a necessidade do rigor lingüístico na ciência médica, dando por aliadas a medicina e a filologia.
Não basta? Pois ainda reparo que sobre tantos títulos ilustres que vos exornam sois filósofo, e não há medicina sem filosofia. “Ubi desinit philosophus, ibi incipit medicus.” Tolerai-me estes latins, vício meu. Não ficam mal em se tratando de filosofia, a que dão peso, severidade e eu diria graça.
É, sem dúvida, muito por admirar-se essa grave feição do vosso espírito, numa terra onde escasseiam os filósofos e nuns tempos em que se pensa e se raciocina dançando. Mas não foi o idealista grego quem exalçou a dança para dar validez ao corpo e gentileza ao espírito? O mesmo Sócrates alguma vez bailou.
Quanto a vós, que segundo ouço também rodopiais no torvelinho coreográfico, nada com isso perdestes do contemplativo e do espiritual. Escreveis livros para saber onde a felicidade das cousas, e através dos sistemas e das escolas, dos métodos e das doutrinas, sondais subtilmente a verdade, que todos dizem transparente, quando os filósofos a declaram no fundo de um poço.
Na vossa apreciada súmula de Filosofia e Moral não nos dizeis ao claro onde ela esteja, nem que escola preferis. Quem já decifrou o fundo da vida e a origem das cousas? Eu vos tenho por eclético. Nesta difícil arte da vida não será por desprezar-se aquele “deleitai-vos sem inquietação”, do Epicuro. Mas também não é desconveniente viver estóico algumas horas, com Epicteto. Crer-se-ia que há para tudo e para todos, nisto de doutrinas filosóficas, em que os conceitos abstratos nos levarão aonde quisermos. Para dizer de verdade a glória da filosofia, como escreveu Renan, um dos que citais, não consiste no desenlear e solver a dúvida, sim no propor o problema. Pode parecer que estamos onde estávamos. Mas progredimos muito desde Aristóteles...
Desconheço o vosso conceito da filosofia na arte. Arte como fator social? Arte pela arte? O que sabemos todos é que sois artista de alma lírica, que amais na contemplação a poesia do silêncio e vos comoveis com as grandes inspirações da natureza e dos sentimentos. A arte é múltipla, a harmonia é una. Tendes lágrimas para os noturnos de Chopin, êxtases para as páginas de Flaubert e dobrais os joelhos ante o Correggio e o Beato Angélico, sentindo na espiritualidade das imagens a voz oculta e misteriosa das cousas.
Ao vosso esquisito gosto da pintura devemos um severo estudo desse ramo da arte desde o Brasil colonial aos dias de hoje, e ninguém terá em pouco esse e outros esforços com que encorajais o nosso progresso artístico. Chegastes a uma conclusão desalentadora para a geração atual: a pintura entre nós decai. Infelizmente não vos enganastes. Já não há no meneio do pincel um Pedro Américo ou um Victor Meireles. A nossa natureza ainda espera o seu grande intérprete na tela e as alegrias e tristezas humanas ainda não deram aos nossos artistas a nota verdadeiramente grandiosa ou sublime.
Como amais a pintura amais a poesia. Vossa paciência de colecionador vos induziu a publicar os Sonetos Brasileiros, onde os nossos poetas de todas as escolas se representam no verso e na imagem. Destes a ver o bom e o mau, supondo afinal tediosa uma coletânea de sonetos todos perfeitos, como no escrínio de Heredia. A perfeição pode acabar monótona. O fato é que sem intenção também concorrestes para apresentar o Brasil como uma terra de poetas, tal qual Sílvio Romero, a quem imputastes esse pecado, criticando-lhe o largo tomo que na História da Literatura Brasileira consagrou à evolução da nossa poesia, com o que vos pareceu ter inculcado que sejamos no domínio intelectual “um país tão essencialmente poético, quanto essencialmente agrícola no domínio das indústrias”.
Não estarei longe de aceitar certas restrições que fazeis à obra de Sílvio Romero, mas peço licença de opor minhas dúvidas à apreciação geral com que julgais o crítico sergipano. Incoerente, contraditório, inconseqüente, tudo isso terá sido. Mas já se viu crítico imutável nas idéias? Ele não quis ser o homem absurdo, que nunca muda de opinião. Digamos que ele abusou seu tanto desse direito e mudou demais; mas conceda-se que em matéria de opiniões está o relativo das cousas, com as circunstâncias, o tempo e o lugar. O que se impõe na vasta obra de Sílvio Romero, crítico, historiador, jurista e filósofo, é a variedade e a vastidão do saber. Se era desigual no escrever, descuidado, descomedido ou desabrido, mostrava em tudo nervo, idéia e inspiração. Ninguém mais valoroso nas lutas, e, se era apaixonado, era digno e sincero.
Em José Veríssimo, a quem consagrais um ensaio de acerbas páginas, não haveria o longo estudo e a meditação de Sílvio Romero. Outro temperamento, outras tendências, outra formação, menos vôo, mais equilíbrio. Um era arrebatado e violento, compassado e frio o outro. Ambos sintetizaram um momento vigoroso da nossa crítica literária. Mas esse gênero, se bem percebo, salvo raras exceções, ainda não deu frutos entre nós. Faculdade filosófica, o senso crítico, no alto sentido, não exige somente dilatada cultura, mas a complexa madureza do espírito generalizador. Não pode ser uma qualidade comum. Há crítica e critiquelha, críticos e criticastros. Vós não quisestes, Sr. Laudelino Freire, perseverar no caminho tão propiciamente iniciado com esse livro Os Próceres da Crítica, a que me referi. É contudo, dos vossos trabalhos, pelo arrojo da sinceridade e ardor das convicções, um dos mais fortes, embora dos vossos primeiros tempos de escritor.
Ainda não havíeis adquirido esse gosto do nosso bom falar vernáculo, que depois vos alistou na primeira plana entre os sabedores do nosso idioma, como um dos que mais utilmente o têm defendido. Foi uma evolução rápida e fecunda. Ganhastes horror ao galicismo e compusestes um substancioso Vocabulário, para extinguir a praga dos galiparlas e preservar a língua contra a tacha afrancesada. Passastes então a ser com isso um homem perigoso, e crede não é sem temor que me desobrigo desta oração, sentindo no ar a palmatória de cinco furos com que me chamareis a bolos por qualquer francesia que me escape.
Em vossa presença não é lícito falar sem todas as cautelas e as palavras se pesarão ouro e fio.
Escrever, só se for com muito tento. Sois autor de um Formulário de profícuas receitas ortográficas. Oxalá vos não vejais em aperturas quando dentro em breve ainda uma vez se discutir a questão da ortografia nacional. Governo e povo interessam-se no caso, e todos sabem que o nobre Ministro da Instrução, nosso luzido confrade, confiou a uma ilustre comissão resolver a grave matéria, dando as regras da redação oficial.
Não creio enganar-me vendo na resolução do egrégio Ministro o desejo de esclarecer o seu caso pessoal. Porque é notório, o Sr. João Luís Alves tem um caso ortográfico: Luís com s ou com z? A prudência é dos bons ministros. Há de ser por evitar futuras complicações que o nosso estimado confrade firma os despachos com a garatuja dos médicos, e ninguém assim sabe a letra que prefere.
Nem é cousa de nonada isto de letras nos nomes. Estou a recordar-me que um bom dia, bom como todos aqueles em que lhe beijei a mão, o Sr. Rui Barbosa comentou comigo o infortúnio que a ambos nos salteara. Sem licença dos donos os reformistas de Portugal nos trocaram o y do nome por um i desgracioso e inexpressivo. À verdade não sabíamos ao que nos servia esse y. Era por isso mesmo a nossa graça e o nosso mistério, alguma cousa como uma esquisita reminiscência helênica, uma bênção de Palas Atena.
No fim das contas em que pararemos? Escrita etimológica? Grafia simplificada? Fonética? O diserto presidente da Academia, que nasceu advogado, já tem prontos os embargos da defesa. Para ele (se é que o não calunio), todos os sistemas são péssimos. Só há um meio, este excelente, de uniformar a ortografia: acabem-se os idiomas vivos, enterrem-se para sempre os mortos e adote-se o esperanto, onde não há complicações. Vê-se que caminhamos para o futuro.
Força é, pois, redobrar na salvaguarda do nosso patrimônio lingüístico e a vós, Sr. Laudelino Freire, que o tendes servido nestes últimos tempos com o entusiasmo e indefessa dedicação, caberá chamar todas as forças ao combate, exclamando com o vernaculista:
Floresça, fale, cante, oiça-se e viva
A portugueza lingua!
No círculo das nossas letras a criação da Revista de Língua Portugueza representou considerável progresso, e só à vossa competência se deve a confiança pública que lhe ganhastes e tanto a tem prosperado. Não poderia faltar-vos com os aplausos o vosso glorioso antecessor nesta Cadeira e nos parabéns que vos ele ofereceu, ele que tinha o primado das nossas letras, como o sumo escritor do nosso idioma, alcançastes a palma e o prêmio. Esperemos que a Revista, venha a ser o grande órgão do pensamento nacional em todas as formas da composição literária. Não me venhais, contudo, às mãos, se eu estiver com os que lhe pedirem um pouco mais de arte e um pouco menos de gramática.
Inda há pouco formulastes um belo panegírico da ciência gramatical, mas cauteloso refugastes o título de gramático, que todos à fina força porfiam em dar-vos, pelas muitas notícias que tendes da nossa língua.
É que este gênero de homens gramaticógrafos se apresenta no geral como a antítese da vossa urbanidade e gentileza, e ninguém lhes escapa à férula de padres mestres. Nunca se viu intolerância como a deles. A Academia tem no caso as suas experiências, mas como fortunadamente não trazemos espadim nas sessões ordinárias, não houve ainda grave perigo.
Já, porém, futurastes, Sr. Laudelino Freire, vós que fostes donoso alferes da Escola Militar e nos anos juvenis floreastes uma espada menos inútil do que essa que com tanta elegância e bizarria hoje trazeis à cinta, já futurastes o que havia de ser entre nós esse combate a pé firme em campo raso, se discutíramos gramática nas sessões solenes? Seria batalha crua em que se terçariam à mão-tente, como gládios fulmíneos, estas lâminas de gume embotado. Seja descrédito largar a peleja e desamparar as signas: nesse dia, talvez não tarde, porque já numerosos são os gramáticos da Casa, deixarei aos generais de verdade que aqui temos por parceiros a glória de luzirem belezas na ação, onde sereis o porta-estandarte, e hei de preferir o exemplo do meu mestre Horácio, que abandonou o broquel nos campos Filípicos, desertando as fileiras e tomando o partido dos que fugiam derramadamente.
Contudo sempre direi, com o Sr. Rui Barbosa, que a gramática não é a língua. A caturrice das regrinhas mata muitas vezes a qualidade prima do escritor, o belo gosto, e a mera preocupação gramatical só produz escritores entanguidos, enfezados, pesadões e desluzidos. O estilo, a arte da forma, é outra cousa, eu dissera um dom da natureza, e os que não trazem do berço essa intuição do ritmo, da eufonia e do equilíbrio da frase, jamais alcançarão trabalhar as gemas da arte no bem falar e no bem escrever.
O estudo aperfeiçoa o escritor, pode dar-lhe correção, facilidade ou ainda brilho, mas se lhe falece esse por assim dizer sentido especial da harmonia da forma, por mais que esforce o estilo nunca o subirá ao verdadeiro primor. Pode haver estro, arroubo, graça, pompa, valentia, lucidez, propriedade, mas a arte do estilo requer mais, quer o toque peregrino e indefinível, o sentimento exato da proporção e da beleza, único que assegura às obras do pensamento o selo da imortalidade.
Ao Sr. Rui Barbosa o estilo o viverá nos séculos futuros. Quando porventura ele não fosse, em todos os domínios em que desdobrou a sua grande vida, na política, na jurisprudência e no jornalismo o símbolo imperecedouro da nossa nacionalidade, ele a quem devêramos chamar o numeroso Rui, como a Horácio nomeava Ovídio, porque escrevia em todos os metros, perduraria na posteridade pela só incomparável glória das suas letras.
Sua linguagem, eis o instrumento prodigioso em que lavrou os monumentos da sua vida de lutador. Ela, a arma invicta do jurista, a força temível do político.
Ninguém ainda o excedeu no trato e no meneio do nosso idioma, ninguém o pôs em tanta sublimidade. À língua copiosa trouxe inumeráveis cresces, enriquecendo-lhe o vocabulário, criando novos moldes de expressão, na sua admirável sintaxe.
Por seus livros hão de ler os que quiserem buscar o nosso vernáculo na fonte mais pura, porque ele o foi tomar na sua prístina derivação, nos sermonários e nas crônicas, na conversa diurna e noturna dos Vieiras, dos Bernardes, dos Lucenas, dos Sousas, dos Barros, dos Arrais, nos lídimos padrões da boa escritura portuguesa. Daí as normas clássicas do seu escrever, de cuja rigorosa severidade nunca abriu mão, ainda que embelecendo e aviventando a nossa linguagem com o colorido de um novo relevo, em que se irmanam na majestade do seu estilo sem par as formas venustas do dizer antigo com as louçanias e os afeites do moderno.
Esse dom de escritor, servido pela mais poderosa expressão lingüística que já se admirou em nosso meio, respondia no Sr. Rui Barbosa a uma vocação irresistível. Falando ou escrevendo, sentia-se-lhe o jorro da torrente, a caudal estuosa a borbotar nessa opulência que os que o não compreendiam estolidamente levavam à conta de redundância e prolixidade. Acertada prolixidade, porque se dentre as suas obras houvéramos de eleger a melhor, força seria adotar o parecer de um antigo quanto ao mais famoso dos oradores, preferindo por mais bela a mais longa.
Não era só o escrever muito que se gabava no grande brasileiro. Entre os latinos, Lucílio versejava duzentos versos num abrir e cerrar de olhos, e o galante D. Francisco Manuel de Melo reconta o caso de certo castelhano que louvava a Lope de Vega, poeta tão fecundo que por obsequiar a um amigo escrevera numa noite uma inteira comédia, com loas e entremezes; ao que contraveio alguém, que sendo assim teria dado prova de bom amigo, não de bom poeta.
No Sr. Rui Barbosa não havia somente excepcional facilidade no compor e escrever, senão no escrever muito bem, escrevendo muito. Seus amigos conhecíamos as circunstâncias em que doente, e sob o peso de grave contrariedade política, acabou de uma penada esse formoso discurso acadêmico com que aqui recebeu a Anatole France.
Qualquer que fosse o gênero de composição que versasse, no que lhe saía dos lábios ou da pena estava o signáculo da perfeição e da superioridade. Escrevendo para a imprensa, de um dia para o outro, nessa larga vida jornalística de que nos fizestes, Sr. Laudelino Freire, uma resenha tão brilhante, seus artigos doutrinários ou políticos, onde os ideais modernos tiveram a melhor defesa, não eram trabalhos fortuitos. É que sob a pena do mestre, disse alguém que o soube admirar, o Dr. Francisco de Castro, “sob a pena do mestre não há criações efêmeras, e até os improvisos do jornalismo têm a solidez e o labor das obras lapidares”. Força é reconhecer que o nosso meio ainda não comportava um jornalista desse cunho. Os diários que redigiu tiveram vida curta e ele não foi frívolo para ser popular.
Mas de cada vez que aparecia na imprensa era para cometer grandes batalhas. Às suas camarteladas pelo Diário de Notícias conveliram os alicerces do Império, que se desquiciou e ruiu.
Veio depois a luta contra o governo de Floriano Peixoto, com quem rompera abertamente. Enfrentou-o intrêmulo, com o valor do peito endurecido nos prélios. Os acontecimentos políticos se agravaram com a revolta da armada, em setembro de 93. Foram dias turvos. Aos escova-botas do governo de então era malsoante a linguagem do Sr. Rui Barbosa.
Ele era nesse tempo o Rui combatido e discutido.
Matraqueava-se que dera em pantana com as finanças nacionais no Governo Provisório, ainda que ninguém lhe respondera à monumental defesa que fez do seu plano financeiro.
Só um homem lhe não faltou com a justiça, o seu adversário da véspera, esse intemerato Visconde de Ouro Preto, glória do Império, que, discordando embora da orientação financeira do Sr. Rui Barbosa, reconheceu que ela obedecia a um programa sincero e tinha uma traça definida.
Naqueles tempos inquietos ninguém foi mais perseguido do que o Sr. Rui Barbosa. Era o homem funesto do regime.
Quando estalou a revolta, nada mais fácil aos esfola-caras da situação do que se apoderarem daquele que se fizera pela voz inflexa a maior dificuldade do governo. Clamou-se à boca cheia que era revoltoso, quando está historicamente provado, com todas as provas, que o Sr. Rui Barbosa não foi participante no movimento.
Estava-se vendo o pretexto especioso para o ferrolharem nas prisões do Estado. A época não era de brinquedos. O marechal era duro dos fechos, a militança impava e pimponava. Era a consolidação da República.
Mas ao Sr. Rui Barbosa não faltou naquele dia incerto o amigo certo. Esse amigo foi meu Pai. Creio não ser indiscreto trazendo a público um episódio até aqui guardado no círculo da intimidade, e do qual data a firme veneração que me honro haver sempre tributado ao Sr. Rui Barbosa, nos muitos anos de uma estreita amizade que foi, com a doce conversação de meu Pai, o melhor livro da minha vida.
Vão precisamente trinta anos, mas eu diria ontem. Bem me lembra que no dia imediato à declaração da revolta, era eu meninote, meu bom Pai me tomou à parte, recomendando-me silêncio, porque se ia hospedar em casa um doente, que havia de vir de Minas. Fez-me espécie o aviso, porque eu me não havia em conta de diabrete. O doente veio à noite, mas eu o não vi. O que vi, no dia seguinte, muito de manhã (que é que escapa aos meninos?) foi saírem juntos de casa, em carro que rodou célere, o conselheiro Rui Barbosa e o Dr. Francisco de Castro. Quando meu Pai regressou havia deixado a salvo, na Legação do Chile, então à Rua D. Luiza, o seu grande amigo, que dali depois se embarcou para o Rio da Prata. Não sei o que eu disse então a meu Pai, mas foi como se dissera que a medicina era grande causa quando operava dessas curas repentinas da noite para o dia. E porque o meu contentamento era a minha solidariedade com o amigo da sua casa, meu Pai me sorriu com o seu sorriso mavioso, e me cobriu com uma dessas bênçãos de que eu fiz a alegria, o consolo e o prêmio dos meus dias.
Os rudes tempos da adversidade, que forçaram o Sr. Rui Barbosa a expatriar-se, nem o intimidaram, nem o entibiaram. Volveu maior. O Jornal do Commercio, tendo à frente o Dr. José Carlos Rodrigues, de tão cara e bem querida lembrança, solenizara-lhe o regresso com uma festa intelectual que ficou memorável. O governo civil restituíra-lhe as estrelas do generalato, que a ditadura lhe arrancara. Seu merecimento vencera todos os ódios e todas as prevenções, acabando por impor-se ainda àqueles que de princípio o combateram. E o Sr. Rui Barbosa começou essa segunda fase da sua vida política, ainda maior que a primeira, e na qual sempre pela luta, numa longa jornada, fez a ascensão que o não subiu ao poder, mas o levou ao Capitólio do seu verdadeiro triunfo.
Jurista, passou a ser o intérprete máximo das leis, o esclarecedor perspícuo dos seus textos, o grande homem do direito, o guarda intimorato das nossas instituições.
Ele nunca foi político no sentido vulgar, único conhecido entre nós, num país onde não há partidos com idéias, mas apenas rótulos pomposos, idéias de tabuleta e de cartaz. Faltava-lhe para isso a aguda ciência das conveniências. No parlamento era voz perdida. Mas quando as questões saíam do domínio dos rasteiros interesses e das facções para se altearem a outras esferas, então era a sua vez. Porque nele verdadeiramente vibrava o espírito nacional, nele o órgão da liberdade e da justiça, de cuja paixão se nutriu até os derradeiros dias e cujas causas ardidamente pleiteou na tribuna política, no pretório e na praça pública. Quem com mais pertinácia serviu ao dever? Quem a ele se adiantou na grandeza do civismo? Quem melhor definiu as nossas aspirações? Ninguém o excedeu na dedicação à pátria, que pôs em primeiro lugar e acima de tudo, como aprendera com Cícero no Tratado dos Deveres.
Do abolicionismo ao civilismo a voz era a mesma, aquela voz indômita e fogosa, que insuflou novo alento ao nosso povo, já descrente e amortecido pela indiferença. Cada batalha o crescia na admiração geral, dentro e fora da pátria.
Nunca a arte da oratória política, tida por Latino Coelho como o mais dificultoso gênero de literatura (esqueceu o púlpito), se elevou em nosso meio a mais remontados vôos. Sentia-se na inimitável facúndia do Sr. Rui Barbosa o rio caudaloso de Homero, o instinto da verdadeira eloqüência, dessa que supõe o “exercício do gênio e a cultura do espírito”, e que Buffon separava da garrulice inane dos discursadores.
O recinto senatório foi o teatro das grandes vitórias do tribuno. Do velho Senado que Machado de Assis conhecera e nos falou em tão primorosas páginas, algumas raras figuras do Império haviam feito o ginásio da eloqüência. O Sr. Rui Barbosa foi dos pouquíssimos que mantiveram na República aquela tradição. Numa dilatada vida parlamentar, uma longa e severa pregação doutrinária, o Senador Rui Barbosa, com a palavra iluminada por todas as graças, foi na nobreza da dicção o grande mestre da oratória. Tudo nos seus discursos, a disposição, o movimento, a contextura, o aproxima ou ainda o iguala a esses grandes modelos da antiguidade, onde a palavra e o pensamento tiveram a sua mais excelsa expressão. Nunca a inspiração lhe refugiu e, orador, jamais conheceu aquele “medo que enfreia as línguas”, de que se fala na Eneida.
Nas mais arriscadas horas não decaiu a energia do seu verbo, sempre valoroso e indefesso sempre para combater os desmandos da violência, os abusos do poder, as cegueiras do despotismo, para censurar o vício, reprimir o mal, confutar o erro, a injustiça, a inépcia, a iniqüidade e o arbítrio.
Dir-se-ia que foi ao contacto das assembléias públicas que se despertaram os hinos mais espontâneos do orador.
De quantos aqui hoje somos, não poucos estivemos ao seu lado, quando, faz alguns anos, acudindo pelo interesse da nação, o Sr. Rui Barbosa arengou ao povo, propugnando a entrada do Brasil na guerra. Das sacadas do Jornal do Commercio, falando para a rua, ele enfrentava o auditório fremente. Era a mesma palavra de Buenos Aires que agora ali, vertida daquele frágil arcabouço humano, crescido e encorpado aos olhos da multidão num vulto imenso, estrondava e rebramia, incendida no ardor patriótico. Naquele dia os tempos se mudaram. Estas águas que contemplamos eram as ondas cerúleas do Egeu, e o Sr. Rui Barbosa o perfeito cidadão, o perfeito democrata, o repúblico dos dias da Grécia livre.
Essa irrefragável autoridade a que se alçou e o fez mais que ninguém venerado por seus concidadãos, ele a logrou assim pelo esplendor das suas virtudes cívicas como pela sua experiência e inimitável estudo, todas as horas ferventemente consagradas às cousas sumas da sabedoria e às cogitações excelsas, na perquirição da ciência e no culto da arte, nesse templo dos livros, em que viveu distante e desatado das vulgaridades.
Com o exemplo, aos moços doutrinou o desdém da obra aligeirada, perfunctória, incuriosa, imatura, mas que buscassem na pesquisa profunda e paciente, no saber de raiz e fundamento, no trabalho de sobremão, nos frutos bem assazonados, o último grau da perfeição, a segurança e o primor da obra polida e acabada.
Não se conheceu modelo assim de atividade sem trégua, de paciência mais constante no trabalho, que ele chamou a bela forma do patriotismo; e por isso, havendo atingido a suma exação e preexcelência, se sobreexcedeu a si mesmo cada dia e não conheceu declínio na sua comprida idade.
Terminou no mesmo fastígio, consagrado na história intelectual da humanidade como um dos espíritos mais levantados do seu tempo, havido na pátria como o varão sábio, de ânimo inteiro, que volvido para as claridades infinitas do bem e da justiça, acabou por tocar à perfeita ascese.
Para prol e bem da pátria Rui Barbosa fez do amor da Justiça o alto sonho dos seus dias e o sublimou em tocante ato de fé, quando beijou publicamente a mão a um juiz no Tribunal. Era o culto da Justiça, expressão do bem, da Justiça, símbolo da igualdade, da Justiça, emanação da verdade divina, e pois representação de Deus, que é a verdade das verdades.
Pela justiça viveu e clamou, ainda que sabia que no deserto clamava. Das sementes que semeou, muitas como as das parábolas, se secaram nas pedras e na planície escalvada. Mas outras medraram para o futuro que começa, e já o grão germina e assoma na plântula, e brota e enfolha e floresce e fruteia. O carvalho vingou e vai dar sombra. Quando então amanhecerem esses dias florentes e prósperos que Rui Barbosa sonhou à pátria, todos o sentirão vivo, presente e eternamente abençoado.
Se a cada um seu dia, o de Rui Barbosa será o das gerações vindouras. A do seu tempo mais de uma vez o negou e renegou. Mas foi para o tornar maior, para o experimentar na ingratidão e na fria dureza dos homens, para lhe conceder o resplendor dos espinhos à coroa imarcescível que lhe havemos de tecer e votar, entre os cantares da glorificação.
Não lhe dissemos adeus para sempre, não se apartou de nós. Conosco assiste e ainda agora o contemplamos como na vez da sua última visita a esta Casa, quando celebramos o cinqüentenário de Castro Alves, cujo plectro ele louvara há quarenta anos. Já o não tínhamos por nosso presidente, mas com a presença veio dizer-nos nesse dia que nem passa nem perece a admiração ao gênio.
Também assim não passará o culto do mestre imortal, que se antecipou à glória da posteridade.
Esse culto a Academia o assegurou, elegendo-vos, Sr. Laudelino Freire, para a Cadeira que entrais a ocupar.
Versando o direito entre os mais distintos, escritor castiço que a nenhum é segundo na estima do nosso vernáculo, na jurisprudência e nas letras freqüentastes a lição de Rui Barbosa, e familiar às suas obras sabeis compreender e apreciar o modelo, de tão egrégia beleza.
Na portentosa vida, tão admirada e admirável, que insignemente acabais de memorar nesses gratos louvores que toda a Academia subscreve, a fama do cidadão se completa na do homem de letras. Chegais exortado por esse exemplo, e lidador incansável na vida dos livros, estudioso a quem não falta o aplauso dos doutos, benfeitor das artes e das letras, sereis com tão relevantes méritos uma das fortes colunas da Academia.
Não esqueceremos nesta ocasião a terra que vos foi berço e hoje exulta com a vossa vitória, o Sergipe de Tobias Barreto. Recordá-la é como vos pôr diante dos olhos a suave imagem dos pais, para quem a vossa devoção se não deixou de volver neste dia dos prêmios.
É doce na hora feliz reatar na cadeia do tempo os dias distantes e dispersos. A ventura presente se engrandece quando a anima o reflexo de um passado onde a voz das esperanças não mentiu. Respondestes belamente, Sr. Laudelino Freire, às interrogações da vossa juventude. Outros louros vos esperam. E amanhã como hoje tereis o aplauso dos vossos confrades, em cujo nome vos trago as boas-vindas.