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Dignidade que superou os limites do tempo

 

O Globo - (17.07.2000)


Quando completou 100 anos, em 22 de janeiro de 1997, Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho disse que, em vez de festa, preferia que a data fosse celebrada como um ato político. "Seria mais agradável", afirmou na ocasião. Sua morte - no domingo, às 10h50m, por falência de órgãos generalizada - foi o último ato de um homem que superou as limitações do tempo: até o fim, aos 103 anos, manteve firme sua pena de jornalista, sem nunca abrir mão da contestação e da liberdade para opinar e influir nos rumos do Brasil. Barbosa Lima Sobrinho era casado desde 1932 com Maria José, de 93 anos, e deixa três filhos. O velório foi realizado na Academia Brasileira de Letras (ABL) e o enterro foi segunda-feira, às 11h, no mausoléu da ABL no Cemitério São João Batista.

- Ele se preocupava muito com o povo brasileiro, com a falência da classe média. Meu pai saiu na hora certa da batalha, porque daqui para a frente não seria a mesma coisa - disse o filho Fernando Barbosa Lima, de 65 anos, lembrando que o pai disse que gostaria de morrer em casa, lendo.

Na quinta-feira, poucas horas antes de ser internado na Casa de Saúde São José, no Humaitá, e com dificuldades de respirar desde terça-feira, escreveu seu último artigo para o "Jornal do Brasil", com o qual colaborava desde 1921. Ao longo de 79 anos, a única interrupção nesse trabalho ocorreu em 1973, quando apresentou sua anticandidatura à vice-presidência da República na chapa de Ulysses Guimarães, pelo MDB, num ato simbólico de resistência à ditadura.

No seu artigo "A exclusão da classe média", publicado ontem, Barbosa Lima Sobrinho volta ao tema que sempre lhe foi caro durante toda a vida: a defesa do nacionalismo. "Não será melhor que, sobretudo como obrigação da maior parte dos formadores de opinião, se comece logo a reagir e a defender os legítimos interesses nacionais?" indaga ele, no final.

Em 1978, quando o Brasil ainda lutava contra a repressão, Barbosa Lima assumiu pela terceira vez a presidência da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Nunca mais a deixou, sendo sucessivamente reeleito desde então. Ocupara o cargo em 1927 e 1930, com gestões inovadoras que uniram todas as entidades jornalísticas do país. Em seus documentos, quando tinha de indicar qual era sua profissão, nunca abriu mão de dizer que era jornalista. Exerceu, no entanto, muitas outras atividades.

Aos 20 anos, formou-se em direito em Recife, sua cidade natal. Três anos depois, mudou-se para o Rio de Janeiro. Além do jornalismo, envolveu-se com a atividade política. Na década de 30, foi eleito pela primeira vez deputado federal por Pernambuco e iniciou a construção de uma trajetória marcada pelo nacionalismo: "A convicção fundamental que guiou minha vida é o nacionalismo. O Brasil não deve se dobrar a potências estrangeiras. Enquanto eu tiver capacidade para escrever, esta será minha luta", disse em janeiro último, no seu aniversário de 103 anos.

Em 1938, foi presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA). Chegou a governador de Pernambuco em 1947. Para se manter no poder teve de enfrentar um processo aberto por seus adversários que durou um ano. Abriu mão de advogados de defesa e atuou em causa própria, vencendo quatro advogados.

Quando deixou o governo do estado, em 1951, Getúlio Vargas estava em seu segundo mandato. Barbosa Lima lembrava-se da década de 50 como uma das mais ricas do século por causa da Petrobras: "Basta esta consagração da Petrobras para redimir sua biografia (de Vargas). Pois a Petrobras é fundamental", afirmou numa recente entrevista. A venda da Vale do Rio Doce, em 1997, ano de seu centenário, foi considerada por ele um ato criminoso.

Ele sempre transformou suas experiências e idéias em livros. Ao longo da vida, escreveu cerca de 50, dos quais um de seus preferidos era "Japão, o capital se faz em casa" (1973), em que tentava explicar por que um país como o Brasil não conseguiu chegar a se tornar uma potência mundial como o Japão. Outro favorito era "A presença de Alberto Torres" (1960). A verve contida em seus artigos e ensaios fez com que fosse eleito aos 40 anos, em 1937, para a Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual foi presidente em 1953 e 1954.

Em 1992, aos 95 anos, o incansável Barbosa Lima cumpriu seu papel histórico ao ser designado, pelos partidos de oposição e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), como o primeiro signatário do pedido de impeachment do presidente Fernando Collor. Tendo participado ativamente do processo que culminou na saída do Palácio do Planalto do então presidente, o jornalista e advogado nonagenário, que virou símbolo para os jovens que saíam às ruas com a cara pintada, dizia ter o "sentimento de dever cumprido". "Fico com a impressão de que Deus foi responsável por que, aos 95 anos, eu pudesse desempenhar essa função", disse o homem que viraria enredo de uma escola de samba carioca, a União da Ilha, em 1999.

Durante o processo de impeachment, Barbosa Lima não poupou esforços. Não satisfeito apenas em assinar o papel, fez parte do grupo que foi a Brasília entregar o documento ao Congresso. "Ele foi sem nos avisar. O médico descobriu, viajou no mesmo vôo e só no aeroporto o vovô descobriu", lembraria a neta Maria Fernanda anos depois, durante a comemoração do centenário do avô. "Ele deu uma bronca no médico, dizendo que não precisava ser seguido."

Barbosa Lima nunca encarou sua saúde como um problema. Pelo contrário. Já centenário, não recusava uma boa feijoada. Até poucos anos atrás, o homem apaixonado por natação (foi nadador e remador) e futebol (centroavante amador na juventude, chegou a dirigir o clube Náutico Capibaribe, em Recife, e no Rio era torcedor fanático e presidente de honra do Fluminense) ainda se gabava de dar 400 vigorosas pedaladas por dia em sua bicicleta ergométrica. Talvez por isso nunca tenha sido um freqüentador de clínicas e hospitais. Ele, porém, creditava sua longevidade e disposição a um outro tipo de exercício: o intelectual, sempre a serviço do país.

Além do glaucoma que o fez perder a visão do olho direito e da cirurgia feita no ano passado, para a colocação de um parafuso no fêmur - quebrado em conseqüência de uma queda - Barbosa teve, ainda em 1965, um infarto, atribuído por todos os conhecidos às tensões geradas pelo regime ditatorial que tomava conta do país. Naquela época, o ferrenho defensor da democracia e da liberdade teve a casa revirada atrás de provas de sua participação no Governo João Goulart e enfrentou três inquéritos policiais militares.

A família também cumpriu um papel fundamental na vida de Barbosa Lima Sobrinho, principalmente a mulher, Maria José, com quem se casou depois de vencer, com uma observação antológica, a resistência do pai da moça, Horácio Gonçalves Pereira, advogado paulista quatrocentão, que queria evitar o casamento a qualquer custo. O futuro sogro tentou provocar a desistência de Barbosa dizendo que Maria José não sabia cozinhar, passar, lavar, costurar. O pretendente, então redator-chefe, respondeu de pronto: "Trabalho no jornal que tem a maior seção de classificados do país. Se quisesse uma empregada, não viria a São Paulo procurar".

Desde então, Maria José tornou-se a companheira dileta de todas as horas e situações. Ela convenceu Barbosa Lima Sobrinho a trocar uma casa no Leme por um terreno em Botafogo, nos anos 40. Ali, supervisionou sozinha a construção de um sobrado que acomodou não apenas o casal como as dezenas de milhares de livros que o jornalista acumulou ao longo de sua vida. Do casamento nasceram quatro filhos: Roberto (engenheiro, morto aos 62 anos, em 1994), Fernando (também jornalista, produtor de TV), Carlos Eduardo (advogado, de 61 anos) e a dona de casa Lúcia (59), que deram sete netos e quatro bisnetos ao patriarca, um homem que viveu seu século intensamente, do início ao fim.

09/06/2006 - Atualizada em 08/06/2006