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Criador de histórias

 

Gustavo Mariani

Primeiro presidente da República a ter um livro transposto para o cinema – O Dono do Mar, lançado em agosto em circuito comercial –, o hoje senador José Sarney (PMDB-AP) ainda ocupa espaço na mídia pelo lançamento de um novo trabalho, A Duquesa Vale uma Missa, na praça também desde o mês passado. Ele antecipou ao Jornal de Brasília que, dentro de dez meses, entregará ao seu editor uma biografia na qual contará fatos inéditos que marcaram a sua contribuição ao procesaso democrático vivido hoje pelo País. Confira o bate-papo com o escritor.

Saraminda desbundou, surpreendeu no seu livro anterior. E, neste lançado agora, a duquesa vale mesmo uma missa?

Isso é o que vai pintar dentro de uma moldura. Um jovem passa a viver entre a realidade e o sonho, quando um quadro aparece, misteriosamente, em sua casa, gerando uma disputa familiar pela sua posse. Do pincel saíram a Duquesa de Villar e a irmã Gabriele Destré, que fora amante do rei francês Henrique IV, e o convencera a converter-se ao Cristianismo, com uma frase: "Paris vale uma missa".

Por que um escritor maranhense que sempre preservou a cultura de sua terra buscou agora uma temática francesa?

O quadro representa um pedaço da história francesa, a sociedade burguesa tão descrita nos romances dos séculos XIX e XX, mas a minha idéia foi usá-lo como âncora para construir uma história urbana, dentro das contradições da vida brasileira.

Como ficou a cumplicidade entre o escritor e o personagem principal durante a gestação do livro?

O personagem principal é um sujeito que vive no limbo da loucura, mas a duquesa, mesmo não sendo uma figura viva, cresce de importância à medida em que se torna presente em tudo o que acontece durante a narrativa. Ela amarra muito a vida do rapaz, que preocupa-se em não trair o seu amor por alguém que não se materializa.

Muitos quadros não representam só o traço do artista, mas a história de um tempo. O senhor teve que bisbilhotar a vida daqueles burgueses?

Foi uma bela pesquisa. Visitei Henrique IV, emaranhei-me pelas guerras (religiosas também) da época e tive encontros marcados com a Duquesa de Villar em muitas obras. Quando entrei na tela, apreciei antigos costumes franceses, como o da mulher rendeira, e deu até pra fuxicar sobre um gesto da duquesa, sugerindo que a sua irmã estivesse grávida do rei. Vivi histórias dentro da história.

Durante quanto tempo o escritor bateu pernas por aí com os seus personagens?

Circulamos juntos por oito meses de pesquisas, e um ano e meio de redação, por aí.

Vamos agora deixar a França e rumar para o Maranhão. No livro O Dono do Mar, o senhor fez o personagem principal sofrer muito...

Eu tinha um roteiro para escrever um conto sobre naufrágio, mas no decorrer da redação foram surgindo outras histórias. Acho que não fui tão cruel assim, pois o ressuscitei para reencontrar-se com a sua canoa e com as mulheres que amou. Foram quatro anos de pesquisas, estudando a história da navegação, a estrutura e a vida nos barcos, ouvindo histórias de pescadores, recolhendo lendas e também botando pra fora de casa 20 anos de vivências nas praias maranhenses. Fui fiel ao roteiro original do que seria apenas um conto.

Do Maranhão, vamos dar um pulinho até ali, na Guiana Francesa? Quem lê Saraminda percebe logo o dedo de um grande pesquisador nas bem traçadas linhas.

Fui à Guiana, disfarçadamente, pesquisar em arquivos sobre histórias de garimpos. Levei uns três anos “namorando” a Saraminda, cujo aspecto físico no livro reproduz uma crioula linda que vi passando por uma das ruas de Caiena. Na hora, eu me disse: "Vou colocar esta mulher no meu livro, pois tinha em mente escrever um capítulo no qual haveria um leilão de mulheres. Quem a comprou fez um grande negócio, pois a moça vai dominando a trama, tornando-se um personagem forte e, hoje, já não tem mais dono. Pertence à história da literatura brasileira, igualada por Carlos Heitor Cony (jornalista e escritor carioca) a Iracema (personagem de José de Alencar).

A espevitada da Saraminda saiu uma sujeitinha, danada, hein?!?

Tão danada que, às vezes, eu fico sabendo da vida dela pelos outros. E não foi que a menina entrou para a maior coleção mundial de literatura? (da editora francesa Gallimar), sem me contarem nada! Foi paquerada por um grupo de escritores, do conselho editorial da casa, que só havia, antes, tirado o chapéu para um livro brasileiro, Capitães de Areia, publicado em 1937 por Jorge Amado. Agora, Saraminda vai fazer a América – será lançada, no dia 25 de outubro, nos Estados Unidos.

A produção de O Dono do Mar foi fiel ao seu livro, ou pulou a cerca?

O cineasta não pode usar totalmente a caneta do escritor, porque a linguagem do cinema mexe com sons, imagens luz e cores, enquanto a nossa sacode letras. O Jorge Amado me dizia que jamais assistia a um filme baseado em seus livros, exatamente por isso. O filme O Dono do Mar levou sete anos sendo produzido e me mostrou paisagens muito bonitas, uma belíssima fotografia do meu Maranhão, além de ter divulgado costumes da terra. Tem passagens que eu gostei muito. Embora seja uma história baseada num romance, não é a história do romance. Os personagens que eu idelizei não são os que estão na tela. Mas os produtores realizaram um bom trabalho. Afinal, é muito difícil para o cinema fazer realismo mágico. Não entendo do assunto, mas creio que a montagem poderia ter sido melhor.

Como o senhor lavra a certidão do nascimento nominal dos seus personagens?

Os nomes nascem na hora, vão surgindo. Saraminda, por exemplo, eu inventei. E deve ser, realmente, muito simpático, pois já está na 6ª edição.

Por onde passa o meridiano que separa o político do escritor?

O meu passou pelo preconceito, de início, pois a visibilidade do político é muito maior do que a do escritor. Quem não desvinculava os meus dois lados deixava muito prejudicada a minha parte literária. Ainda bem que isso foi superado, o que digo baseado na generosidade que tenho merecido da crítica nacional e estrangeira. Tanto que Saraminda, O Dono do Mar e O Norte das Águas estão traduzidos em 12 idiomas. Só na França foram feitas duas edições de O Dono do Mar.

A atual literatura maranhense precisa ser mais divulgada pelo sul do País?

Estamos numa nova safra, vivendo novas tendências. O mercado literário tem acompanhado a tendência tecnológica, que evidencia a internet. A área dos best sellers vem sendo a grande alternativa nacional, mas eu gosto de lembrar que o Maranhão já ofereceu ao País grandes nomes, como Odorico Mendes, Aluísio Azevedo, Arthur Azevedo, Gonçalves Dias, que considero o nosso maior poeta, João Francisco Lisboa, considerado por Capistrano de Abreu o melhor historiador brasileiro, Josué Montello e Ferreira Goulart, entre outros. A literatura maranhense é tão forte que, quando a Academia Brasileria de Letra foi fundada, dez patronos eram meus patrícios.

Josué Montello revelou que a sua obra prima, Os Tambores de São Luís, sobre a estruturação político-social do Maranhão, só foi possível por sua causa.

Eu tinha uma série de pesquisas, inclusive a cópia do processo que acusou a Baronesa de Grajaú, a esposa do chefe do Partido Conservador no Maranhão, de matar dois escravos. Era o tempo do Império e ela foi a júri acompanhada por todas as damas do partido, todas vestidas de preto. Pela primeira vez, uma baronesa passava por tal situação no Brasil. Entreguei o documento ao Montello, e o meu mérito no caso foi só tê-lo incentivado a escrever um livro, que sugeri ser sobre a escravidão.

Quando um escritor termina um livro, normalmente, já está pensando no próximo. O que vem por aí, ou não vem?

Estou redigindo as minhas memórias. Como escritor e ex-presidente da República, eu não poderia deixar de relatar a caminhada que me levou de Pinheiros-MA até o Palácio do Planalto. Espero, dentro de uns dez meses, entregar o trabalho ao meu editor.

Jornal de Brasília (DF) 10/9/2007

10/09/2007 - Atualizada em 09/09/2007