Lívia Perozim
O ar seco e a quentura de mais um dia de sol a pino em Afogados da Ingazeira, ao norte do sertão pernambucano, não se aperreiam com a noite que se aproxima. E época de seca no Semi-Árido e a esperada brisa noturna demora a bater por aqueles cantos. No Cine São José, construído em 1943, a ventilação minguada não impede que a sala se apinhe de gente. O único filme em cartaz, adivinhe, é Tropa de Elite. Às 18 horas, 304 cadeiras dispostas, 44 delas de plástico, improvisadas, já têm donos. Mas não é para ver o capitão Nascimento que o público presente, afogadenses e moradores da região, chega com duas horas de antecedência ao único espaço cultural da cidade de 35 mil habitantes. Na última quinta-feira de novembro, o cinema virou teatro e recebeu uma trupe de músicos, cantores e dançarinos, com trajes mamulengos e sons armoriais. No palco, à direita, um ilustre professor, compadecido dos brasileiros, dá início a uma aula-espetáculo, já assistida por cerca de 13 mil pessoas, e que a cada noite finca a pedra fundamental de um reino ameaçado, a cultura popular.
Ariano Suassuna teima, provoca, seduz, peleja. Aos 80 anos, sua figura é frágil. Mas ele é, antes de tudo, um forte. E apresenta aos sertanejos da platéia as peripécias do Grupo Arraial, formado por 12 artistas, apanhados a dedo por ele. Explica-se: é que, além de escritor, dramaturgo, poeta e professor, Ariano é também secretário de Cultura de Pernambuco, desde fevereiro de 2007. Como autoridade da nossa República, o secretário atravessa o estado com o espetáculo Nau, que reúne música e dança em uma confluência de arte erudita e popular.
Mas, a bem dizer a verdade, um bocado do povo que estava ali, sabendo ou não quem era Ariano, queria mesmo era ver o homem de perto. Não deu para todo mundo, é claro. As professoras Aparecida Vasconcelos e Rosa Maria Aparecida tiveram de ficar do lado de fora, em frente a um dos dois telões colocados na rua. O bom, diz Rosa, é notar o interesse do povo por Ariano: “Tá vendo como ele é querido?” O que elas já leram da obra desse homem estimado? "Menina, já li coisa dele, mas não lembro o que foi", responde Rosa. "É tanto livro que a gente lê”, explica Aparecida.
Na rua, a marcha é apressada. É gente de todo tipo que se achega, famílias com a filharada, jovens, senhores e senhoras da cidade, vendedores de castanha de caju e bebedores de cerveja, que foram prosear na praça. E o seu Dimas, dono do boteco ao lado do cinema, se deu bem. Na calçada, colocou mesas de plástico e os pedidos são tantos que nem tempo para bater papo tem: “To no sufoco”.
Outro que estava no aperto era o próprio 0svaldo Vieira. Vejam só. Ele ficou esperando o danado do filho, Tiago, voltar da casa do avô, e a mulher se adiantou em ir para a festa. Eis que Osvaldo agora tem de achá-Ia. "Se não, como é que faz?" Osvaldo é ambulante e trabalha sob um céu de fogo, o que o deixa tomado de cansaço. Como achou muito bonito o que falaram de Ariano, não cedeu ao sono e foi conferir: "Digo, se o cabra é sabido mesmo, vou lá então". Ele nunca tinha visto a atração da noite, nem na televisão, de forma que, quando perguntado sobre o que sabe de Ariano, é assim: "Olhe, no momento, não me ocorre muito sobre ele". Se for para dar um palpite, Osvaldo diria que Ariano é jovem e cabeludo: "O pessoal novo hoje em dia tem cabelo bem grandão, não é, não?"
Dentro e fora do cinema, o que o público de mais de mil viu, quando o relógio apontou 20 horas, foi um senhor alto e magro, de poucos fios de cabelo branco e uma voz sumida e rouca. Um palhaço, como o próprio Ariano diz, que usa o bom humor para contar seus muitos causos. Nem todos engraçados. Para iniciar a aula, escolhe a história da sua família e do assassinato do seu pai, João Suassuna, morto em 1930, envolvido em lutas políticas da Paraíba. Criado no sertão áspero e pedregoso de Taperoá, nos Cariris da Paraíba, Ariano é um cabra, como os que ali o estão ouvindo, atentos à história de dívida de sangue que o escritor transformou em sua obra capital, o Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta.
Ariano está ali numa missão: defender a cultura brasileira. Engata a falar da riqueza da cultura do povo e da língua portuguesa. Faz a platéia se matar de rir quando imita a fala "pausada, impessoal e esquisita" como são anunciados os avisos em aeroportos. E quando canta pérolas da música brasileira, como este refrão: ‘Pra me conquistar, tem que suar! Pra me conquistar, tem que rebolar'. Fazendo graça da poética elevada difundida pela indústria fonográfica, ele não revela o nome da banda (a paraense Calypso) "para não ser acusado de radical”.
A energia de Ariano é da gota. A dona Dorotéia Maria do Nascimento, 74 anos, mesmo, estava só em casa e foi para a praça, com um banquinho nas mãos. Sentou-se nele e por ali ficou, porque gostou do que viu: "Olhe que, pra idade que tem, ele até que tá aprumado. Tem moço mais novo caducando, e o homem aí, com todo tino”. O que não impressionou dona Dorotéia foi o mundaréu de pessoas na praça. "Hoje tem é pouca gente. No dia de Padre Zezinho, não dava pra andar. Teve até filmagem”, lembra. A decepção dela veio do desconhecimento da reportagem quanto à figura do padre: "Você tá perdendo. Eu estou lhe dizendo com sinceridade, Padre Zezinho é muito famoso. Ele canta cada música linda”. Mais bonitas do que esse toré (canto e dança indígena)? "Mas é muito”, afirma, sem pestanejar.
Ariano não deve cantar tão bem como o Padre Zezinho, mas, "eita, homem sabido”. Os colegas Danilo, de 16 anos, Adriano, 17, SivaniIdo, 18, e André, 21, foram lá "ver se os versos de Ariano eram bons mesmo". São doidos pelo filme O Auto da Compadecida, que já assistiram mais de três vezes. “Vai dizer que tu não se lembra da cadela que come filé?”, pergunta Adriano. "Rapaz, eu dou risada só de lembrar do cangaceiro que diz: 'Não gosto de matar padre, não, dá um azar da porra', imita André, para mostrar que o filme, baseado na peça teatral de Ariano, é bom mesmo. Eles estão na oitava série, que André, "graças a Deus”, vai deixar depois de cinco anos: "O que me engancha é o maldito do português que ele falou agora pouco”. Mas por que, se o menino fala tão bem? "É que num falo com acento e vírgula, e na prova a professora cisma de pedir isso. Aí é problema", esclarece André. Mas não é?
O clima de festa não se estende a todos. Tem gente trabalhando. Em pé na rua e com os braços cruzados, três afogadenses estréiam na Guarda Civil MunicipaI. Gilberto, Farias e Bonfim farão a patrulha na cidade de bicicleta e, no momento, asseguram a ordem do evento. Acaba que, como está tudo bem tranqüilo, podem assistir também ao espetáculo. "Afogados nunca imaginou receber Ariano. Ele é conhecido mundialmente", conta o guarda Farias, com ares de importante. Ao que Bonfim completa: "Estão anunciando na rádio faz é tempo, mas o povo aqui não acreditou, não".
E é de se acreditar que o sujeito, acompanhado da mulher, Zélia, deixe o aconchego de seu casarão secular, no Recife, e viaje, de carro, 400 quilômetros em sete horas? É, de fato, algo incomum para um homem de oito décadas, que não gosta de viajar, está traduzido em mais de dez línguas e é, para muitos, o nosso maior escritor vivo. Eita.
Revista Carta Capital 16/12/2007
17/12/2007 - Atualizada em 17/12/2007