Pedro do Coutto
Com um prefácio tão emocionado quanto primoroso, no conteúdo e na forma, de Murilo Melo Filho, a Academia Brasileira de Letras lançou a 15 de maio, na Casa de Machado de Assis, uma seleção das crônicas e artigos que o jornalista Austregésilo de Athayde publicou no "O Jornal", de Assis Chateaubriand, durante praticamente sessenta anos. Com isso, e como todos os profissionais de imprensa, tornou-se testemunha do tempo.
No seu caso, testemunha extremamente importante, pelo seu nível cultural, a firmeza na sustentação de suas idéias, sua maneira clara de expor. A seleção foi feita pelo próprio Murilo, igualmente acadêmico, jornalista e historiador. A produção foi da Global Editora. Segue o estilo de "O grande livro do jornalismo", obra quer acaba de chegar às livrarias, absolutamente imperdível, Editora José Olímpio.
Quanto a Austregésilo, que presidiu a Academia por vinte anos seguidos, os textos de um escritor. No caso de "O grande livro...", coordenação do americano John Lewis, apresentação de Cícero Sandroni, atual presidente da ABL, reportagens e artigos de vários escritores e políticos que foram também figuras do jornalismo diário. Casos de Charles Dickens, Hemingway, John dos Passos, William Schirer, John Torton, autor de um ensaio magnífico sobre o comportamento sexual de Hitler.
Schirer publicou no "New York Times" uma fantástica reportagem sobre a rendição incondicional da França à Alemanha nazista, em 1940. Avistou-se com Hitler na ocasião, a curta distância. Encarou seu olhar alucinado. Entre os jornalistas, caso fantástico, Winston Churchill, que produziu matérias para o inglês "Morning Star" sobre a Primeira Guerra Mundial, de que participou.
Todos eles personalidades extraordinárias que buscaram nos jornais e no jornalismo sua força de expressão. Afinal de contas, como digo sempre, o jornalismo é uma ponte entre o ontem e o hoje, entre o hoje e o amanhã. A história, como disse Hélio Silva em seu livro sobre a proclamação da República, não espera o amanhecer. Os repórteres estão sempre na ponte a que me refiro para levar os acontecimentos aos leitores do mundo todo, em todas as épocas. São indispensáveis à existência humana. Nunca falharam nesta missão.
Às vezes com o sacrifício da liberdade, da integridade, da própria vida. Nós, jornalistas, somos intérpretes e testemunhas. Ajudamos a registrar a história e a memória, sem a qual a humanidade perde a referência que norteia seu caminho. A imprensa começou com Gutemberg em 1450, quando surgiu a primeira edição da Bíblia, reunindo Velho e Novo Testamento. Segue para sempre sem limite de futuro. A imprensa e o jornalismo são eternos.
Austregésilo de Athayde, um grande jornalista, uma grande testemunha. Nasceu em 1898, morreu em 1992, portanto aos 95 anos. Através de sua passagem pelas teclas, pelas linhas vibrantes, pelos momentos de indignação, assistiu e escreveu, por exemplo, sobre o episódio dos 18 do Forte de Copacabana. Assistiu e escreveu sobre a Revolução de 30. Sobre a revolução paulista de 32. A Constituinte de 35. O Estado Novo de 37. O ataque integralista de 38 ao Palácio Guanabara, quando Vargas esteve com sua vida em risco iminente. Sobre a deposição de Getúlio em 29 de outubro de 45.
A respeito das eleições daquele ano. Da Constituição de 46. Sobre a entrada do Brasil na guerra em 42. Sobre a volta triunfal de Vergas, sobre seu suicídio. A respeito da vitória de Juscelino em 55. Sobre a eleição de Jânio Quadros em 60 e sua absurda renúncia em 61.
Sobre a posse e a queda de João Goulart, respectivamente em 61 e 64. Acerca dos militares no poder, a longa noite dos generais. Autor também de inúmeros ensaios que Assis Chateaubriand publicou, Austregésilo, seguindo seu destino de liberal, terminaria, em 48, sendo o principal redator da Declaração dos Direitos Humanos da ONU. Naquele ano, a assembléia geral teve lugar em Paris. A mais universal das cidades do mundo, ocupada de 40 a 44 pela Alemanha de Hitler.
Austregésilo escrevia sobre tudo e todas as coisas, todos os fatos e personagens. Diariamente lá estava ele nas páginas do velho "O Jornal", que Chateaubriand classificava como órgão líder dos Diários Associados. Eram muitos os diários associados na ocasião no País. Entre eles a principal revista da época, "O Cruzeiro". A partir de 51, o grupo inauguraria a TV Tupi, primeira emissora de televisão brasileira.
Austregésilo de Athayde, lembra Murilo Melo Filho, a meu ver autor do melhor livro sobre a renúncia de Jânio, produziu textos sobre Einstein, Nelson Rockfeller, Roosevelt, Henry Ford, Stalin, Kruschev, Eisenhower, Fidel Castro, Gagarin, primeiro homem no espaço, JK, Oscar Niemeyer. Sobre o próprio Chateaubriand, quando morreu em 1968. Seu amigo fraterno de quase seis décadas. A grande admiração de sua vida, o ensaísta francês Ernest Renan, considerado o maior historiador do cristianismo de todos os tempos. Austregésilo - lembra Murilo - afirmava-se um religioso como Renan. Católico. Acreditando em Deus, mas buscando sempre mais uma prova, mais uma razão suprema, do supremo, para sua fé. Inquieto sempre.
Um homem revolto pela magia e pelos impulsos da política e da arte. Estivesse ela nos livros, nas pinturas, nos teatros, no cinema. Lendo Melo Filho e Athayde, por coincidência deparo com um texto de Austregésilo sobre William Schirer, em que destaca a obra monumental "Ascensão e queda do III Reich". Considerou Schirer a grande testemunha de seu tempo e da história moderna. Ele, Austregésilo, também foi, entre nós, no Brasil, uma testemunha importante.
O texto de Murilo Melo Filho é muito bom. Uma viagem, ao lado de Austregésilo, de sessenta anos na história. Vale a pena ler. Ler e pensar.
Tribuna da Imprensa (RJ) 26/5/2008
27/05/2008 - Atualizada em 26/05/2008