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Artigo mostra um Lêdo Ivo raro e inédito

 

Em meio a tantos convites para presidir festivais internacionais de poesia e palestrar em congressos e seminários, o acadêmico Lêdo Ivo presenteia os visitantes do portal da ABL com um artigo inédito.

Poeta desde sempre, o autor de "A Cidade e Os Dias" (Prêmio Carlos de Laet) sucedeu Orígenes Lessa na Cadeira n. 10 da Academia Brasileira de Letras, em 1986.


Guardar o que está perdido
Lêdo Ivo

A mulher de Noé não queria entrar na arca e chegou mesmo a esbofetear o marido. A Bíblia silencia a respeito desse episódio do Dilúvio, mas sua veracidade é irrefutável. Ele atravessa milênios e figurava nos milagres medievais – naquelas peças teatrais que, ao lado dos mistérios, duraram seis séculos.

No Essai sur la littérature anglaise, Chateaubriand indica que esse desentendimento familiar ilustrava as representações teatrais da Idade Média. “La femme de Noé refusait d´entrer dans l´arche et souffletait son mari”.

A mulher de Noé esbofeteou o marido? Sim e não: é verdade e é mentira, realidade e ficção. Esse fato, ou preclara invenção da manhã dos tempos, conduz-me à natureza da vida, e de seu desdobramento criador que é a arte. A criação literária é ao mesmo tempo confissão e escondimento. Todos falamos a verdade e todos mentimos. A nossa própria existência, soma inumerável de versões intestinas e alheias, é uma ficção.

A dimensão mitológica da vida e do mundo me faz voltar à infância. As feiras de minha terra natal, estilhaços das grandes e fervilhantes feiras da Idade Média, não se limitavam à exposição e venda dos frutos da terra e das águas, das sucatas geradas pelo tempo e das artesanias canhestras dos homens. Nelas estavam presentes os fornecedores dos frutos da mente imaginosa e herdeiros de tradições  perdidas e espatifadas. Eram os contadores de histórias – os bufarinheiros de mentiras e sonhos.

De suas bocas saíam histórias muitas vezes antiguíssimas, restos quase irreconhecíveis de narrativas medievais; e em não pouco desses versos e prosas o laivo cabeludo e obsceno juntava as pontas da verdade e da mentira. Muitos dos desdentados ceguinhos das feiras alagoanas eram capazes de fazer corarem frades de pedra.

Nem sempre, porém, os menestréis ardilosos ou desengonçados, regidos por um instrumento de música, conseguiam manter o nível narracional que constituía o seu tributo à ética do ofício. O respeito à audiência numerosa e exigente os levava a se fazerem acompanhar de um secretário, escolhido para substituí-los quando a ficção por eles propalada fraquejasse ou fugisse. Era o ajudante de mentiroso, que os socorria nas horas incertas.

Dessa verdade da infância retiro a conclusão de que, igual à vida e às feiras, a criação literária e artística - e principalmente a biografia e a autobiografia - reclama a presença e contribuição ocasional de alguém que nos ajude e socorra nos momentos em que, solicitados pelas inquirições ou impedidos por uma pulsão confessional, as nossas imaginações empalidecem ou se diluem.

Assim, neste instante em que uma circunstância me obriga a parlar sobre o meu pascaliano moi haïssasble, e sobre as suas incontáveis variações – já que somos um estuário de eus sepultados, presentes e sucessivos – a minha posição é a de um ajudante de mentiroso. Ouso pretender substituir os contadores e narradores autorizados e juramentados que eventualmente versam sobre mim e a minha vida. Atrevo-me a enfrentar os críticos de tamborete sentados em suas certezas inextirpáveis e a considerar toda e qualquer manifestação crítica – inclusive a crítica da vida –uma mentira e uma ficção.. A leitura, inocente ou armada, é uma invenção do leitor. Os biógrafos e autobiógrafos não passam, na verdade, de romancistas malogrados. E o mesmo ocorre com os filósofos. Por mais que se insista, desde a manhã do mundo, que o objetivo da filosofia é a busca da verdade, na verdade ela busca a mentira impenetrável. A filosofia é uma ficção, e faz de Kant um romancista comparável a Balzac, ombreia Nietzsche com o fervor dionisíaco de Walt Whitman e reconhece em Bergson um Proust que não ousa dizer seu nome. E as ciências (as ficções científicas) envelhecem mais que a literatura. Quanto à teologia, bastará dizer que ela ostenta o pecado original de ser a teologia gerada pelos homens. Não é a teologia de Deus.

Não estando interessado na verdade, e sim na suprema função humana, que é a de um animal criativo – aquela paixão pela fabulação de que fala Goethe – sou minha mentira, que é verdade, e a minha verdade, que é mentira. E desde já asseguro ao leitor neste longo preâmbulo  confessional que, mesmo com o silêncio da Bíblia e dos séculos sucessivos, a mulher de Noé não queria entrar na arca (onde os animais, segundo Jean Giraudoux, entraram por ordem alfabética) e esbofeteou o marido.

Rendido ao imperativo da confissão exigida, devo dizer que sou ou me considero um poeta geograficamente situado. O estado nordestino em que fui nascido, Alagoas, tira o seu nome das águas. A capital, Maceió, meu berço natal, é uma cidade marítima, peninsular e lagunar: nela as águas e as terras moles se misturam. Diga-se ainda que Maceió, palavra de origem tupi, significa um lagoeiro formado no litoral oceânico pelas grandes marés, e águas pluviais. Assim, nascido nesse mundo fronteiriço de águas e terras, desde a infância me senti rodeado pela sua atmosfera marítima e lagunar, pelas chuvas que choviam e pelos ventos que ventavam. O belo farol branco no alto de uma colina, e hoje desaparecido, os navios no mar azul tirante a verde, o interminável soprar do vento, os caranguejos que transitavam na lama negra dos mangues, os morcegos nos tetos apodrecidos das velhas igrejas, os trapiches e os armazéns que estocavam sacos de açúcar e de cebolas e outros produtos destinados à exportação, os peixes jurados de morte que se debatiam nas redes dos pescadores, o cheiro do mar e o mormaço – tudo isso penetrou fundamente em mim. E o mar alagoano, maior que o mar de Homero, levantava-se diante de mim como uma grande porta de evasão, acenando-me para um destino que haveria de cumprir-se longe da terra nativa como realmente aconteceu. A essa paisagem oceânica, acrescento as ruas tortas da cidade, seu ar colonial hoje infelizmente depredado ou quase desaparecido, como decorrência de um processo de urbanização norte-americanizado, contrário à tradição ibérica, e que está desaportuguesando o Brasil.

O convite à evasão não estava apenas no martelamento do mar que me ensinou a fazer versos longos, desdobrados como as ondas. Estava também nos livros. Foi na minha infância que escolhi o que queria e desejava ser. Eu queria ser poeta e escritor. Não havia precedentes literários em minha família. Não havia sequer uma biblioteca doméstica para atender às minhas crescentes necessidades de leitura, à avidez de evadir-me do pequeno horizonte ensolarado e atingir o patamar do mundo imaginativo. Na cidade de Maceió, na década de 30 do século passado, não havia sequer uma biblioteca pública para a minha busca de ler. Essa carência me obrigou a entrar para uma irmandade religiosa dotada de algumas estantes prontas para saciar-me, na qual numerosos livros profanos, de cunho folhetinesco, contrastavam com a severidade edificante das vidas dos santos.

A descoberta de uma coleção, a Coleção Terramarear, consolidou para sempre um desejo que era uma vocação. O vento da aventura soprava em mim, rival do vento alagoano. As letras e palavras dos romances surpreendentes se convertiam em ondas que fustigavam os cascos dos navios, em ilhas que guardavam tesouros, em portos que abrigavam por um momento as desilusões e os cansaços. Criança, salteou-me a alegria de desenterrar tesouros em ilhas afortunadas. Experimentei a angústia de aninhar-me num escaler para escapar dos naufrágios. Eu conhecia o mundo antes de conhecê-lo. As pirogas me levavam ao convívio com os piratas e ao fragor das tempestades; no alto de minha vida fundada pela imaginariedade tremulava uma bandeira negra com uma caveira, sinal supremo da aventura e da insubmissão.

Costumo dizer que os livros da Coleção Terramarear foram a minha primeira Pléiade. Menciono Song-Kay o Pirata. A Vingança do Iroquês e Os Caminhos do Pacífico, de Emilio Salgari; Os Náufragos de Bornéu, de Mayne Reid; A Ilha de Coral, de R.M. Ballantine. As velas do meu navio imaginário continuavam enfunadas. Havia ilhas dos mares do sul à minha espera. A Ilha do Tesouro e Robinson Crusoe nutriram a minha fome e a minha sede de evasão. Na cidade mormacenta e sedentária, de ruas tortas e mãos impiedosas que suprimiam vidas, eu estava sempre partindo para outros lados do universo. Depois, outra brisa, mais funda e ambiciosa, envolveu-me. No umbral da juventude, descobri Rimbaud, Baudelaire, Mallarmé e Valéry, e antes destes, Dom Quixote e Os Três Mosqueteiros, Recordações da Casa dos Mortos e o Vigário de Wakefield, de Goldsmith. O caminho de leitura incessante estava aberto. Os primeiros rascunhos, canhestros, apontavam para o longo trajeto que só termina com a morte. Nesse estirado percurso, aprendi que, para um poeta ou escritor, só existe  uma verdade: a verdade de sua imaginação. Esta nova realidade, transfiguração ou metamorfose da vida pela expressão poética, guarda sempre uma cidade perdida.

Como guardar o que está perdido? Há um mistério original, em toda a criação poética, que nenhuma análise, por mais atenta que seja, tem condições de desvendar. O escafandro crítico não conseguirá jamais atingir esse fundo de mar que é o segredo do poeta ou do escritor, o como e porquê de sua expressão literária. Decerto desde criança me preparei silenciosamente para ser eu mesmo, para me tornar mim mesmo. Era uma operação subterrânea. Eu queria exprimir-me, comunicar-me. Eu queria ser Ao mistério da vocação, da inclinação nítida, colava-me o desafio do fazer. E toda a minha vida tem consistido na busca desse fazer. Ou melhor, de um saber fazer revelador e realizador. Aprendi que essa operação, destinada a converter as experiências vividas em arte, reclamava um determinado uso da linguagem, exigia uma competência que só poderia ser obtida se a minha vida fosse uma interminável aprendizagem. A curiosidade intelectual me conduziu a numerosas paragens. Os horizontes se distanciavam cada vez que eu presumia ter chegado perto do que buscava. Para que eu fosse eu mesmo, era preciso empenhar-me num incessante processo de renovação, mudar de pele como as serpentes. Ignoro se consegui exprimir o que, em mais de meio século de exercício poético e literário, desejava dizer. Chego a ignorar até o que desejei dizer, já que essa dicção insinua que sou um desconhecido de mim mesmo. E, por outro lado, rendi-me à evidência de que toda criação poética é plurisignificativa, irradiando-se em versões, inversões, transgressões e translações incontáveis. Cada leitor, com sua emoção ou atenção, é autor do que lê. E nenhuma criação literária é imóvel. O tempo a muda, investe-a de novas verdades e novas mentiras, confere-lhe novas significações, modifica o seu lugar na hierarquia dos valores, quando não a apaga com a sua borracha implacável.

Mas a nossa função consiste em guardar a vida através da arte, sem visar a reconhecimentos e recompensas. Guardar o que está perdido, levantar no silêncio uma voz inconfundível e irrepetível, mesmo que efêmera. Guardar o momento em que a mulher de Noé se recusa a entrar na arca e esbofeteia o marido.

30/6/2008

30/06/2008 - Atualizada em 29/06/2008