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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Celso Lafer

É uma satisfação pessoal e intelectual saudar Jorge Caldeira por ocasião de sua posse solene na Academia Brasileira de Letras. É uma tarefa que prazerosamente caberia a FHC, se as suas atuais dificuldades de mobilidade não tivessem tornado desaconselhável no momento a sua vinda ao Rio de Janeiro e à nossa sede.

Começo pontuando que Jorge Caldeira e eu somos velhos amigos, uma amizade iniciada precisamente na casa da família Cardoso, que ele frequentou desde jovem como colega e amigo de Paulo Henrique, o filho do casal. Foi beneficiado pelos estímulos intelectuais deste convívio. Quero destacar inicialmente na formação de Jorge Caldeira o papel de Ruth Cardoso - uma admirável personalidade republicana, biografada com talento e sensibilidade pelo Confrade Ignacio de Loyola Brandão, seu conterrâneo araraquarense.

No depoimento para o livro de Ignacio, Jorge Caldeira observou que Ruth teve a visão de que a antropologia não era só para estudar a cultura dos outros, mas para entender a sua própria.

Nos ensinamentos de Ruth, aprendeu o valor da lição de um olhar atento à multiplicidade de fatos que incidem nas mudanças sociais. Soube apreciar o exemplo de uma capacidade analítica apta a se dar conta pela observação, inspirada pela antropologia, das possibilidades do entendimento do concreto, sem os véus das ideologias e dos conhecimentos consagrados.

Deu destaque aos méritos de avaliação de Ruth, apresentando e inserindo o seu texto de 1978, “A visão dos favelados”, no muito esclarecedor livro de 2008 que organizou Brasil, a História Contada por quem viu, que também à memória dela é dedicado.

Faço o registro não apenas para evocar o início da nossa amizade, mas porque o exemplo de Ruth Cardoso foi uma semente que frutificou na trajetória e na obra de Jorge Caldeira.

Jorge Caldeira assume hoje a cadeira nº 14 da nossa ABL. Sucede à querida Lygia Fagundes Telles, admirável escritora de alcance universal, que com fôlego inspirador, no conto e no romance, revelou, com um agudo olhar pluriantenado, os desvãos e imperfeições da condição humana. A sua obra literária de primeira grandeza possui a limpidez adequada a uma visão que penetra e revela, como observou Mestre Antonio Candido.

A presença de Lygia tinha a beleza e o encanto de uma aura. Desta faceta, Jorge Caldeira teve ciência própria, pois com Lygia, no âmbito da Academia Paulista de Letras, teve o convívio de muitos anos.

Permito-me observar que há uma dialética de complementaridade em participar das duas academias, como foi o caso de Lygia, é o de Ignácio de Loyola Brandão, o de Jorge Caldeira e o meu próprio - e foi o de tantos outros no passado. Somos representativos dos estímulos à criatividade hauridos na nossa querência paulista que inserem São Paulo na Federação brasileira das Letras e da Cultura que a ABL encarna. Para o entendimento de São Paulo no Brasil, Jorge Caldeira deu uma contribuição de fôlego nos admiravelmente bem pesquisados 4 volumes da biografia: Julio de Mesquita e o seu tempo (1862-1927). Publicado em 2015, explica o processo de construção de um grande jornal – O Estado de S. Paulo – que possui na linha do seu fundador, presença nacional mais do que centenária. Esclarece como o ponto de partida se deu no contexto da política e da economia inaugurado pela República.

Foi a República que contribuiu para transformar São Paulo, inicialmente uma pequena cidade, numa metrópole do século XX, e criou as condições para a dimensão da sua modernidade econômica. Nesta biografia, Jorge Caldeira logrou com sucesso combinar o explicar das forças e causas que moldam os eventos e o compreender de uma personalidade que soube criativamente atuar com os dados objetivos no mundo no qual a sua vida inseriu-se. Foi aliás o que com larga visada fez, no seu Mauá, Empresário do Império, de 1995, livro inaugural da densidade de seu percurso.

Nosso saudoso confrade Alfredo Bosi, refletindo sobre a fenomenologia do olhar, observa que em nossa língua, ao contrário de outras, “olho” e “olhar” se casam. Por isso, o português convida a uma convergência entre o perceber e o exprimir, articulando em seu substrato a relação de intencionalidade entre o sujeito que olha e o objeto olhado.

Evoquei a intencionalidade do olhar antropológico de Ruth Cardoso, do olhar de ficcionista de Lygia Fagundes Telles e ouso mencionar que, em Gregório de Matos, seu “alto poder de observação” foi um dos estímulos de sua criação poética, como apontou meu Mestre Sigismundo Spina, um dos pioneiros que no meio universitário se dedicou à obra do patrono da cadeira 14. Valho-me das correspondências, provenientes da analogia pela semelhança para apontar que, também em Jorge Caldeira, olho e olhar convergem. Explicam a intencionalidade do seu olhar que tem como tema recorrente o Brasil. É, com efeito, o Brasil que move a intencionalidade do seu olhar. No contexto da movimentação dos seus múltiplos olhares – que passam pela construção do samba e pelo futebol – lembro a formulação de Ortega y Gasset sobre a dinâmica das gerações. Dizia Ortega y Gasset que cada geração tem uma sensibilidade própria que a identifica, independentemente da variedade dos que a integram, e que a diferencia das anteriores e dos que a sucedem. Toda geração enfrenta um duplo desafio: o de lidar com o recebido da geração anterior e o de elaborar a sua própria contribuição seja de maneira cumulativa, seja de modo polêmico.

Jorge Caldeira, no trato do desafio de lidar com as complexidades do nosso país, dedicou-se nesta empreitada à importância do legado das gerações dos seus antecessores. Daí a Coleção Formadores do Brasil, que organizou com espírito de equipe com a colaboração de um Conselho Editorial de historiadores, entre eles os nossos confrades Evaldo Cabral de Mello e José Murilo de Carvalho. Nesta coleção organizou a documentação e preparou as densas apresentações dos volumes dedicados a Diogo Feijó (1999) e José Bonifácio (2002).

Há nos perfis de Feijó e José Bonifácio algo do que se poderia qualificar de vidas paralelas, distintas, conflitivas mas complementares. As origens, a formação e a experiência de vida do dois eminentes paulistas são muito diferentes. Ambos eram fortes e afirmativas personalidades, que impactaram a formação do Brasil. Convergiam no querer a Independência do Brasil, a Constituição e aceitavam plenamente a fórmula monárquica. Eram adeptos dos princípios liberais, mas José Bonifácio, no entender de Jorge Caldeira, levava em conta as necessidades do momento. Em contraste, Feijó era intransigente na afirmação dos seus princípios.

No preparo do volume dedicado a José Bonifácio, deu-se conta de que muitos significativos textos do nosso Patriarca da Independência estavam espalhados em inúmeros arquivos de papel no Brasil, em Portugal e em vários países da Europa e não estavam suficientemente compendiados e acessíveis em volumes impressos. Foi o que o levou ao Projeto José Bonifácio. Colaborei com este projeto com os nossos confrades Alberto da Costa e Silva e José Murilo de Carvalho. Foi a primeira oportunidade que tive de um trabalho conjunto com Jorge Caldeira, no qual pude apreciar a sua vocação de estudioso, atento à garimpagem dos documentos, relevantes para os historiadores e para o conhecimento do Brasil. Naturalmente identifiquei-me com o projeto que alarga o entendimento de um personagem de grande envergadura pelo qual tenho a maior admiração.

Era grande o desafio da empreitada do Projeto José Bonifácio. Dela resultou o site www.obrabonifacio.com.br que se valeu dos recursos da era digital para construir um único repertório eletrônico. O site foi concebido e estruturado de forma a atender os interesses de múltiplos usuários. Contém 4.124 registros que dão conta da amplitude única da produção de um grande brasileiro, nas suas múltiplas facetas de cientista, administrador público, político e pensador.

É um exemplo de como novos métodos alargam o conhecimento e o acesso ao legado das fontes documentais.

Foi também pelo manejo de novos métodos provenientes das referências dos grandes números e das medidas da estatística que Jorge Caldeira, com a sensibilidade de sua geração, mudou um eixo de apreciação da história do Brasil em inúmeros livros e trabalhos. Na apresentação de um deles, História da Riqueza do Brasil – Cinco Séculos de pessoas, costumes e governos (2017), nosso confrade Fernando Henrique Cardoso aponta que uma das notas identificadoras do trabalho de Jorge Caldeira foi o de ressaltar que desde a Colônia o mercado interno sempre teve maior importância do que lhe foi atribuída pelos autores clássicos. Desse modo, sem desconsiderar o legado de gerações anteriores e o seu foco no papel importantíssimo da histórica força de atração do mercado externo, sublinha como é simplificador da complexidade da sociedade brasileira reduzi-la a desdobramentos econômicos e sociais da lavoura de exportação. É preciso incorporar na compreensão do Brasil o histórico do impacto do mercado interno nas pessoas e nos costumes, como vem explorando na sua obra.

José Bonifácio inaugurou uma linhagem de estudiosos e intelectuais de vocação pública que se propuseram a elaborar para o país um projeto global de nação mais amplo e inovador do que o contemplado pela visão e pela ação dos seus contemporâneos. Jorge Caldeira com a inquietação de seus múltiplos olhares acabou inserindo-se nesta linhagem – que tem entre seus expoentes o nosso saudoso e admirável confrade Helio Jaguaribe. É o que explicita com o seu recente livro de 2020, Brasil, Paraíso Restaurável que também, como outros de seu percurso, beneficiou-se de um trabalho de equipe.

Este livro está em sintonia com uma das características do percurso de nosso confrade Fernando Henrique Cardoso, com o qual Jorge Caldeira tanto aprendeu num longo convívio: o de pesquisar o presente na perspectiva do futuro, vale dizer, como observou Francisco Weffort, o de estar atento às relações “in fieri”, aos processos “in the making” e “delle cose a fare”. Tenho especial apreço por Brasil, Paraíso Restaurável, pois aponta com competência e imaginação para o sentido de direção de dois convergentes itens da minha própria pauta de preocupações: o do lugar do Brasil no mundo e do papel que neste lugar desempenham o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. Desta convergência me ocupei como Chanceler na condução da Conferência do Rio de 92, que consagrou de maneira duradoura na pauta diplomática internacional, a vis directiva da sustentabilidade ambiental. Anoto que esta convergência está alinhada com temas de José Bonifácio que se dedicou como primeiro Ministro das Relações Exteriores do Brasil a afirmar o nosso lugar no mundo e que foi, como cientista, atento ao papel do conhecimento e da observação objetiva, um pioneiro no trato da importância do meio ambiente como ingrediente da sustentabilidade de nossos recursos naturais. São questões documentadas por Jorge Caldeira no site www.obrabonifacio.com.br e no seu volume dedicado a José Bonifácio da Coleção Formadores do Brasil.

Foram retomadas com especificidade própria em Brasil, Paraíso Restaurável. Nele, nosso confrade explora o alcance do potencial de riqueza e vida que as características do nosso país enseja e que nos permite ter uma singular presença no mundo. É o que ilustra com imaginação e conhecimento o mapa-múndi da abertura do livro. Trata-se de uma renovada cartografia esclarecedora da excepcional dimensão do Brasil no planisfério como o território no qual mais se produz vida na terra. Pontua, por via de consequência, o tamanho do que faz e pode fazer a natureza em matéria de energia e vida. Evidencia o alcance neste contexto de nosso potencial econômico. Articula a vis directiva de um aprofundamento e ampliação deste potencial, no momento atual do cenário internacional, que exige, em função da crescente vulnerabilidade da natureza, uma reavaliação de sua relação com o desenvolvimento.

O foco da contribuição do livro ao conceito de desenvolvimento sustentável, consagrado internacionalmente na Rio-92, é o imperativo da abrangente recomposição da matriz energética na nossa era de antropoceno, vale dizer, a que resultou dos cientificamente reconhecidos efeitos deletérios da ação humana que comprometem a vida no planeta, como a disrupção da mudança climática evidencia. É o que acabará levando à diminuição da importância do papel do petróleo e do gás e de seu antecessor, o carvão, e indicando que a nova rota de mundo será dada pelas energias renováveis.

Jorge Caldeira examina o uso dos diversos tipos de energia em vários países do mundo, o seu impacto na economia, no poder, na cultura, nas formas de vida, na construção de infraestruturas. Aprecia inovações na matriz energética provenientes dos riscos ambientais na Europa, na China, na Índia, nos Estados Unidos e indica o papel na dinâmica destas transformações da sociedade civil e da diplomacia subnacional.

É a partir de uma larga visada comparativa que aponta de que modo a matriz energética brasileira tem estrutura muito diferente da que caracteriza a maioria dos países, pelo escopo presente e futuro das energias renováveis. Dá destaque à hidroeletricidade, à biomassa, ao etanol e ao crescente relevo da eólica e da solar. Adverte, com grande atualidade, que queimar florestas é queimar dinheiro. Extrai de suas análises a conclusão dos novos espaços no mundo que o Brasil tem condição de ocupar, com visão estratégica, a partir do seu território e do repertório de conhecimento do país, na condição de líder internacional na era da energia renovável. Será uma contribuição de relevo e alcance para restaurar a saúde da terra e a saúde dos homens, que é o axioma do equilíbrio ambiental.

Brasil, Paraíso Restaurável não é um livro técnico sobre energia, ainda que lastreado no amplo domínio da matéria. É um livro de uma visão e de seus valores, que tem como suporte de sua realizabilidade um novo papel da energia que restaure, construtivamente, a relação do humano e da natureza. Daí na explicitação fundamentada dos valores as páginas elaboradas com cultura e imaginação conceitual. São exemplos a análise do papel da natureza no paraíso bíblico, a “visão do paraíso” dos descobridores europeus de nossa América do Sul; a inspiração da relação homem/natureza na terra sem mal dos tupis-guaranis; a revalorização dos conhecimentos ancestrais; o axé entre os homens e a natureza; a harmonia entre os dois na cultura tradicional chinesa e nas propostas analíticas de Jung. São pinceladas que perpassam com sabor próprio Brasil, Paraíso Restaurável, como uma proposta técnica e cientificamente válida, animada pelo dever ser de um alcance utópico sem o qual as transformações soçobram com o peso das rotinas, das inércias e dos interesses de curto-prazo.

Norberto Bobbio, tratando do papel do intelectual nas sociedades modernas, secularizadas e democratizadas, aponta que podem exercer um papel próprio. Registra que, em função das complexidades do mundo contemporâneo, a palavra do intelectual pode ser tanto a de articular rumos e princípios no trato das incertezas das transformações, quanto a de propiciar o saber técnico dos conhecimentos - meio indispensável para efetivar as diretrizes dos rumos. Brasil Paraíso Restaurável cumpre com discernimento estas duas e indispensáveis funções.

Concluo: Seja bem vindo Jorge Caldeira à cadeira nº 14 da ABL. A nossa Casa se enriquecerá com a inquietação da pesquisa de seu olhar; com sua infatigável dedicação ao trabalho intelectual e seu gosto pela interação colaborativa com as equipes e seus pares; com seu à vontade da era digital, pela sua propensão a servir às boas causas e à extensão dos conhecimentos e pelo seu apreço e prazer amigo que provém do convívio acadêmico.