AS LETRAS JURÍDICAS
Há cidades que são como as criaturas humanas, das quais só guardamos alguns traços essenciais. De umas, lembramos mais as linhas projetantes de uma catedral, a imponência de uma praça, um teatro que a outros serviu de modelo, um jardim de canteiros simétricos ou, então, um grupo de crianças álacres expandindo saúde em seus trajes tradicionais; de outras cidades, o que nos resta na memória é apenas uma visão de conjunto, a composição aparentemente arbitrária ou intencionalmente racionalizada de suas vias públicas, ou de sua dominante arquitetura. Segundo nossos pendores afetivos ou culturais, a cada localidade fazemos corresponder um símbolo que nem sempre coincide com aquele que seus habitantes vaidosamente ostentam.
De Bolonha, a douta, o que mais me impressionou não foram as suas arcadas conventuais, nem a vetusta Universidade, onde nós brasileiros apontamos, orgulhosos, entre os brasões dos reitores que lhe ornam os capitéis, grandes nomes da linhagem lusitana ou hispânica, raízes de Coimbra e Salamanca. Nem mesmo domina o campo de minhas lembranças a torre inclinada dos Garisendi, de cujas bases contemplei a passagem das nuvens para reviver a aflição de Dante, sentindo pender sobre ele e Virgílio o vulto aterrador do gigante Anteu para os transferir à última plataforma do Inferno:
Qual pare a riguardar la Garisenda
sotto ‘1 chinato, quando un nuvol vada
sovr’essa si, che ella incontro penda.*
Da cidade natal dos pintores Caracci e Domenichino e dos físicos Galvani e Marconi, o que mais se fixou em meu espírito com sinais indeléveis – vede como têm força os idola tribus! – foram as capelas ou arcas erigidas para relembrar juristas da Escola de Bolonha, a qual, a partir do século xi, reconstruiu amorosamente as lições do Direito Romano hauridas nas matrizes do Corpus Juris Civilis de Justiniano. Felizes tempos aqueles em que o povo eternizava na praça pública figuras de jurisconsultos, ao lado de santos e de heróis! É que a humanidade, na sua constante aspiração de liberdade e igualdade, sentia que os glosadores medievais, como Irnério, Accursio e Odofredo, estavam lançando as bases de uma nova ordem social, legítima, porque fundada na constante tentativa de realizar o justo. Foi na mesma época que, da alma popular, brotaram os cantares dos trovadores, intérpretes espontâneos de sua gente, preparando a emergência das línguas novilatinas, flores do Lácio ainda incultas, mas destinadas a resplandecer na poesia lírica de Petrarca, nas éclogas de Garcilaso de la Vega, nos ensaios de Montaigne, ou na epopeia de Camões.
Perdoai, senhores, se, com certo artifício de bacharel, estou reivindicando para as Letras Jurídicas não os puros valores estéticos dos poemas ou dos romances, mas apenas a humilde função dos alicerces que somente existem para bem servir. Nem seria por outra razão que as portas desta Academia se abrem, periodicamente, para acolher juristas, desde os fundadores, como Clóvis Beviláqua, até Pontes de Miranda, que hoje festivamente recebemos, passando por uma plêiade tão grande de diplomados em leis, cujos valores se projetaram nas mais diferentes manifestações do espírito, que incorrem em graves erros e lacunas aqueles que pretendem escrever a História da Cultura brasileira, fazendo abstração de nossas Faculdades de Direito tradicionais.
DOIS AMIGOS
A Hermes Lima, cultor da Ciência Política e do Direito, sociólogo e ensaísta de excelsos méritos, ligam-me linhas afetivas que remontam à minha juventude, quando, entre surpreso e arrogante, ainda nos bancos da Faculdade de Direito de São Paulo, dele recebia o convite para lecionar latim e Literatura latina, talvez no primeiro curso destinado a preparar jovens para exames vestibulares. Foram três anos de convívio, ao lado de Alfredo Ellis, o historiador e antropogeógrafo, três anos em que mais aprendi do que ensinei. Aprendi com Hermes Lima a arte de não ostentar ciência como condição essencial à sabedoria; dele recebi o sereno contemplar dos fatos e dos homens, com aquele seu sorriso aberto que era como que uma ponte estendida à compreensão.
Quando inesperadamente nos deixou, foi parte de minha existência que partiu com ele, como bem o soubestes retratar nos belos versos em que confidenciais:
À medida que os anos passam, cresce,
alteando-se, junto a nós, como um suave abrigo,
num obscurecer de céus em que anoitece,
aquele algo de nós que morre em cada amigo.*
A um amigo sucede outro amigo; a um jurista, outro jurista. Nossa amizade, Sr. Pontes de Miranda, é quase tão antiga, pois, mesmo antes de contarmos com a vossa prestigiosa presença em São Paulo, no 1.º Congresso Internacional de Filosofia realizado no Brasil, como parte das comemorações do IV Centenário da Cidade, já compartilhara dos valores de vosso espírito, desde os aforismos da Sabedoria dos Instintos e da Sabedoria da Inteligência até o monumental edifício jurídico que viestes construindo, pedra por pedra, livro sobre livro, com tal dedicação e desvelo que por certo vos cabem, mais do que a qualquer outro, os versos de Castro Alves, o patrono de vossa Cadeira:
Quando ante Deus vos motrardes
Tereis um livro na mão:
O livro – esse audaz guerreiro
Que conquista o mundo inteiro
Sem nunca ter Waterloo.
AS CONVICÇÕES DO SÉCULO XIX
Quem, ao dedicar-se à Jurisprudência, desde a década de 1920, não encontrou em vossos livros manancial inexaurível de doutrina, abrindo caminhos insuspeitados à experiência jurídica ou política de nossa Pátria?
Ainda há pouco tempo, convidado por Mano Rotondi, o venerando mestre da Universidade de Pádua, para traçar o panorama da Ciência Jurídica brasileira nos últimos cem anos, tive a oportunidade de assinalar a vossa decisiva presença em quase todos os quadrantes do Direito. Não creio seja esta ocasião adequada para analisar quanto contribuístes para a renovação de nosso saber jurídico, bastando salientar que, se com a obra clássica sobre o Habeas Corpus soubestes dar consistência dogmática à defesa dos direitos fundamentais do homem, com as demais colocastes nossa cultura jurídica no mais avançado posto da tradição do Ocidente, desde os domínios do Direito Constitucional aos do Processual, do Civil ao Mercantil, do Internacional Público ao Privado.
A mim, particularmente, logo no início de meus estudos, já tocados pelo sortilégio da Filosofia, os que mais me seduziram foram os vossos livros Sistema de Ciência Positiva do Direito, Introdução à Sociologia Geral e Introdução à Política Científica.
Mal saídos de uma Conflagração Universal, que iria pôr fim a todo um ciclo de Cultura fundada em desmedida crença na capacidade criadora dos indivíduos e nos poderes demiúrgicos da Ciência, ainda continuamos, por algum tempo, tanto no Brasil como no resto do mundo, alimentando a ilusão de podermos manter intocáveis os antigos ídolos que haviam encantado as gerações de Spencer e de Renan. As épocas históricas são dominadas por natural força de inércia, e, mesmo quando o tufão das guerras e das revoluções varre a face da Terra, custa a se recompor, segundo novos lineamentos, a realidade abalada pelos cataclismos sociais que, inesperadamente, cavam brechas e abismos na convivência humana.
Mesmo em tais crises de estrutura, por mais que lancemos olhares perscrutadores e angustiados, tentando romper os mistérios do futuro, jamais nos libertamos das raízes que nos vinculam ao passado. Somos, queiramos ou não, como o pressentiu o gênio de Nietzsche, os eternos portadores do cadáver de nós mesmos ao cimo da montanha, o cadáver das velhas crenças que formam parte essencial de nosso ser, de sentimentos arraigados que pesam como capa de chumbo embaraçando a compreensão dos novos tempos.
Destarte, como seria possível não compreender o sentido da obra que escrevestes por ocasião do primeiro centenário da Independência do Brasil, quando fomos naturalmente levados a fazer o balanço de nosso passado, em visão de futuro? Não foi por acaso que o ano crucial de 1922 acusou um saldo, à primeira vista minguado, mas do mais alto alcance nos planos político e artístico, com os movimentos da Semana de Arte Moderna e do Tenentismo, duas formas distintas mas convergentes de descobrir o Brasil. Não podemos olvidar que é também do mesmo ano o vosso Sistema de Ciência Positiva do Direito, destinado a rasgar novos horizontes à vida jurídica nacional, o que demonstra a sincrônica solidariedade dos valores em cada ciclo cultural.
Focalizada a essa luz, sem o anacronismo perigoso de projetar para o passado as perspectivas do presente, a vossa obra maior de 1922 oferecia à meditação brasileira admirável panorama da cultura jurídica do século XIX, a qual, na realidade, só começa a perder substância a partir da Primeira Guerra Mundial.
Se é certo que ainda vos mantínheis apegado a verdades consideradas definitivas, mas que hoje sabemos também relativas e provisórias, tais como a da universalidade do princípio de causalidade ou o primado do método indutivo; se ainda vos fascinava a ideia do progresso ilimitado, baseado nas leis científicas de pretensa objetividade isenta e transpessoal, já era um grande passo reconhecerdes o caráter estatístico das leis e a lacunosidade dos ordenamentos legais, reivindicando mais autonomia aos juízes no ato de julgar, como condição de justiça concreta.
Fostes, com efeito, o primeiro a empunhar, no Brasil, a bandeira da Livre Investigação do Direito, desde que lastreada em adequados conhecimentos sociológicos; e o fizestes com o entusiasmo que animou a geração que assistia ao declínio da Belle Époque, reclamando a supremacia dos fatos sociais perante a presumível plenitude hermética dos códigos.
Filho da Escola do Recife, como com acuidade o advertiu Clóvis Beviláqua, comungastes com Tobias Barreto em veneração talvez desmedida pela cultura germânica. Era com incontida alegria de descobridor de novas plagas que fazíeis a enumeração das novas teorias que deveriam nortear o Direito, dando valor de “princípios”, equiparáveis aos das Ciências Naturais, às diretrizes traçadas por von Büllow, Zitelmann ou Sternberg, princípios esses aos quais vossos discípulos acrescentaram, depois com igual deslumbramento, aureolando-os com o vosso nome, outros mais, como o do “espaço social”, da “integração dos círculos sociais” ou da “diminuição do quantum despótico”.
Seria enlearmo-nos numa crítica externa infecunda lembrar que a Teoria do Conhecimento, em nossos dias, já superou asserções ilusórias do Cientificismo Oitocentista, mostrando quão relativa é a objetividade das chamadas Ciências Exatas, e que, bem longe das certezas inabaláveis, o que caracteriza o saber científico o reconhecimento de sua constante refutabilidade crítica, através de renovadas tentativas e testes experienciais.
Verdade é, porém, que, se vos empolgavam os triunfos das Ciências Positivas, tivestes o mérito de não vos deixar seduzir pelas soluções unilaterais ou monocórdicas que erigiam, ora a Física, ora a Matemática, ora a Biologia, em modelo exclusivo da Realidade, talvez porque o hábito da Jurisprudência nos leva, a nós juristas, a uma compreensão unitária e orgânica da vida e do mundo.
O DESAFIO DA REALIDADE
A “Realidade”, palavra que significativamente sempre grafais com maiúscula, foi e talvez continue sendo o vosso tormento, a esfinge que vos devora, ou, consoante vossas próprias palavras, “a sibila de matéria e de espaço”.
Espírito essencialmente positivo, vinculado ao mundo da causalidade e do factual, nem por isso vos contentais com a fácil redução do real à trama tentadora das aparências ou de meros símbolos linguísticos. Se tudo são relações, não vos iludis confundindo o que nossos sentidos nos oferecem com o “Real em si”. Eis uma afirmação que a alguns parecerá estranha, sobretudo a quantos vos apresentam como adepto ortodoxo do Neopositivismo, para o qual seriam desprovidas de sentido, porque não suscetíveis de verificação analítica ou empírica, todas as asserções de natureza metafísica sobre o ser em si, ou os valores fundantes da Ética.
Ainda agora, ao rever vossas obras principais, desde os escritos da juventude até os mais recentes pronunciamentos, vi confirmado o vosso persistente reconhecimento de que a rede objetiva das relações, tanto no mundo físico como no mundo moral, submetidos ambos às mesmas leis universais, não exclui, mas antes exige, a “existência” (o termo é vosso) de “algo” que se furta e se furtará sempre à nossa capacidade cognoscitiva.
De Sabedoria da Inteligência destaco alguns tópicos elucidativos desse vosso realismo fundamental, cujo pressuposto é o “ser em si” que recua à medida que a Ciência avança, sem que esta jamais logre decifrá-lo por inteiro:
As relações são reais. Não há realidade que não sejam relações. [...] Por mais relativistas que sejamos, não devemos e não podemos excluir a coisa em si. [...] Ninguém jamais viu o fundo dos vulcões, mas ele existe [...] como existe a coisa em si. [...] No final todos têm razão: cantorianos e pragmatistas, idealistas e empiristas, o Monismo e o pluralismo, “porque o mistério das coisas é o uno no múltiplo”.
e, finalmente:
a Metafísica toca com as suas mãos imensas, com os seus milhares de tentáculos, toda a periferia do objeto: a sua afirmação é toda a “esfera” da verdade. Mas não “penetra” a coisa: os dedos só sentem a superfície, o que está por fora ou o que a Ciência, para ver, dissociou e discerniu (Obras Literárias, cit., pp. 148, 151, 152, 156 e 163).
Os mesmos ensinamentos, com mais rigor técnico, vemo-los repetidos em Sistema de Ciência Positiva do Direito, onde reiterais que “não há dúvida que é impossível elidir a coisa em si”. No vosso entender, “o terror e a hostilidade à coisa em si é em grande parte o apego à crença vulgar, ao dualismo do senso comum, criador da epistemologia conservadora”. Como se vê, o Monismo científico, em virtude de sua pluralidade imanente, não vos leva a repelir, como destituído de sentido, o problema da “face oculta do Real”. Com base no princípio do “plurimo no uno”, a concepção unitária do cosmos não exclui, como se vê, mas antes postula o “ser em si”, como tema de inevitável Ontologia. (Op. cit., Vol. I, pp. 6, nota 1, e 121 e segs.).
Dir-se-á que, com o volver dos anos, abandonastes essas teses que, mutatis mutandis, seriam redutíveis às do “realismo crítico” que, conscientemente ou não, está implícito em todas as investigações do empiriocriticismo de Mach, Cornelius e Avenarius, os autores mais presentes em vossas páginas filosóficas da década de 1920, mas não é o que acontece.
Se lermos, com efeito, com a devida atenção, a monografia que, consoante consta do Prefácio, sentistes a necessidade de escrever, em 1937, O Problema Fundamental do Conhecimento, fácil é perceber que, ao contrário de afirmações correntes, aceitastes com reservas as afirmações que brotavam do “Círculo de Viena”, com Wittgenstein, Schlich e Carnap à frente, bem como os ensinamentos de Bertrand Russell e seus continuadores.
Fácil é compreender o vosso entusiasmo quando, após eclipse de mais de 20 anos, durante o qual haviam predominado as ideias intuicionistas de Bergson ou do pragmatismo anglo-americano, podíeis ver jorrar, novamente, das fontes vivas da experiência um novo fervor em prol de teses tão caras ao vosso espírito, quanto à necessidade de um pensamento essencialmente vinculado às ciências empírico-positivas ou confundido com as Ciências mesmas!
Quero aqui sublinhar, antes de mais nada, a modernidade dos conhecimentos revelados nas pesquisas gnoseológicas, que então realizastes ao nível, das mais recentes e decisivas disputas em curso na Europa ou na América do Norte, desde as investigações fenomenológicas de Husserl até as contribuições da Nova Lógica ou da Teoria da Linguagem. Não incorrestes, em suma, no equívoco de tomar nuvem por Juno, enamorando-vos por figuras secundárias como a de Ludwig Noiré, que fora o encanto e o pecado de Tobias Barreto, mas soubestes assumir posição própria perante o que havia de mais representativo nos debates epistemológicos de vosso tempo. É esse um traço que merece ser assinalado em vossa produção científica: a atualidade da informação essencial, quer se trate de Filosofia, de Política, de Sociologia ou de Direito, orientação que passou a predominar cada vez mais na Cultura brasileira, corrigindo-se aquele vazio de gerações a que se referia Sílvio Romero, quando anunciávamos como novidades de última hora teorias já superadas, há muito tempo, em suas fontes inspiradoras...
Volvendo, porém, à linha central de vosso pensamento, se a vossa Teoria Fundamental do Conhecimento, entendida como Teoria da Ciência, assume certo ar de autossuficiência, sob as vestes modernas da linguagem neopositivista, não vos deixastes, no entanto, seduzir pelo “fisicalismo” do primeiro Carnap, assim como vos pareceu que no logicismo de Schlich se ocultavam resquícios de idealismo: antecipando-vos, de certa forma, às mais atuais posições neopositivistas, continuastes fiel às linhas de um realismo crítico assente em novas bases. Chegastes mesmo a reclamar uma nova Ontologia, não como teoria clássica do Ser, mas como estudo das estruturas do Real, muito embora reconhecendo a inviabilidade de penetrar-lhe a natureza íntima (Op. cit., p. 41, nota, e p. 49). Poder-se-ia afirmar que o que vos separa dos analistas da linguagem ou do logicismo matemático, cujos altos méritos a todo instante proclamais, é, em suma, a vossa convicção de que não se podem conceber relações que não sejam “relações reais”. No fundo, poderíeis concordar com o espírito sutil de Paul Valéry quando nos adverte sobre a ilusão de contrapormos ao Real as aparências, pois, “bien vite, on vient à penser que ce Réel ne vaut mieux que ses apparences”, e que “le mépris du Réel suit immediatement le mépris le l’apparence – comme le corps suit son ombre” (Cahiers, Paris, 1973, I, p. 502).
É claro que vosso pensamento adquire novos contornos, em 1937, mas o vosso realismo essencial persiste até se converter, na referida monografia, numa teoria sistemática sobre o jecto. Que é jecto? À primeira vista, parece que tudo se reduz a um signo linguístico, mas, a bem ver, o que reiterais é a referência imprescindível à “Realidade em si”, oculta, pressuposta tanto naquilo que é asserido pelo “sujeito” como naquilo que é captado do “objeto”. Como ponderou Djacir Menezes, o jecto é o que escapa às garras apreensoras de nosso poder cognoscitivo, o “inefável” de Hegel, o “incognoscível” de Spencer, mas, julgo eu, é sobretudo, a “coisa em si”, que, nos escritos juvenis, quisestes transladar do plano transcendental, em que a situara Kant, para o plano empírico, no qual indefinidamente avançam as pesquisas científicas do Real que, consoante acentuais, “é um deus, e, como todos os deuses, invisível e absoluto” (Obras literárias, cit., p. 29).
A bem ver, dais às crenças da mocidade vestes mais adequadas aos novos tempos, mas são roupagens que não logram encobrir a antiga ansiedade, a nudez de nossa insuficiência perquiridora, a incapacidade irremediável do homem perante a essência última das coisas, o que, de início, vos fazia oscilar da finitude à infinitude, até uma confissão inesperada: “É temerário negar a Deus [...] De minha parte não posso não crer: é impertinente a frequência com que O vejo em meus caminhos.” (Obras Literárias, loc. cit.).
Impossível vos parece, portanto, contestar que, além da rede de relações, que as percepções sensitivas vão tecendo, resta sempre algo de intocável e de inatingível, fechada ao homem a via das essências. Daí ser a vossa Teoria Fundamental do Conhecimento, em seu sentido predominante, um diálogo com Edmund Husserl, o qual, tentando superar Kant nas linhas de um novo platonismo visara a alcançar o eidos, a essência da Realidade. Não obstante vosso acordo com o mestre da Fenomenologia quanto à necessidade de “volver as coisas mesmas”, reconhecendo que “perceber é perceber algo” (Op. cit., Porto Alegre, 1937, p. 63), reiteradamente contestais a posição husserliana, de cunho idealista, sustentando uma solução que, em última análise, se mantém fiel à Filosofia metaempírica de Mach e Avenarius. Trata-se, como se percebe, de assunto que deveria merecer mais atenta e demorada análise por parte de nossos estudiosos das ideias, mas que não se harmoniza com a natureza deste nosso encontro, onde a Filosofia pura pode parecer conviva petulante e intruso...
UM ROMÂNTICO DO NATURALISMO CÓSMICO
É possível, meu caro Pontes de Miranda, que, a esta altura, já estais estranhando a imagem que faço surgir de vossos escritos, bem diversa da rígida catadura que, em geral, se tem de vossa posição científica, tão habituados andam quase todos com os contornos castigados, para não dizer, retorcidos de vosso estilo, mais preocupado com “a verdade fática” do que com o adorno da frase.
Talvez, causará maior surpresa se vos disser que, indo ao fundo de vosso sistema de ideias, todo alimentado de aparente positividade estrita, descubro um romântico da universalidade cósmica, segundo o princípio que enunciastes nas obras juvenis, e viestes confirmando pelo tempo afora: “a verdade do uno no múltiplo”. Estais convicto de que, na “peregrinação sacra” dos “exploradores da Natureza”, a harmonia só existe no “Real em si” e que, feitas as contas, o não conhecido é a razão última de nossa paixão de conhecer, tanto assim que não vos conformais com o “ignorabimus” desconsoladamente proferido por Du Bois-Reymond. (O Problema Fundamental do Conhecimento, cit., pp. 29 e segs.).
Ora, o Direito, em vossa teoria, não é senão um momento da harmonia cósmica, até o ponto de afirmardes que há sempre um aspecto jurídico em todos os seres do universo. Vossa afirmação é, nesse sentido, peremptória, bastando para comprová-lo uma única citação: “Quando o mineral se cristaliza em poliedros”, escrevestes, “há certo ritmo que, se não é o nosso direito, deve ser algo de vivo e de natural como ele” (Sistema, cit., vol. II, p. 84).
Por essa razão, o Direito não vos parece ser “fenômeno peculiar ao homem, e nem mesmo ao mundo orgânico” [...] pois “podemos mostrá-lo entre os sólidos inorgânicos (espaço euclidiano) bem como no mundo das figuras bidimensionais”, por significar apenas um sistema de relações e de conciliações, de composições de forças, ou, por outras palavras, uma expressão da lei geral de expansão e de adaptação que governa o universo. (Op. cit., Vol. II, p. 26 e passim).
No contexto dessa concepção cósmica, perguntar-se-á como é que, apesar de todo vosso extremado amor pelo determinismo causal –, a tal ponto que o Direito só pertenceria ao “mundo do ser”, e nunca ao do “dever ser”, – toda a vossa obra jurídico-política possa ter como fulcro essencial a ideia de liberdade.
É que em vosso pensamento atua outro “princípio”, não menos relevante, que é o da adaptação contínua dos seres ao processo evolutivo do Real, até culminar na autoconsciência do homem, o que vos aproxima, penso eu, do conceito de liberdade de Spinoza, como “consciência da necessidade”, à medida que esta vai sendo revelada, segundo seus nexos causais, graças à indagação científico-positiva da Natureza, cujos resultados espontaneamente se impõem a todos os espíritos.
Em vossa concepção, a evolução universal atinge o seu momento culminante com o advento do espírito como integração individual plena, quando o homem torna “tudo o que é seu, objeto de sua posse”. Nessa ordem de ideias, surge, em vossos escritos, a figura do Cristo, do “homem-deus”, como a plenitude da integração e da liberdade: “tudo nele está integrado, assim o dissestes, na sua divina humildade e todo ele entregue a si mesmo. Daí aquela estranha genialidade de ser sublime na fraqueza... Integrou-se, eis tudo” (A Sabedoria dos Instintos, em Obras Literárias, cit., p. 54).
Não obstante essa visão panteísta (e que outro adjetivo poderia eu empregar?) não falta em vossos escritos a atração rumo à transcendência, não só pelo fato de ser pressuposta a “face oculta” das coisas no processo infindável do conhecimento, como também porque declarais que todas as verdades se refletiram, certo momento, em Jesus, “como no espelho instantâneo da Realidade” (Op. cit., p. 131).
NO JOGO DAS PERSPECTIVAS
Não estou certo, Sr. Pontes de Miranda, de ter conseguido oferecer pálida ideia de todo o rico jogo de perspectivas que se projeta no decurso de vossa longa e fecunda existência, nem penso poder sempre contar com a vossa concordância, mas, no dizer acertado de Nicolai Hartmann, o drama de todo escritor consiste em não lhe ser dado saber qual o sentido mais profundo e duradouro de sua própria obra.
Está na moda remontarmos aos escritos da mocidade para melhor compreendermos a imagem dos autores, tendo tido sucesso a descoberta do “jovem Hegel” ou do “jovem Marx”. Fui atraído a ver no “jovem Pontes de Miranda” a raiz do batalhador que se espalma nas monografias jurídicas e na recém-publicada. Democracia, Liberdade, Igualdade, na qual a conquista dos valores mais altos da cidadania avança pari passu com as crescentes realizações das ciências positivas, o que vos leva a enaltecer o papel da educação do povo como condição primordial à vida democrática. Nem vos falta, perdoai-me se vos digo, o exagero de vincular, por excessivo apego intelectualista, os males dos regimes autocráticos de nossa época à Filosofia intuicionista de Bergson, em cujas lições outros juristas se inspiraram para captar a Justiça em sua pureza nascente...
Sei que jamais quisestes pactuar, um instante sequer, com qualquer compreensão jurídica de tipo emocional, tão profunda é vossa crença no encadeamento do universo segundo leis quantificáveis. Em vossos ensaios juvenis já se encontra, com outros ritmos, a mesma concepção cósmica que sempre animou vossa atividade intelectual. Só que, nas meditações de adolescência ou da primeira juventude, noto mais audácia e fantasia, achegadas ao gênio de Nietzsche, cuja presença me parece marcante em vossos aforismos, mesmo quando radicalmente vos afastais dele.
A escolha mesma do aforismo para expressão do pensamento é de incontestável inspiração nietzscheana; aceitastes, com galhardia, o risco das sentenças atômicas e conceituosas, que tanto se prestam a revelar a pérola de uma ideia criadora encastoada na ostra da frase, como para ocultar a pedra dura de um dogma.
Em vossos aforismos, que mereceram elogios encomiásticos de João Ribeiro e justo galardão desta Academia, vossa cosmovisão é a da natureza que progressivamente se autorrevela, graças ao constante esforço humano de perquirir e conhecer, até surgirem o gênio, o sábio, o profeta, o super-homem, personagens que, a todo instante, ressoam em vossas sentenças, confirmando amorável convívio com as obras aliciantes de Nietzsche. Ama-se também por contrastes...
Tudo vos parece governado pela “Energia” primeva, a qual ordena o mundo infindável das relações naturais e humanas segundo leis de simetria e adaptação. É a “Energia” que colocais no princípio de tudo; não o “Verbo”, que é a palavra absoluta e transcendente; nem a “Ação”, que é o impulso criador nos horizontes do poder humano. A “Energia”, ao contrário, é o princípio do Todo englobante, cujo conhecimento, jamais concluso, se impõe como dever e missão irrenunciáveis aos seres humanos, sujeitos às leis do universo, as mesmas para os insetos e as estrelas.
Se vos mantivestes fiel, de maneira geral, a tais premissas, podemos, contudo, observar mutações naturais em vosso pensamento, vinculadas às vicissitudes sociais e históricas de nosso atormentado século. Não ignoro que, na 2.ª edição de vosso Sistema, julgais poder confirmar, serenamente, o já pensado e escrito meio século antes (Op. cit., 2.ª ed., 1972, Vol. III, p. 317) mas, se a linha essencial de vosso pensamento se mantém inalterada, não posso deixar de observar compreensíveis mudanças, mesmo porque não transitamos pelo espaço social, passando de um a outro “campo de energia”, distintos apenas por diferenças de graus, num cenário neutro e homogêneo, mas participamos, antes, racional e emotivamente, de um mundo concreto de exigências vitais, contrastantes e imprevisíveis.
Assim é que o vosso entusiasmo juvenil pela “Livre Indagação do Direito” não se consolida nas obras posteriores de jurista, nos clássicos comentários às Constituições, ao Código de Processo Civil, ou no monumental Tratado de Direito Privado, cujos 60 tomos já bastariam para demonstrar que, no que se refere à experiência jurídica, não somos um povo subdesenvolvido, verdade que merece ser assinalada, desde a produção genial de Teixeira de Freitas.
Nada tenho a criticar-vos, por terdes reconhecido que, por mais que o jurista possa e deva se valer das pesquisas sociológicas, econômicas, psicológicas etc., segundo dados objetivos colhidos nas relações factuais, jamais poderá ele transpor, a seu talante, os horizontes fixados pelo sistema das normas jurídicas, horizontes móveis, é certo, em função de renovadas exigências sociais, mas que excluem o arbítrio do juiz, tão condenável como qualquer outro arbítrio.
Na realidade, a Escola da Livre Pesquisa do Direito, como o assinala Max Ascoli, representou uma ventania romântica que percorreu todos os quadrantes do Direito. Ventania benéfica que derrubou os ramos secos do formalismo jurídico imperante numa fase dominada pela compreensão individualista dos valores sociais; ventania que, sacudindo os troncos da Ciência Jurídica, teve a virtude de fortalecer as raízes do Direito, dando início ao processo de sua crescente socialização. O Socialismo democrático, que pregais, e que, segundo me parece, corresponde ao ideal da Democracia Social, ao Estado de Direito entendido como Estado da participação e da justiça sociais, acha-se em sintonia com o vosso entendimento do Direito como processo de constante adaptação e integração, visando a compor em unidade os “supedâneos fáticos” com as diretivas consagradas nas regras jurídicas, sempre em busca da justiça que pretendeis possa e deva ser “concreta, social, verificável e conferível como fato”.
Se abrandastes, por conseguinte, a rebeldia juvenil contra o mundo das normas, embora reafirmando a natureza “factual” da Ciência Jurídica, distinta da atividade dos aplicadores das regras, parece-me inegável que, a exemplo dos mestres alemães que teceram nova Teoria Geral do Direito a partir do Código Civil germânico de 1900, em igual tarefa hercúlea vos empenhastes, elaborando poderoso trabalho hermenêutico sobre as bases de nossa Lei Civil, de 1916. Não desejo passar, aqui, sem reparo, que nessa construção de teórico do Direito, atuastes com admirável rigor técnico, bem como com ampla visão histórica, na qual soubestes reservar papel de grande relevo aos antigos ensinamentos tanto dos jurisconsultos romanos como dos praxistas portugueses, os quais preferiam a concretitude do real aos enunciados puramente formais das normas jurídicas.
Mas, se algo de significativo me parece ter mudado em vossa compreensão de jurista, como fruto de diuturnas e desveladas experiências, penso que em outros pontos renunciastes também a certas afirmações da juventude de cunho arrogantemente varonil. Estou certo de que não diríeis mais, nos dias de hoje, que a mulher é simples reflexo da idealização que dela faz o homem que a ama; nem que a mentalidade feminina “consiste em simples jogo, mais ou menos ardiloso, de imagens e vãs mundanidades”. Nem tampouco correríeis o risco de asseverar que Eva “não foi feita para o Paraíso, mas para ser expulsa...” (A Sabedoria dos Instintos, em Obras Literárias, cit., pp. 57 e 59).
Paladino ardoroso dos direitos humanos, aprendestes que, afinal, em matéria de sexo, tudo nos une e nada nos separa... inclusive no plano dos méritos, das prerrogativas e dos deveres: é essa a lição que, inegavelmente, brota de vossos livros, a partir da maturidade.
Ai de nós se não tivéssemos a oportunidade e o encanto de alterar ideias e sentimentos, captando no humus da vida humana a inspiração de renovadas perspectivas!
É com essa bagagem cultural multiforme, que, esta noite, a nossa Academia vos recebe. Filósofo, jurisconsulto, sociólogo, ensaísta e poeta, por duas vezes laureado por esta Casa, por três vezes batestes à sua porta, e, por fim, foi ouvido o apelo do Don Juan que, certa feita, enxergastes em todo descobridor da Natureza e da vida, em todo aquele que, no ardor da conquista, sabe aguardar paciente, a resposta oculta no âmago dos seres.
Ninguém entra tarde em nossa Confraria, mas sempre a seu tempo e à sua hora, e, incontinente, o tempo retroage ao instante do nosso primeiro ato criador. No vosso caso, Sr. Pontes de Miranda, podeis relembrar, para vaidade recíproca, o que escrevestes, pouco mais que adolescente:
“Na história da inteligência, os últimos lembrados são os mais gloriosos. Glória que tarda é maior, porque exigiu mais altos espíritos que a pudessem sentir e proclamar.”
15/5/1979