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Antonio Callado

O BEATO SALVIANO

Foi num estado de vago terror e de íntima náusea que Manuel Salviano se levantou no dia seguinte. Era dia de viajar para o sítio do João da Cancela, onde há meses reunia ao seu redor, uma vez por semana ou pelo menos por quinzena, os lavradores e lenhadores das redondezas. Os encontros eram marcados pelo Cancela quando vinha à marcenaria e, no dia combinado, Salviano levantava-se antes de qualquer galo pensar em cantar. O motivo ostensivo das suas madrugadas semanais era o fato de ir ele encomendar pessoalmente as madeiras de que estava necessitando - mesmo para Irma a explicação era esta. A mulher já sabia, e mesmo na cidade de Juazeiro se começava a saber que Manuel Salviano tinha grande influência entre os trabalhadores. Mas isto era preguiçosamente explicado pelo fato de ser ele um dos pouquíssimos que sabiam ler e escrever. Seja como for, sabia-se de sua influência, mas ignorava-se que ele houvesse estado nas zonas de distúrbios do norte do Paraná ou que, em suas visitas ao sítio de João da Cancela, não tivesse realmente o objeto único de escolher suas madeiras. Muito natural que nessas ocasiões - dizia-se dando de ombros - aqueles pobres ignorantes lhe viessem pedir notícias de Juazeiro e do mundo em geral. Nada havia nisto de estranho.

Em geral Salviano se levantava, nos dias de ir ao sítio do Cancela, satisfeito. Caminhava umas três horas, em passo ligeiro, mas sem se preocupar com embornal ou qualquer carga que fosse, e era sempre com prazer que via o dia nascer na caatinga, quando o sol raso dava a cada mandacaru um exagero de sombra pelo chão. Mas naquele dia, depois da conversa com Júlio Salgado e sabendo que ia ter de bancar o convertido diante dos cabras, naquele dia o café lhe tinha sabido mal, o caminho parecia imenso e o sol solene: solene e triste como o amigo que descobre algo errado que fizemos e que sofre por precisar advertir-nos. Aquele sol, pensou Salviano, sabia de tudo.

Quando já ia perto do sítio do João da Cancela, o mal-estar de Salviano transformou-se em positivo nervosismo. Se ia começar a farsa naquele dia mesmo, então precisava estar preparado desde já. Que espécie de cara devia fazer, quando em si pousassem os honestos olhos garços do amigo Cancela? Como devia falar aos homens, naquelas conversas em que às vezes se exaltava ao ponto de sentir que se lhe reviravam os olhos nas órbitas - mas sempre com apoio em algum fato, algum recorte de jornal, alguma injustiça? Ele já vira beatos bramindo nos sertões, barba e cabelos imundos de pó, uma túnica indescritível com cruzes bordadas a retrós, cajado na mão e a puxarem um bicho tão sujo quanto eles, um carneiro ou cabra. Eram homens que um dia falavam em coisas terríveis que haviam de acontecer quando a cólera de Deus fosse vingar a morte do Calvário, e que, no dia seguinte, pipilavam tolices que sem dúvida passariam quando o Filho de Deus viesse ao sertão para transformar as pedras em rebanhos e para encher de leite os rios secos.

Podia fazer um papel daqueles? Ah, que demônio o fizera aceitar a proposta doida de Júlio Salgado?

Ao mesmo tempo, porém, vinha-lhe à mente a imagem insidiosa da cena final, na igreja de Petrolina, desenhada pelo agitador e que Salviano aprofundara como um santeiro escavando a madeira onde está fazendo um profeta. Aquela cena final era a sua redenção aos olhos do Cancela e de todos os demais, além de ser o supremo desafio aos bispos, ao padre Generoso, ao mundo inteiro. O plano estava bem arquitetado pelo Júlio, pensou, pois o Cancela e todos os demais não seriam perseguidos pela Polícia, depois, de vez que haviam sido “enganados” por ele, Salviano, que se disfarçara em beato... Perigo, mesmo, só correria ele, Salviano, e coragem seria a sua de fulminar os padres do próprio púlpito da igreja, de fulminar a religião dentro da Casa de Deus. Ah, isto pagaria tudo! Às escondidas, sem que Irma o visse, e para ter alguma ideia do que dizer aos homens no sítio do Cancela, Salviano estivera folheando e lendo uns trechos da Bíblia em português que Mr. Wilson deixara para Irma. E deparou logo a com história do profeta Elias, de que se lembrava confusamente, e que ascendeu aos céus num carro de fogo. Assim, ele, quando o pasmo e a indignação na igreja estivessem no apogeu, ascenderia aos céus no avião do Partido.

Sim, aquilo, sem dúvida, ia compensar tudo. Mas até lá... E se não sabia como ia encarar o Cancela, menos ainda sabia como encarar Irma, ao cabo de alguns dias, quando tivesse de dizer alguma coisa, de explicar. Era árduo o seu caminho para o sítio do Cancela, pensava Manuel Salviano, enquanto o sol dourava na estrada a flor dos facheiros.

***

No paiol vazio em que Salviano arengava os lavradores quando ia visitar João da Cancela, o único mobiliário era, apoiado contra o muro, o grande caixote em que se sentava Salviano para falar aos companheiros recostados à parede, num pé só, ou sentados no chão, frente ao caixote. Quase sem saber Salviano adotara um “estilo”, ou pelo menos um exórdio. Começava sempre contando uma história, pois inconscientemente já vira que as histórias prendiam a atenção daqueles ouvintes de olhos um tanto perdidos em distâncias imensas. Começava dizendo:

- Naquele dia, em Porecatu, antes de vir a Polícia de rifle para cima dos posseiros, o Janjão de Sousa ainda veio me dizer, como se andasse com um rei na barriga, que eu não devia ficar fazendo zoeira entre os homens, que as terras não iam ser tomadas e que aquilo de tocarem os de Porecatu para o centro do Paraná era conversa fiada. Isto era o que Janjão de Sousa andava dizendo antes do almoço. Pois antes da janta não dizia mais nada não, estirado na cama com uma bala no ombro. E quando sarou foi para largar sua terra no norte do Estado e pegar terra brava lá longe. A diferença é que agora Janjão de Sousa só tinha um braço para roçar a terra.

Depois da pequena história, alertada a atenção dos homens, ele falava na maldade que mora na alma dos ricos e na fraqueza que é a eterna companheira do pobre.

- O engraçado - dizia colérico - é que quando um rico se sente ameaçado, sai rico até debaixo das pedras para ajudar aquele compadre. Mas pobre cisma de viver sozinho. Pobre faz mutirão quando é para plantar uns pés de milho depressa ou construir um rancho em dois dias. Mas quando ameaçam arrancar todos os seus pés de milho ou derrubar a sua casa, ele assunta sozinho, não sabe com quem falar, e quando pensa em fazer alguma coisa já está sem nada neste mundo. Pobre só se arrelia quando já é tarde demais.

E daí partia para a propaganda:

- Só quero que vocês imaginem uma coisa: imaginem todos os pobres juntos, com rifles, com paus, com ferro de tocar boi, imaginem todos os pobres do S. Francisco subindo juntos para o Cariri, baixando lá para a pancada do mar! Quem é que pode resistir a nós todos? Quem é que vai mandar a gente parar?

Mas naquele dia em que devia falar na sua conversão e em Deus, Manuel Salviano, depois de sentar no caixote, pousou os olhos no chão, em vez de olhar o seu grupo. Os de pé, descansando numa perna como cegonhas amarelas, saíam daquela modorra equilibrista e se deixavam escorregar pela parede até sentarem no chão, coçando o dedão. Estranhavam a demora de Salviano em começar. João da Cancela, postado à esquerda de Salviano, de cócoras no chão, pitava seu pito de barro, também um tanto intrigado com a demora. Finamente, Salviano, enchendo o peito amplo, e coçando uns fiapos de barba no queixo, começou:

- Home, esta vida da gente é mesmo uma coisa esquisita... A gente sabe tão pouca coisa que um belo dia a gente descobre até sobre a gente mesmo coisas que ninguém havia de dizer... Eu que estou aqui sempre falei nos padres que vivem com a boca cheia de reza e de amor pelos pobres mas que na vida mesmo de verdade estão sempre com os donos dos gados, das fábricas, das árvores. Sempre falei mal deles, mas outro dia só é que vi que eles eram... homens de Deus.

Dois dos capiaus escorregaram pela parede e sentaram, boca aberta, e o João avançou um pouco a cabeça para a frente, quase furando o rosto de Salviano com a mirada dos olhos. Salviano sentiu que crescia dentro de si uma raiva enorme de Júlio Salgado e que uma raiva ainda maior envolvia todos os padres do mundo. Para não começar estragando tudo, o melhor era mesmo descarregar em cima deles aquela ira incontrolável e fazer o elogio do Senhor Deus, que pelo menos não existia.

- Não entendam mal não - disse Salviano, as faces aquecidas, e sentindo a familiar visita da eloquência, esses trapos de gente que a gente vê por aí, cevada nas esmolas, no suor do povo, esses padrecos malandros que vivem à custa de tudo, menos de uma enxada honesta ou de um machado, isto é o que tem de pior em todo este Brasil e em cada pingo deste S. Francisco. Se tivesse por aí uma praga de padre como tem de algodão, uma praga que fosse roendo da batina até o tutano dos ossos dos padres, palavra que eu acendia cem velas no Bom Jesus para que a tal de praga baixasse aqui neste vale e criasse raiz.

Os ouvintes, tranquilizados, reconheciam o Salviano de sempre. Mas indagavam lá de seus botões que história tinha sido aquela do começo, dos homens de Deus. E Salviano agora já sabia como continuar:

- Por eles ser gente assim, tão ruim mesmo, é que eu não entendia como todo o mundo no Brasil ia atrás deles. Que tempo que a ideia tinha entrado na minha cabeça e eu não queria deixar ela assentar, sempre espantando ela como uma mosca. O que a ideia estava me dizendo é que padre é homem de Deus. Ele pode não ser homem, de tão ruim que é tantas vezes, mas o povo vai atrás dele porque ele fala em nome de Deus, e de Deus eu não estou mais fugindo, companheiros.

Sem nem mesmo querer olhar o Cancela e compreendendo pela cara dos outros que a estupefação era geral, Salviano pediu socorro às palavras, puxando à tona da memória histórias que tinha ouvido de conversões e que escarnecera ao ouvir.

- O fato que eu hoje queria contar a vocês é que no meio da caatinga, debaixo de um sol de rachar, eu vi aquela nuvem de ouro que veio descendo e nem vi a figura que estava nela porque brilhava demais, mas vi na terra a sombra de dois dedos compridos, uma sombra enorme, feito uma forquilha cobrindo facheiros e juremas e atravessando o rio. Ainda tentei ver de novo a figura porque uma coisa assim tão clara e tão cheia de luz devia ser o Santo lá da Lapa, mas qual! é muito mais fácil a gente dormir de olho aberto pregado num sol do meio-dia em ponto do que virar a cara, e pálpebra meio arriada, para uma nuvem daquela e uma coisa assim, que alumia como aquela nuvem, e eu então caí nos joelhos e fiquei tremendo... Quando abri os olhos a nuvem de ouro tinha desaparecido, mas a luz tinha sido tão forte que mesmo o sol de rachar, que antes parecia tão forte, agora era feito uma bola escura. Eu procurei a nuvem e depois olhei no chão para ver a sombra da forquilha dos dedos de Deus, mas a forquilha tinha virado uma cruz do tamanho deste mundo, que cruzava o S. Francisco e se deitava na caatinga até as beiradas do horizonte. E mesmo feita de sombra, aquela cruz brilhava muito mais no chão do que o sol peco pendurado no céu.

Quando Manuel Salviano, meio tímido depois do seu arroubo, olhou em torno, viu que todos - mesmo o Cancela - o olhavam com olhos que nunca haviam tido, nem na hora das melhores histórias. Compreendeu num relance, com delícia e com um terror inexplicável, que Júlio Salgado sabia o que dizia. Se metesse na cabeça daquela gente que era Deus que estavam seguindo, iriam a qualquer parte. Ah, era preciso aproveitar a abusão para livrá-los dos padres. Quando chegasse o dia, em Petrolina, eles iam ficar envergonhados de ter engolido tanta mentira e se tornariam homens de verdade. Confiando na apoteose a vir, Manuel Salviano, agora muito ancho, fez da história da sua conversão e da aparição na nuvem de ouro uma espécie de antologia de tudo quanto ouvira em matéria de conversões milagrosas.

Nem ele sabia que tinha ouvido tantas, que conservara tanta história de abusão na cabeça.

                                       (Assunção de Salviano, capítulo V, 1954.)

A VOLTA DE DEUS SIGNIFICAVA TAMBÉM A VOLTA DO DIABO

Manuel Salviano, preso à tardinha do dia da delação, discretamente, quando regressava do sítio do Cancela, foi interrogado na delegacia e acareado com outras pessoas durante cinco horas maciças. Limitou-se a declarar pacificamente sua inocência e a dizer com a maior simplicidade que não sabia explicar o aparecimento da mala no galpão. Foi denunciado pelo promotor e ficou Juazeiro a esperar o dia do julgamento - mas a denúncia já não interessou Salviano em nada. Depois do longo interrogatório, estendeu-se no monte de palha que lhe servia de cama na enxovia e durante quatro noites e três dias não se mexeu - ou se mexeu foi sem saber, enquanto dormitava. O ruído que ao fechar-se fez a porta, não tão sólida assim, do cárcere escuro e úmido, lacrou Salviano num ventre de meditação. A primeira coisa que viu diante dos olhos, quando os cerrou, feliz, foi o leito morto de um rio para onde voltava a deslizar o quase invisível cordão de prata de um filete d'água. Uma tenuíssima miséria de cordãozinho de prata sugado vorazmente pela areia de cinza e que parecia haver sumido para o resto da eternidade sob a primeira pedra surgida, mas que retomava sua viagem para além da pedra alguns instantes depois, que morria em todas as frinchas, em todas as gretas, como se houvesse regressado ao cacimbão da água-mãe, mas aflorava de novo, adiante, fio de cristal teimoso, filhotinho de rio maltratado pela fulva madrasta de areia. E depois o cordão mais grosso, o jorro mais forte, a cachoeira invadindo o leito seco, chiando nos pedrouços ressecados das barrancas, lançando alegremente pedra contra pedra, avermelhando barro morto e amolentando tabatinga hirta, tornando tudo viscoso, trêmulo, encharcado, fecundo. Assim tinha Deus entrado com alarido pela sua alma no dia em que ele abrira não sabia que barragens há muito solidificadas a montante do coração ressequido. O leito era tão seco que ele, descrente da existência de águas, derrubara as comportas pensando em dizer depois, para enganar os tolos: “Vede as águas como correm. Não vos dizia?” E quando acaba ele próprio vira o flerte, o jorro, a cachoeira lançarem-se àquele álveo sem memórias d’água e afogarem-no sob um despotismo de cavalos de patas de espuma relinchando entre as barrancas altas, rebentando ancas ferventes nas rochas, tomando nos dentes d'água borbulhante o freio de pó. O espanto que vira nos olhos do João da Cancela e dos capiaus fincados num pé feito cegonhas era uma parcela ínfima do assombro que crescia dentro dele mesmo à medida que aquilo que enunciava como mentira no mesmo instante se cristalizava em rocha de verdade dentro de sua própria boca. Falava brisa e quando queria fechar a boca sobre a brisa mordia pedra. Inventava e a invenção crescia de bronze na sua frente. Encontrou em breve seus limites porque se continuasse querendo mentir, se blasfemasse, se criasse monstros, eles também se perfilariam na sua frente e começariam a viver alegremente ao seu redor. Porque uma coisa tinha aprendido logo: a volta de Deus significava também a volta do Diabo e a cada par de asas correspondia um par de cornos. Quanto mais se acreditava mais perigo havia, quanto mais a gente se inteiriçava para refrescar a mão numa estrela, mais sentia a sola dos pés lambidas pelas chamas de baixo. Ele agora sabia que os homens muito bons mesmo e que não acreditavam no mal eram os piores homens. Era quase possível apontar os melhores pelo Diabo que os acompanhava ou pelos Diabinhos que levavam pela mão.

[...]

                                          (Assunção de Salviano, capítulo XII, 1954.)

PRISÃO AZUL

Patas macias sobre folhas mortas. Ao atravessar num salto a janela aberta o tigre sabia muito bem que o lenhador tinha saído. O bebê de dois anos estava sentado no chão, brincando. Sozinho, sozinho. O tigre se aproximou cauteloso e quando a criança viu aquele cachorrão rajado abriu com espanto dois olhos azuis, dois lábios sorridentes, dois bracinhos. O tigre começou pelos braços. Depois devorou o resto da criança e tratou de voltar à floresta.

Suponha, agora, que esse tigre cresceu, deixou de comer criança e relembre um dia como havia devorado o filho do lenhador. Um sorriso estranho paira sobre sua cara, sorriso no qual seu orgulho tigrino só permite que se manifeste um tiquinho de remorso. O resto do sorriso é a pura lembrança da carne tenra da criança, é desprezo pelo lenhador estúpido que deixou a janela aberta - uma completa orgia de satisfação consigo mesmo.

Foi com um sorriso assim (e há sorrisos dificílimos de descrever) que o amigo do homem desaparecido se aproximou da janela do seu apartamento tendo na mão o livro que o desaparecido dedicara a ele: “Para você, meu grande amigo”. O amigo olhou lá fora o mar que ia além da praia de Copacabana e que flambava ao sol do meio-dia como uma poncheira acesa. Era quase um milagre a capacidade que tinha o Rio de dar às pessoas uma sensação de bem-estar, de saúde. O desaparecido também amava o Rio. Curioso como ele tinha desaparecido de forma tão absoluta. Evaporou-se. Soube-se depois da sua morte que ele passara os últimos dez anos de vida nas brenhas de Goiás. Ninguém sabia ao certo de que modo morrera. O manuscrito do livro tinha sido encontrado no meio das coisas dele, o manuscrito em cuja primeira página aparecia a dedicatória a ele, o amigo. O sorriso de tigre regenerado voltou à cara do homem que lembrava o amigo: “Para você, meu grande amigo”.

Antes de sumir, o desaparecido frequentemente ria de si mesmo. Diferenças de grau, só de grau. Diferenças de espécie são um absurdo. Mesmo quando muda, a espécie muda gradualmente, portanto é válido o princípio. Veja-se, como exemplo, a sensação que às vezes tomava conta dele em plena rua e que ele chamava de perda de contato com a realidade: isso acontecia com todo o mundo. Só que com ele a frequência e a intensidade com que acontecia eram muito maiores. Parecia uma bolha a inchar, inchar e doer. Perguntara a uma porção de pessoas se acontecia com elas de repente, no meio da rua e em hora de movimento, começar subitamente a sentir a estupidez incompreensível de todo aquele ir e vir. Sim, acontecia. Mas ficavam todos surpreendidos e faziam cara de dúvida quando ele lhes perguntava se sentiam aquilo a ponto de parar no meio da multidão; de olhar um lado para o outro, tentando entender o que estava acontecendo; de seguir alguém, para descobrir onde estava indo e para resolver o mistério de tanta pressa; de logo depois fazer o mesmo em relação a outra pessoa; de olhar angustiado aqueles arroios humanos que não corriam para nenhum mar comum e sim para lagoas isoladas, piscinas, poças d’água; de segurar com ambas as mãos a cabeça que doía e correr para o meio da rua sem pensar nos carros que passavam rápidos. Não, isso era um exagero e aliás dava para sentir, em todos aqueles que interrogava, que nem acreditavam que ele vivesse momentos assim. Eram pessoas que não acreditavam sequer em diferenças de grau.

- Deve ser sua imaginação, diziam com um sorriso, mas que é interessante não tem dúvida. Aliás, hoje em dia está até na moda uma certa morbidez, acrescentavam, sem saber que estavam usando uma arma muito antiga e possivelmente necessária.

A verdade pura e simples é que ele só fazia essas perguntas com a honesta intenção de obter uma resposta, de descobrir alguma coisa a respeito da pessoa com quem falava, ou, talvez mais ainda, sobre ele mesmo. Já lhe bastava, e muito, o quebra-cabeça representado por todos aqueles desconhecidos que ele tinha ímpetos de parar e interrogar sem mais nem menos no meio da rua.

Uma coisa, porém, o preocupava mais que qualquer outra na véspera do dia em que desapareceu. Aquela sensação que nas ruas apinhadas de gente acabava quase em angústia, pois envolvia estranhos, na sua própria vida íntima, privada, acabava em puro contentamento. Quando lhe aparecia um problema especial a resolver, ele o encarava corajosamente, sem evasões ou truques, pois sabia de antemão qual seria o resultado. Com método, pesando prós e contras, considerando todas as consequências, chegava à própria e nua raiz do problema... e então tudo se evolava, se desfazia no ar, e ele entrava num estado de puro e neutro prazer, um prazer branco, luminoso, para lá do pensamento. Como se fosse entrando com cautela mas com passo firme numa floresta densa na qual, chegado ele ao ponto mais escuro, todas as árvores ainda em volta tombassem ao mesmo tempo, no maior silêncio; e só permanecesse no mundo a luz ofuscante do sol. O que o preocupava na véspera do dia em que desapareceu é que ele tentava, mas ainda não havia conseguido, concentrar todas as suas faculdades num problema sério.

Por que tão sério? Porque envolvia o amigo. Não por causa de minha mulher, continuou o homem que desapareceu, determinado agora a pensar seu problema até o fim. Para mim minha mulher é feito um sapato velho, cambaio. E meu amigo sabe muito bem disso, o que apenas torna a coisa toda mais incompreensível. Um tolo desejo de aventura? Nunca, jamais. Meu amigo sabe que eu não abandono minha mulher porque ninguém propriamente abandona um par de sapatos velhos. A gente simplesmente os esquece em algum canto. Ele me diria, se fosse o caso, que havia, que há alguma coisa entre os dois - e pronto.

- Usei aquele seu sapato velho outro dia, ele diria.

Tudo bem. São inúmeros os caminhos abertos neste mundo mesmo para quem caminhe descalço. Que sentido haveria em criar um caso, sobretudo quando eram tão velhos os sapatos? Não, ele está cansado de conhecer meus sentimentos e já teria me falado a respeito. Ou... Caso fosse verdade (o chato é que tanta gente dizia que era que ele se obrigava a pensar tanto sobre tal bagatela), só uma explicação era possível: meu amigo de fato se apaixonou por minha mulher e simplesmente não tem coragem de me dizer. E quem sabe por minha exclusiva culpa? Ela para mim tem tão escasso valor, e isso eu disse ao amigo tantas vezes, que lhe falta coragem para dizer que passou a amar uma pessoa tão depreciada. Sim, talvez fosse isso. E o homem prestes a desaparecer sorriu, meio envergonhado de pensar que estava, ainda que sem intenção, fazendo uso do amigo: seria de todo o cúmulo da amizade se o amigo pensasse em ficar definitiva e legalmente com minha mulher. Aqui se apagou no seu rosto, o vago sorriso de até agora. Quem sabe, Deus meu? O amigo sabe como é grande meu amor por Maria Auxiliadora. Será que lhe ocorreu a ideia de se sacrificar por mim? Não, nem eu permitiria nem ele... Eu só quero Maria Auxiliadora como a tenho agora, mesmo porque a gente não se casa com uma mulher assim, a gente simplesmente aceita a luz e o calor, banho de sol no coração do inverno... Ela é quase a Luz! Aquela claridade. A floresta que se deita no chão. Era precisamente quando chegava ao ponto em que a floresta se tragava a si mesma que Johann Sebastian começava a passar a música para o papel, aquela música que se encerrava de repente de forma inesperada, mas que podia ter continuado para sempre, eterna, já que não tinha fim e ele apenas aparentava ou fingia ter chegado ao fim porque chegara isto sim ao fim do papel pautado e porque sabia que ninguém podia suportar sem enlouquecer o luzir permanente daquela Luz em música.

O homem que ia desaparecer perdeu-se nas profundezas do seu problema... Ao voltar a si passou o lenço na testa úmida. A inexistência de todos os problemas. O compromisso que tinha assumido que cuidasse de si mesmo. Ele ia, isto sim, ver Maria Auxiliadora. Tomou o ônibus e no caminho deixou-se invadir pelo salgado travo de onda e de alga que subia das praias de alva areia, a infinita, angustiada fieira de areia que é a única coisa a impedir que as montanhas azuis e o mar azul se dissolvam num único e irreparável azul. O ônibus beirou primeiro a praia de Santa Luzia, depois Flamengo, Botafogo, as vastas areias brancas de Copacabana, Ipanema, Leblon. Quando parou no fim da linha o homem que ia desaparecer saltou e foi andando para a pequena casa em que morava Maria Auxiliadora. Aproximou-se das tábuas brancas do portão, espantadas de vê-lo àquela hora do dia. E lá estava a fascinante casa branca, feito um brinquedo esquecido na grama. Entrou, atravessou o jardim e espiou pela janela da sala de estar. Não viu Maria Auxiliadora, que ainda estaria dormindo. Abriu a porta da frente e ia atravessar a sala, em direção ao quarto de dormir, quando ouviu vozes e riso que vinham de lá. Ia chamar Maria Auxiliadora em voz alta, alegre, mas se conteve e andou até a porta. Ouviu as únicas duas vozes que realmente conhecia bem. Pela única e última vez em sua vida curvou-se até o buraco da fechadura. As venezianas estavam cerradas. Só havia no quarto aquela luz baça e enjoativa na qual se escondem aqueles que preferem não encarar nem o amor. O homem que naquele momento já quase havia desaparecido ouviu a voz do amigo, seguida do riso de Maria Auxiliadora.

- Pois é. Quanto mais ele acha que há alguma coisa entre a mulher dele e eu, menos consegue adivinhar que...

O homem que desapareceu saiu da sala de estar pé ante pé, fechou sem ruído a porta, passou em silêncio pelo portão de tábuas brancas e se foi. Como um ladrão. E qualquer policial que o pegasse naquele momento teria a certeza, sem lhe fazer qualquer pergunta, que o ladrão tinha encontrado joias, joias do mais alto preço, que ninguém imaginaria pudessem estar guardadas numa casa tão pequena e simples.

                                            (O homem cordial e outras histórias, 1993.)