Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Noticias > "Minha principal fonte é a África, tudo que vivi lá"

"Minha principal fonte é a África, tudo que vivi lá"

 

Aline Nascimento

Cercado por mais de 16 mil livros e máscaras africanas em seu apartamento de Copacabana, Antonio Olinto adora contar as experiências que viveu e presenciou durante os três anos que passou em Lagos, na Nigéria, como adido cultural.

__ Fui para África em 1960. Encontramos uma comunidade brasileira de ex-escravos e fomos descobrindo uma série de palavras e frases do Brasil do século 19 - conta o acadêmico.

A editora Bertrand Brasil acaba de mandar para as livrarias seus principais romances sobre a África: A casa da água, que saiu em 1969 e tem mais de 19 traduções; O rei de Keto, publicado originalmente em 1980; e Trono de vidro, o mais recente, de 1987. Pela primeira vez, a trilogia é publicada em conjunto, com o nome de Alma da África.

O Idéias pediu ao escritor Alberto Mussa que formulasse algumas questões acerca da trilogia. O resultado é esta entrevista, na qual Olinto conta um pouco da sua vivência e da mistura de realidade e ficção que encontramos na obra. Ele é professoral:

__ Temos de estudar mais a África. Principalmente a parte da colonização, passando pelos diversos países colonizadores, Portugal, França, Inglaterra. É o primeiro passo para se entender um continente que nos é tão próximo - afirma o escritor que, em setembro, terá publicada a sua biografia, escrita por José Luis Lira.

Nos anos 60 e 70, surgem alguns romances fundamentais para a interpretação da cultura brasileira: 'A pedra do reino', de Ariano Suassuna; 'Quarup', de Antonio Callado; 'Maíra', de Darcy Ribeiro; e 'A casa da água', marcando o início da trilogia, que investiga nossa africanidade. Como explicar esse fenômeno?

__ Dois anos antes de sair A casa da água, em 1967, saiu o livro do Callado, e logo depois o do Suassuna. Primeiro um índio, depois um negro, depois o português. Callado foi o índio, eu fui o negro e o Suassuna foi o português. Essas três raízes da civilização brasileira saíram em três romances sem ter nada a ver um com o outro. Mostramos as três influências poderosas. Aconteceu. Porque é o Brasil. Nós não sentamos para combinar. Somos essas três culturas bem fortes.

É possível dizer que "A casa da água" foi o primeiro romance brasileiro que elegeu a África como cenário?

__ Sim. Não romance negro, mas romance da África. Isso sem a menor dúvida. A principal fonte foi a vida, toda a minha vivência lá.

Os antigos escravos brasileiros que retornaram à África acabaram formando uma comunidade com características culturais próprias. Em que medida é possível falar que esse grupo já possuía uma cultura brasileira? Em que medida eles podem ser chamados de "estrangeiros"?

__ Eles já possuíam uma cultura brasileira. Coloco um negro saindo do Piau, terra da minha mãe. Aquele negro que saiu dali já estava sendo abrasileirado, inclusive porque, se é possível ter candomblé na Bahia, não é possível ter candomblé num arraialzinho de mil pessoas. Então você chega e encontra esses brasileiros negros, que tinham só uma coisa, queriam voltar para a terra onde eles eram nascidos e insuflavam seus filhos nascidos aqui a voltar para a terra deles, que era um paraíso. Lá chegaram, e viram que não era. Note que minha personagem, que mora no interior da Nigéria, é vendida pelo tio. Ela voltou para procurar a sua própria família. Claro que não encontrou mais nada. Aqui ela era Conceição, mas lá se chamava Airá. Quando chega, fala para todo mundo: de hoje em diante, meu nome é Airá. Não se deve trocar o nome de ninguém. É a reconquista da sua personalidade.

Quer dizer, o Brasil lhe tirou a personalidade?

__ Não, o Brasil é de fato uma terra de acolhimento nesse sentido. Mas não tratamos bem os índios, matamos os índios, massacramos os índios, não tratamos bem os negros. Mas nunca tivemos de fato um preconceito completo. Nos Estados Unidos, ainda hoje o preconceito é completo. Aqui, quando você vai à Bahia, vê um pretinho andando com uma loirinha. Nós temos um outro tipo de aproximação, que deve ter um pouco do português, que é tolerante, um pouco do árabe, que vive em nós. Temos árabe no sangue. E também não nos livramos da África, nós somos a África. Temos de aceitar nossa cultura africana. Eu sou católico e sou obá de Xangô. Vou a festas de Xangô, que é uma festa brasileira.

“A casa da água” é também um livro político, que descreve a primeira fase do processo de formação de uma elite local africana originária do Brasil.

__ O que conto são os primeiros anos da independência da África, quando o continente se sentiu independente. Esses tempos foram básicos, pois eles estavam começando a mandar em si mesmos. No começo, ficaram meio desatinados, inclusive de alegria. Não tinha nenhum inglês lhes dizendo: faz isso. Essa liberdade, que eles conseguiram a partir dos anos 60, e que nós presenciamos desde o começo. Foi uma beleza ver o reflorescimento. É claro que teve os seus perigos: a corrupção, por exemplo. Levaram uns cinco anos até acabar com aquele começo de corrupção, com a "corrupção da liberdade". O estudo da África independente, como povo independente, é um estudo fascinante. Para ver como eles foram lutando aos pouquinhos: ainda hoje passam fome.

As páginas iniciais de 'O rei de Keto' possuem um ritmo que nos remete à literatura oral. Podemos falar de uma busca consciente de uma oralidade africana?

__ Podemos. Mas fiz uma oralidade minha em português, começando a escrever a vida no Brasil, no Piau, em Juiz de Fora, no Rio e na Bahia, e só depois fui para a África. Passei a usar um tipo de estilo, que é um estilo narrador não apenas oral. Um narrador que não pára. Segue-se o ritmo sem fazer muita questão de vírgulas ou pontos. Esse tipo de narração, que não existe, eu o utilizo em outro romance chamado Tempo de palhaço. Nele, faço um capítulo de 180 páginas sem ponto. Quer dizer, fui aperfeiçoando esse estilo. É uma técnica e, ao mesmo tempo, é uma coisa nova. Deixa a narração muito mais viva.

Grande parte das casas de candomblé, no Brasil, se autodenominam "keto". Qual o papel da cidade de Keto na cultura brasileira? Quais as razões desse predomínio?

__ Existe até um livro famoso escrito por Agenor Miranda, que foi um pai-de-santo muito importante, chamado A tradição de Keto no Brasil. O Keto fica no Ogi Benin, que é o país que chamamos de Benin. O Reino de Keto fica no Norte de Benin, é o reino do orixá Oxossi. Grande parte dos nossos escravos vieram de lá. Houve uma guerra entre Keto e Abomey. Abomey ganhou a guerra, e não puderam fazer prisioneiros, porque alimentar prisioneiros dava trabalho. Por isso, costumavam matá-los. Então chamaram os portugueses na costa e lhes venderam todos os prisioneiros. Os portugueses pegaram aquele pessoal de Keto, um grupo grande, de umas 500 pessoas, e trouxeram para o Brasil. Trouxeram toda a cultura de Keto.

Como foi a experiência de escrever um livro como 'O rei de Keto'? Foi necessário sentir e pensar como um africano?

__ Até certo ponto, sim. Mas indo até lá, conversando muito, falando, como eu fui, você começa a ganhar o ritmo da fala local. Encontrei um ditado que diz tudo: "Mãe é ouro, pai é vidro".

No “Trono de vidro”, a trilogia se encerra, tendo como uma das protagonistas a neta de Mariana, que aparece em “A casa da água”. Em que medida essas personagens representam as grandes matriarcas da cultura afro-brasileira?

__ A Mariana representa a velha geração e a cultura antiga, enquanto a neta dela estudou em Paris, mas é brasileira. No fim do romance, a neta vem ao Brasil, como presidente, imagina só, e visita o Piau, de onde saiu. A volta a uma raiz profunda, que é um arraialzinho de Minas Gerais, de onde saiu a avó dela, ex-escrava. Agora, ela é presidente de Zorei, é inteiramente africana, mas com toda uma tradição brasileira. E é africana exatamente neste sentido, o da mulher que tem a força. Às vezes, me espanto com o fato de existirem tão poucas mulheres no cargo de presidente. Então inventei essa. É normal que ela seja presidente, pois não carrega a corrupção do homem. Mulher é menos corrupta. Não vamos dizer que nenhuma é, mas é menos. O homem parece que é corrupto por natureza.

O senhor considera o 'Trono de vidro' uma espécie de súmula das questões políticas não apenas da África ocidental, mas de toda a África negra?

__ Sim. Considero isso como retrato de uma África que está lá agora e que precisa mudar em muitos aspectos, mas que tem a sua força própria.

Dada a importância da África na formação do Brasil, o que ainda é necessário escrever, ou melhor, que romances ainda precisam ser escritos?

__ Temos de estudar mais a África. Primeiro, estudar toda a colonização, passando pelos diversos países colonizadores, Portugal, França, Inglaterra, principalmente Portugal, que foi um grande povo colonizador, com todos os defeitos que qualquer colonização apresenta. Portugal fez algumas coisas diferentes, massacrou também, mas não teve o desprezo. Já o inglês desprezou.

Jornal do Brasil (RJ) 14/7/2007

16/07/2007 - Atualizada em 15/07/2007