Antonio Callado, senhor de minha admiração e dono do meu afeto,
A forma por que fostes consagrado na vossa recente eleição para a vaga aberta nesta Casa pela morte do nosso saudoso Austregésilo de Athayde criou-vos e criou-nos uma pequena embaraçosa dificuldade ao se cuidar de a quem iria caber a honra de receber-vos. E que, como o confessastes, foram tantos os vossos amigos desta Casa que vos acolheram de bom, de ótimo, de incomparável grado, que declinastes de indicar a quem caberia a missão, deixando a Josué Montello, nosso onipresente Presidente a quanto a esta Casa se refere, a incumbência de fazê-lo. Ele aceitou-a, porque sabia que a sua decisão seria fatalmente salomônica: aquele que vos falasse – como eu aqui agora – fá-lo-ia em nome coletivo, isto é, ainda que com responsabilidade pessoal, pagaria o preço ao revés de certa prática modernosa: os méritos que eu soubesse ou souber, acaso, ressaltar em vós e vossa obra serão socializados por nossos confrades e amigos comuns, por força do mandato que me coube; os deméritos em que eu incidir por não ter sabido ressaltar alguns mais deles serão privatizados e da minha só responsabilidade. Felizmente, sempre moveu-me pouca ambição oligomonopolista...
De fato, eu poderia simplificar esta minha tarefa, se não me fosse tão grata: frustrando os vossos amigos e admiradores que aqui acorrem, a esta festa, limitar-me-ia a dizer-lhes que estais onde já deveríeis, de há muito, estar, pois merecestes o sufrágio que merecíeis, porque nos honra ter-vos entre nós e sereis dentro de minutos empossado e passareis a estar aqui, com voz e voto e mandato, como em vossa Casa – e, por isso, sumariamente, convocaria os presentes: aplaudamo-vos.
Mas isso seria, ainda que como pilhéria, uma traição, a mim, a vós, a todos nós. Permiti-me, assim, minhas senhoras e meus senhores, que prossiga, mais grave ou menos leve, na esperança, porém, de não vos ser aborrecível, aborrecido, aborrido, aborrecedor, aborrente – chato, em suma.
Limitar-me-ei, para isso, a três (dentre trinta ou trezentas) observações iniciais sobre a vossa vocação – impresciente e impressentida talvez – de aqui estar, aqui, nesta Casa, ou em qualquer outra que, no que vai de século, buscasse preencher a função social que esta preenche ou aspira a preencher: nunca fostes outra coisa que o trabalhador intelectual que, pela pena, pelo dactilodígito (bis in idem), pois dactilográfico ou digitalizante, ou pelo magnetofone e, daí, as demais formas de vos fixar visual e vocalmente, nunca fostes mais do que essa coisa, não raro subestimada, de escritor, o velho escriba de há seis mil anos a esta parte que busca fazer – vivo, contemporâneo e coetâneo – o nexo entre o passado e o futuro. Não sem razão, assim, muitos dentre os nossos trabalhadores de um presente foram desse presente excluídos na esperança de que, num futuro, viessem a renascer. Vede a coerência, a tal respeito, das profissões que exercestes, como jornalista – vale dizer, escriba, redator, repórter, correspondente, diretor e, com qualificativos, diretor-adjunto, diretor-principal, diretor-chefe – omitindo só, nessa série, o diretor-proprietário, que não tivestes tempo, ou engenho, ou vocação, ou ambição de ser... Esta é primeira das observações prévias a que me referi acima.
A segunda é mais óbvia ainda: buscastes sempre a excelência (por vaidade, por dignidade sem dúvida), em todas as circunstâncias e instrumentos vocativos, apurando-vos no uso de vossas ferramentas de trabalho – esta vossa e nossa comum Língua, cujo senhorio desde cedo vos foi dado, exemplar, pois logo percebestes que, para tanto, em lugar de passivamente obedecerdes a ela no que os propedeutas dela diziam dela o que ela devia ser e descobristes que, amando-a, tínheis o senhorio maior, o de fazê-la inclinar-se à vossa imaginosa vontade criadora, fazendo-vos decisor da vontade dela. Nesta equivocíssima conjuntura sexual (sem nada dizer da social), “vontade”, “ela”, “dela”, como do gênero gramatical feminino, pois que delas vos assenhoriais, não quer insinuar em vós nenhuma forma torpe de machismo falocrático – fique isto claro. Na vossa polêmica interior, linguageira, de como saber optar em cada mil e uma possibilidade de dizer e escrever, sabíeis que diríeis o já dito ou buscaríeis o não dito, não raro previamente mal dito e – escrito a superpor-se ao já dito – o maldito. Nisso pusestes a inarredável angústia de servir vossa gente, como termo e mandato de referência irrevogável, impostergável e inalienável de vos justificardes perante vós mesmo e todos os vossos companheiros de vida, os vossos brancos, os vossos índios, os vossos negros, os vossos amarelos, os vossos mestiços, os vossos vossos e – não omitindo – as vossas, as vossas vossas, pelo amor que soubestes alimentar sempre a todas as formas de vida – e Ana Arruda Callado me perdoará que tanto eu veja nele de amor a tantas e tantos. Esta é a segunda observação prévia das três que me propus fazer.
A terceira virá a ser, se já não é, um lugar-comum: nunca soubestes, e menos ainda quisestes, deixar de fruir a vida, esta, a vida, o só milagre em que nos debatemos, os terrenos, os divinos, os extraterrenos, os extradivinos (e amanhã nos inventarão, no mesmo debate, os metaterrenos, os metadivinos), mas fruí-la eticamente, já como postura filosófica, já como militância cotidiana, para, a ela, vida, querê-la, querer-lhe, amá-la, gustá-la, degustá-la, mas não solitária, masturbatória, egoística, egocentricamente: ela, vida, sem ti, meu amor, que é que vale? E o valor dela é que essa pergunta é intrínseca a todos os filhos de Deus, do diabo, ou da vida mesma. Eis a terceira óbvia observação.
Seria uma blasfêmia, já agora, balancear vossa vida em seus pormenores, mas não o é antecipar que – nos muitos feitos e nos muitos anos que vos auguramos por virem – já há um cursus honorum em vossa formação e afirmação que parece ditado por uma notável coerência. Nascestes em Niterói – coisa mirífica que, nesta Casa, poucos o fizeram, pois convosco estiveram apenas o saudoso Levi Carneiro e o nosso saudável Marcos Almir Madeira, que terá ombreado convosco até as lides juvenis.Transferistes-vos para este vosso Rio de Janeiro, em que vos nutristes de uma aura e volição e ânsia perambulante, graças às quais pudestes estar naqueles pontos de vosso país-continente onde as incoerências, os descalabros, as torpezas do brasileiro contra o brasileiro mais se evidenciavam ou aguçavam. Por isso, estivestes no Pernambuco das Ligas Camponesas, no Brasil central dos vossos Antas e Jacis, na Bananal da sonhada harmonia intertribal, no Pantanal do latifúndio parasitário. E que lição de brasileiridade (essa coisa de que estamos tão necessitados, por tão ignorantes dela!) e que lição de brasileiridade recebestes disso e com isso nos retribuístes. Mas o alargamento de vossa fronteira brasílica e brasileira vínheis já fazendo, como que instintivamente associado ao pós-caos, mas não ainda antecosmo (quando o teremos?) na Londres da guerra e pós-guerra, na Paris da pós-guerra e da ante-esperança e no Vietnã do repto, do repto, do repto, em que fostes profético. Dizer que com isso vos tomastes cidadão do mundo, autorizado a vivê-lo, julgá-lo e condená-lo, não, mas desesperar-se dele, ou quase – não há nisso um curriculum vitae a que devemos inclinar-nos e que devemos, pelo menos, exaltar?
(Entretanto – e aqui vai um parágrafo interparentético impertinente – continuais vossa luta, nesse mundo que, malgrado seus dissabores, é o de nossa idade, [sois mais jovem, ou mais novo, ou mais moço do que eu...], o que nos promete uma perspectiva de vida em que poderemos sorrir-nos, sobretudo se seguirdes, e eu convosco, a lição que vos, nos foi dada pelo sempre saudoso Austregésilo de Athayde, cuja memória vos acompanhará vida em fora nesta Casa).
Vossa obra é una e trina, ou quadra, ou quina. É una na unidade da Língua – sempre, esta nossa comum lusofonia e lusografia, que aprendestes a usar e continuar e inovar, vinda de há um milênio até os amanhãs que nossos descendentes haverão de cantar; mas vossa língua é diversa nessa mesma unidade. Não sei quando – mas no vosso caso tudo converge para admitir o desde cedo – captastes esta coisa clara e racional: a nossa gramática não é nossa, senão que de cada um em função do interlocutor presente ou esperado ou desejado ou sonhado. Nosso léxico não é nosso, senão que de cada um em função do interlocutor e/ou sua idade e/ou sua atividade e/ou sua culturalização e/ou sua localidade e/ou sua localização e/ou sua e vossa emocionalidade, sentimento e o que sei eu mais, se sei... Os comprovantes disso estão nos discursos, nas mentações, nas intervenções, nas pensações, nas exposições, nas narrações, nas dissertações, nas dialogações, nas monologações dos vossos filhos de Deus em Literatura – de vós, de Deus e das vossas linguagens – que primam em ser o que são por serem esses vossos filhos o que pensam ou pensam que pensam mais o que dizem ou dizem que dizem – oh! Os manes que não desmentistes já desde Proust e de Joyce, tão antecipado entre nós pelo nosso Dominique Braga...
(Entre parênteses de novo: tivestes que enfrentar o dilema de optar pelo ‘brasileiro’ ou o ‘português’ como pseudolínguas autônomas – e não desatastes o nó górdio inexistente, seguindo os documentalistas da realidade linguageira que vêm de antes de Alencar e atravessam Távora, Machado, Lima Barreto, Adelino Magalhães, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Zé Lins, Rachel, Graciliano, Jorge de Lima, Marques Rebelo, Lúcio, Otávio de Faria, Rosa, Josué, Herberto, Nélida, Lygia, Lêdo, Rubem Fonseca, Haroldo Maranhão e tantos mais – inclusive os que buscaram reinventar uma sobre-realidade translinguageira – tanto mais que omito – por ignorância ou por irrelevância – a bobice de ser aqui exaustivo: não buscastes dizer à brasileira, buscastes dizer como dizeis ou dizem os vossos seres, pois que, ao serem criados ou forjados ou pinçados ou recordados ou recombinados por vós, têm a sua linguageiridade própria dentro da nossa Língua. A essa circunstância, perdoai-me que me espante – com espanto de admiração, bem entendido! – ante uma certa coisa: a pornofonidade, a escatologicidade, a obscenidade, a chulidade, a desvergonhicidade de uns poucos seres vossos, mas tão do nosso dia a dia – e perdoai-me poupar-lhes os nomes, pois que isso me soaria como que uma delação, em face de vossa impecável postura e compostura convivial com mulheres, homens, crianças e provectos – com o que, dizem, vos fazeis muito British, o que é, positivamente, um tipo de lisonja de que não necessitais.
De fato, vossa formação – e não nos esqueçamos de que, nesta interpretação, estamos em formação até o instante em que morremos, pois até nossas deformações (quando as temos, e quem não as tem?) nela se subintegrarão – vossa formação, repito, convergiu toda – e isso é um post factum, de modo que os eventuais objetores não me venham com os borzeguins ao leito... – convergiu toda para a unidade estética e ética que sois: quisestes e buscastes ser jornalista e o fostes em plenitude, se mais não for com algumas das mais perdurantes e penetrantes reportagens sobre nossa história – do Brasil e de fora dele; quisestes ser romancista e o fostes, como só poucos grandes no Brasil e na Língua o foram; quisestes ser dramaturgo e aí resolvestes uma aparente lacuna de vossa cosmovisão, ou mundivisão, ou, mais concentradamente brasilivisão, pois sem vossa dramaturgia o componente negro de vossa humanidade mestiça e sofredora talvez não se tivesse tão fortemente marcado. Enfim, quisestes ser participante, enfrentando cara a cara o vosso e nosso presente (quando tantos acham, ainda, que o presente não chega a ser história) na sua realidade urbana, suburbana, rurbana, mas já não rural ou selvática e selvagem.
Dentre os que se têm criticamente debruçado sobre partes de vossa obra que considerem mais perdurantes, mais de um vê no vosso painel romanesco a mesma ambição conspectiva e abrangente de Alencar, isto é, captar com o conjunto de seus romances – falo de Alencar – a nossa indiada primeva, a nossa mineração, a vida urbana emergente com perfis de mulheres (e que bom gosto, pois não lhe caiu bem rabiscar perfis de homens...). Há nessa hipótese, nessa pseudocomparação, algo que discutir: que os vossos temas e problemas são o Brasil (e até no Vietnã o eram...) é fato que me parece pacífico, como, aliás, me parece ser também no caso da grande maioria dos nossos romancistas passados e contemporâneos – que se desbordam raramente das nossas fronteiras e, quando o fazem, fazem-no em geral remembrativamente, na cabeça de alguma sua personagem.
No vosso caso, porém, há um componente a que não buscastes nem quisestes fugir – e não há melhor palavra para dizê-lo que a de engajamento. Sabendo que a palavra em causa – e o que ela encerra de significância – vem sendo vibrada vindicativa e punitivamente contra os que fazem literatura social não in vitro, mas in vivo, não omitindo, assim, os males que o homem vem praticando contra o homem, degradando – é o corolário dessa argumentação crítica – a pureza da Arte, de qualquer arte, neste caso, a da palavra, invertestes a Crítica e os pressupostos desse tipo de crítica: municiastes-vos de quanto, como Ciências, a História, a Antropologia, a Sociologia, a Politologia podiam dar-vos, para poderdes não apenas ver, na realidade, o que os cientistas e ensaístas buscam e – às vezes – conseguem ver, mas fostes além: vistes a realidade em movimento, com suas paixões e sentimentos e ódios e opróbrios, com seus cursos e correntes e forças divergentes ou convergentes, para chegarem a algo que vem sendo o vosso alvo passional: como o Brasil sairá do impasse (é bem esse o termo) a que chegou? Como lhe caberá a ele, Brasil, ver-lhe o ninho de víboras de seu atraso e imobilismo e vislumbrar o ninho dos carcarás de seu futuro, de seu tão augurado futuro de abundância e bonança antecipado tão ostensivamente pela riqueza e variedades dos seus bens e recursos naturais e humanos.
Essa busca, essa busca, essa busca vem sendo obstinadamente a vossa – a de um campeão da confraternidade possível entre nós, sem pieguices da boca para fora, sem sentimentaloidices, mas com a coragem de nela, fraternidade, crer – ainda quando, chegando ao coração do Brasil, sobre ele virdes os biliões de saúvas que o corroem. É que o vosso e nosso Brasil, montado sobre cinco séculos de História, é o Brasil de hoje – o Brasil do latifúndio, o Brasil da extinção dos índios, o Brasil da interdição dos negros, o Brasil da exploração das mulheres, das crianças, dos pobres, da imensa maioria da sua gente, a que não tem sido nem vem sendo nem é dado o direito real a um mínimo de saúde, de alimentação, de instrução, de respeito, de dignidade – e como é triste ter de dizê-lo no instante em que buscamos festejar-vos. Mas, por certo, me acharíeis um alienado se, sobre vossas obras e vossas lutas, tão generosas, viesse eu brandir-vos ufanismos pelo Brasil que tem sido: afinal, a sua lógica é férrea, pétrea, adamantina; o presente é presente porque é a continuidade do que tem sido e vem sendo. Claro, diremos todos.
Mas faremos anamneses ou recapitulações diferentes: uma é a dos que culpam os brasileiros por suas próprias injunções, preguiçosos, ignorantes, doentes, apáticos, abúlicos, irresponsáveis, sensuais, procriadores, gozadores, vítimas, sim, mas de si mesmos; outra é a dos que, como vós, mostram que vimos sendo uma cultura impiedosa, ímpia, que vem cometendo o etnocídio, o genocídio, o glotocídio de muitos milhões de índios; que importou seis vezes mais negros do que os territórios que viriam a constituir os Estados Unidos da América e os discriminou mais afrontosamente pois mais aleivosamente – não é verdade que somos uma democracia social e racial? –, e ouso olhar para vós e pedir-vos que me ajudeis a aqui contar com os índios, os negros, os amarelos que – dir-se-me-á – aqui não estão porque não querem.
Mas o futuro nos redimirá – e a esperança que nos é comum e a cota-parte que vossa obra lhe insufla sempre. Aí, caber-vos-á, a vós, aqui concelebrado senhor inventor (à antiga, como achador) de Brasis e Brasis, de brasileiros e brasileiros, de ideias e ideias, de abjeções e abjeções, de belezas e belezas, de esperanças e esperanças, o louvor que, mesmo não o buscando, mereceis – pois é dessa tara, desse fundo, desse poço, desse lastro, dessa sementeira de tristezas e angústias que vindes fazendo frutificar, com vossos irmãos em Letras, a esperança Brasil.
O fato é que aqui – com Ana, vossos filhos, os vossos – estamos todos, os amigos, os admiradores, os confrades, os bisbilhoteiros benévolos, os pícaros ridentes, estamos todos aqui aplaudindo-vos com emoção sincera dos que vos são gratos pelo que nos destes e nos dareis por muito tempo.
Estais em casa; desfrutai-a.
12/7/1994