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O adeus ao primeiro e único imortal

 

Há 100 anos, "a indesejada das gentes" levava o já consagrado escritor Machado de Assis

Mariana Filgueiras

Na madrugada de 29 de setembro de 1908, às 3h20, morria na casa número 18, da Rua Cosme Velho, o autor da obra mais universal da literatura brasileira – Joaquim Maria Machado de Assis. Levado por um câncer, castigado pela epilepsia, mas em condições muito melhores das que tinha quando nasceu, em 21 de junho de 1839: pobre, no Morro do Livramento, filho de uma lavadeira portuguesa e um pintor de paredes mulato. O destino do menino Joaquim Maria não prometia muito. Mas a determinação e paixão pelo conhecimento de quem não tivera sequer a escola regular fundou Machado de Assis. Quando morreu, aos 69 anos, seu legado como romancista, cronista, poeta e teatrólogo já o consagrava como o maior nome da literatura brasileira.

Um mês antes de morrer, prenunciara, em carta escrita a Joaquim Nabuco: "Não há vaga, mas quem sabe não a darei eu?", sobre o caso de um candidato a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, fundada por ele em 1896.

Como a moléstia lhe fazia sala, preparou a própria morte: não fez questão de padre ou de extrema-unção. A simplicidade estendeu-se ao velório, chegando a preocupar os poucos amigos presentes. Indignado com a indiferença com que a cidade tratava o "desaparecimento" do escritor, Euclides da Cunha escreveria para o Jornal do Commercio do dia 1º de outubro (de tão bom, o texto fora republicado em 2 de outubro):

"Era pelo menos desanimador tanto descaso da cidade inteira, sem a vibração de um abalo, derivando imperturbavelmente na normalidade de sua existência complexa – quando faltavam poucos minutos para que se encerrassem 40 anos de literatura gloriosa".

Se o velório fora por demais tranqüilo, o enterro havia de ter "o esplendor de uma glorificação", como sustentou a edição do Jornal do Brasil de 2 de outubro: o cortejo foi no Syllogeu, onde funcionava a Academia Brasileira de Letras, acompanhado pelas bandas de música da Brigada Policial e do Corpo de Bombeiros. Entre coroas de flores de fitas azuis, ladeado por seis círios de prata, "enlevava-se a eça mortuária", onde repousava o corpo, em riquíssimo caixão. "O rosto simpático, meigo e venerável que a morte empalidecera fortemente achava-se oculto por um lenço de cambraia", relatou o jornal.

Quem respirava de perto

Machado de Assis foi velado por amigos do timbre de Euclides da Cunha, Coelho Neto, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia e Rodrigo Otávio, todos da Academia Brasileira de Letras. Joaquim Nabuco e Graça Aranha deixaram, aos pés do caixão, cada um, uma carta dedicada a ele. Ainda que não fossem amigos, quem cobrou a atenção para o primeiro discurso de despedida foi Rui Barbosa: "Eu não fui dos que o respiraram de perto. Mas, homem do meu tempo, não sou estranho às influências do mal e do bem, que lhe perpassam no ar. (...) Não é o clássico da língua; não é o mestre da frase; não é o árbitro das letras, não é o filósofo do romance; não é o mágico do conto; não é o joalheiro do verso; o exemplar sem rival entre os contemporâneos da elegância e da graça, do aticismo e da singeleza no conceber e no dizer; é o que soube viver intensamente da arte, sem deixar de ser bom. (...)".

Um personagem anônimo, no entanto, disse mais sobre o espírito machadiano naquela despedida do que quiseram tantos nobres amigos: pouco antes de o corpo deixar a casa do Cosme Velho rumo ao Syllogeu, um rapaz desconhecido, entre 16 e 18 anos, bateu à porta. Euclides da Cunha relatou o incidente: "Não conhecia por sua vez ninguém, não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam". O rapazola foi conduzido ao quarto, não disse uma palavra, ajoelhou-se, tomou a mão do escritor, beijou-a e aconchegou-se em seu peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.

A sensibilidade de Euclides concluiu: "Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra". O rapazola era Astrogildo Pereira, futuro fundador do Partido Comunista Brasileiro.

Os olhos do Jornal do Brasil

Como a morte se deu na madrugada, o Jornal do Brasil só teve tempo de publicar, na edição do dia 30 de setembro de 1908, uma pequena nota encimada por um bico de pena do escritor, em que se lia: "Machado de Assis. Este nome recorda uma geração de intelectuais. Do simples tipógrafo e revisor de provas surgiu o homem de letras que, se no romance atestou a pujança do seu talento, não menos se mostrou distinto como cultor das musas. E tal era sua superioridade mental, a sua ilustração, a beleza do seu estilo fulgurante, que não tardou muito a ser considerado como o mestre no meio literário brasileiro. A sua morte foi uma perda nacional".

No dia 2 de outubro, foi publicada a cobertura do enterro: a notícia ocupava três colunas e meia da página 2, com descrição minuciosa do episódio, lista de todos os presentes, transcrição dos agradecimentos nas coroas de flores e discursos. Em dezembro daquele ano, uma série de reportagens, iniciada pelo jornal O Paiz, denunciaria um roubo de jóias e documentos ocorrido durante o velório do escritor, em sua casa.

Desde então, em todas os aniversários da morte do escritor, o JB faz a cobertura de maneira sobretudo original. No primeiro ano da morte do escritor, Rui Barbosa liderou uma romaria de escritores à casa do Bruxo, no Cosme Velho. E lá estava o JB, anotando o discurso de um entusiasmado Olavo Bilac: "Perdendo o mestre, não perdemos o exemplo constante (...). Aqui vimos e viremos e aqui virão, quando tivermos desaparecido, aqueles que nos sucederem".

Uma reportagem de 12 de dezembro de 1969 reproduz o discurso para justificar a crítica à destruição da casa do escritor: "Pois não virão. A casa foi demolida".

Em 1974, um presente aos assinantes: o JB encomenda um filme curta-metragem ao cineasta Nelson Pereira dos Santos sobre o escritor. O Rio de Machado de Assis, de 11 minutos, será lançado nos extras do DVD de obra completa que o diretor, hoje também imortal, lançará na Academia Brasileira de Letras em maio. Quinze anos depois, em 1989, como lembrança do seu 150º aniversário, os assinantes ganharam um registro musical da época de Machado.

O centenário de morte

As celebrações pelos 100 anos daquela triste madrugada já começaram: lançamentos e relançamentos de livros, espetáculos temáticos, mesas-redonda e até um filme estão previstos no calendário da cidade. A 5ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty terá como homenageado principal, adivinhem só.

Em sua casa, a ABL, já estão em andamento os ciclos de conferências sobre Machado: os próximos seminários serão nos dias 15 de abril, ministrado por Alfredo Bosi ("O romance de Machado de Assis"), e no dia 24, por Domício Proença Filho ("O conto de Machado de Assis").

Ainda neste semestre, começam as filmagens de Capitu, do diretor Marcus Vinicius Faustini, inspirado na personagem de olhos de ressaca de seu mais famoso romance, Dom Casmurro, com Maria Ribeiro no papel.

A secretaria municipal de Culturas organizará quatro eventos: os Saraus de Machado (leitura de contos com música ao vivo); Maratona Machado de Assis (leitura de trechos dos romances); Hora do conto (contistas modernos vão aproximar os leitores não-acadêmicos da obra), além de espetáculos em escolas, mesclando teatro e música.

Há quem considere mórbida a celebração de uma morte. Não importa. A efeméride redonda – um século em cheio esvaziado pela genialidade do escritor – faz lembrar um de seus versos: " A ironia faz boa cama com a saudade".

Jornal do Brasil (RJ) 13/4/2008

14/04/2008 - Atualizada em 13/04/2008