Sr. Afonso Arinos de Melo Franco,
Relevai-me, relevai com todos os nossos caros confrades que eu faça aqui uma declaração de ordem muito pessoal: duas coisas não me agradam nesta ilustre casa. A primeiro é este tratamento na segunda pessoa do plural que serei forçado a dar-vos. Vou julgar-me um pouco ridículo dirigindo-me assim a quem é meu amigo há trinta e três anos, dezenove anos mais moço do que eu, e a quem me habituei a chamar Afonsinho enquanto não perdeu para o filho do mesmo nome o doce diminutivo. A segunda é esse aurisplendente fardão, que só me vestiu uma vez e sob o qual me senti não como glorioso itinerante ad immortalitatem, mas como um daqueles batráquios chamarrés de pustules do Chantecler de Rostand.
Cumpre advertir-vos que a indumentária acadêmica acentua bastante aquele ar despreocupadamente distante que, tomado por uns poucos vossos desafetos como presunção, empáfia, orgulho de família, os fazem dizer que tendes o rei na barriga. Se vos visse algum nesta casaca de gala, certo sairia daqui assoalhando que nela trazeis não só o rei, mas também a rainha, as damas da corte e todo o Município de Paracatu.
Conheço eu, conhecem todos os vossos amigos mais chegados, a simplicidade e modéstia de vossa natureza, ainda que bom direito a orgulho de família tenha quem descende dos fundadores da civilização no mais fundo rincão mineiro, quem conta entre os seus avós o médico poeta autor da famosa sátira O Reino da Estupidez, quem é filho de Afrânio de Melo Franco, um dos maiores estadistas da República, sobrinho de Afonso Arinos, o verdadeiro criador do conto regional brasileiro, irmão de Virgílio de Melo Franco, e, pelo costado materno, neto de Cesário Alvim.
Talvez por esse ar, que não vem do berço, pois em criança e adolescente contam os vossos companheiros que éreis bem mais comunicativo, seja responsável o desgaste dos anos, com as suas desilusões e melancolias (na bela oração que acabais de proferir aludistes à “tristeza irreparável da vida”), a reflexão filosófica sobre o mais sério de todos os temas, pois, para citar o vosso tão caro Montaigne, mourir est la plus grande besoigne que nous avons à faire.
Numa coisa, porém, acertariam os vossos desafetos, e é que trazeis de fato, não na barriga, senão nas partes mais nobres do vosso ser, todo o Município de Paracatu. Eu avançaria mais e diria – toda Minas, a Minas da mata, a Minhas da mineração, a de “ortografia tormentosa”, e a Minas do Grande Sertão e Veredas (notai que nestas palavras acrescento a minha homenagem à que em vosso discurso prestastes ao grande escritor que veio convosco pleitear entrada nesta casa). Todas as Minas, inclusive a morta, tão presente em vosso coração que vos levou a dizer certa vez que é a única Minas viva. Amais profundamente a vossa Minas, mas uma Minas integrada concentricamente na realidade mais vasta do Brasil. A esse respeito estabelecestes uma lúcida distinção entre o conceito do regional e do regionalista.
“Considerado sob o ângulo puramente literário e moral”, escrevestes em vosso livro Introdução à Realidade Brasileira, o regionalismo é um fenômeno absolutamente legítimo e, mesmo, bastante louvável. Não existe verdadeiro sentimento nacional sem um forte sentimento do regional enraizado na alma de um povo. A imagem da pátria é formada de um conjunto de tradições e de costumes locais. Onde essas e esses faltam não existe possibilidade de cultura nem, por conseqüência, de civilização”.
Não falando de vosso primeiro trabalho publicado, a Responsabilidade Criminal das Pessoas Jurídicas, os vossos primeiros livros - Introdução à Realidade Brasileira, Preparação ao Nacionalismo e Conceito de Civilização Brasileira - foram uma espécie de vigília de armas do cavaleiro que pretendia dedicar a vida ao serviço político de sua pátria. Assim, abandonáveis as seduções da poesia, que foi o pequeno jardim onde abriram as primeiras flores de vossa inteligência. Não que perdêsseis o dom da poesia: ele reponta aqui e ali em toda a vossa obra de jurista, de historiador, de sociólogo, de político. Mas o poeta autor de poemas quedou satisfeitamente reduzido à condição de bissexto. Sabeis que não ponho no epíteto nenhum sentido depreciativo. Sabeis que tenho por grandes poetas alguns dos bissextos brasileiros. “O defundo”, de Pedro Nava, e “A cachorra”, de Pedro Dantas, são dois dos mais fortes e mais originais poemas da nossa literatura.
No entanto, sei que por volta dos quinze anos fostes um sonetista frenético. Havia no Internato do Colégio Pedro II, onde fizestes a vossa instrução secundária, uma academiazinha, cuja atividade se exercia de modo muito fora do ordinário. Quando um dos seus membros sentia o estalo e perpetrava um poema, escrevia-o a giz no quadro negro e sofria a crítica dos colegas. Crítica impiedosa, não raro tumultuosa. Éreis um dos mais assíduos freqüentadores do quadro negro. Tínheis mesmo em casa, escondido numa gaveta, todo um livro de tenebroso título – Caos, grafado à antiga, com Ch, para aumentar a confusão. Um dia vossa irmãzinha Maria do Carmo descobriu os vossos originais, divulgou o segredo em casa e tivestes de arrostar uma infame campanha doméstica da parte de irmãos e primos. Entre estes últimos gritava Rodrigo: – “Paus para o poeta do Caos!” O velho Afrânio sorriu indulgente. Em transe tão desastrado confortou-vos o juízo do bom Tristão da Cunha, que, sabendo do caso, ponderou que o título do livro quadrava bem à vossa adolescência.
Por algum tempo trouxestes a viola metida no saco. Mas na idade risonha e bela, que é a dos vinte anos como sabem todos os que, como eu, ainda lêem com gosto Tomás Ribeiro, andastes a publicar nas revistas literárias do tempo - a Estética, a Revista do Brasil, alguns raros poemas, em que tínheis abandonado pela musa lírica a musa filosófica e catastrófica do Caos. Um deles encantou-me porque, contando a história da matrizinha mineira de Boa Viagem que, construída em 1765 por ordem do senhor capitão-mor das Minas para os povos de Curral del-Rei, foi demolida em 1925 a fim de que em seu lugar fosse levantada uma igreja de estilo gótico, pusestes no poema anedótico e piadista dois versos de infinitas perspectivas, dois versos que são grandes poemas em si: “Boa Viagem... Que lindo nome para um barco a vela!; “Boa Viagem... Que lindo nome para um cemitério!” Mereceria leitura aqui o vosso poema “Quase bucólico”, tão cheio do “perfume brasileiro de madressilva, ou o poema para Santa Teresinha, única reincidência vossa no soneto.
Quando organizei a antologia dos nossos bissextos, logo pensei em alinhar-vos entre esses poetas, alguns dos quais mais tarde vieram a provar com livro a sua qualidade de contumazes na prática da poesia. Bem o sabia eu: o que pretendi fazer foi pô-los em brio, e o consegui. Américo Facó, Joaquim Cardozo, Dante Milano, Paulo Mendes Campos acabaram publicando os seus livros, eximindo-se assim da situação, a muitos aspectos confortável, de bissexto. Fundado em que havíeis editado em 1942 o vosso drama lírico Dirceu e Marília, impugnou-me Pedro Dantas a vossa colocação entre os bissextos. Arinos, ponderou-me o autor de “A Cachorra”, estava estudando a Inconfidência Mineira e de repente viu - manjou, como se diz em gíria - o tema do seu poema dramático. Este é fruto de uma elaboração mental bastante complexa; é uma construção, coisa de que um verdadeiro bissexto não será capaz.
O argumento de Dantas não me convenceu. Vós mesmo declarastes no prefácio ao drama que ele é “uma impressão lírica” da vossa etapa gonzaguiana, “impressão que se originou daqueles estudos tão natural e imperiosamente que eu (transcrevo as vossas palavras), esquecido já dos meus tempos de poeta, fui o primeiro a me surpreender”. Que poetas, senão os bissextos, se esquecem de ser poetas? Sustento, pois, que Dirceu e Marília não passa de délassement de erudito. Sustento, aliás, que o idílio mineiro do nosso prezado desembargador foi um namoro meio sem graça. Em vosso Roteiro Lírico de Ouro Preto, verdadeiro poema em prosa, como justamente o chamou Alphonsus de Guimaraens Filho, acoimastes de temerário e leviano esse meu juízo. Ora, Rodrigues Lapa assinalou com agudeza o ideal familiar e burguês desses amores, tão bem ilustrado pela Lira nº 3 da terceira parte.
Tão rala é a substância lírica daqueles amores que tivestes de a engrossar no fogo lento das conversas entre os três inconfidentes - Cláudio, Gonzaga e Alvarenga Peixoto.
Mais comovido e mais comovente me pareceis quando tratais o episódio da Inconfidência, não como poeta, mas como historiador e sociólogo. Com valor vos rebelastes contra a opinião daqueles que não querem ver no movimento libertário mineiro senão um devanear de poetas, a que a leviandade e bravura do alferes acabaram por emprestar cores trágicas. Para vós, muito ao contrário, a Inconfidência representa “a mais substancial das tentativas de emancipação do Brasil, mais, mesmo, do que o próprio movimento vitorioso da Independência”. E isso em virtude do quê? Em virtude do fundo de idéias que a informava. Ora, sois na vida, antes que tudo, um apaixonado das idéias. Essa reabilitação da Inconfidência, esboçada em artigo de crítica recolhido em vosso livro Espelho de Três Faces, desenvolveste-la posteriormente no admirável ensaio As idéias da Inconfidência, para provar, como de fato provastes, que o malogrado movimento foi uma dessas raras ocorrências que, sem chegar a explodir objetivamente, marcam fundo o presente de um povo e se projetam no seu futuro mais remoto. Sem sombra de dúvida lançou a Inconfidência Mineira na consciência brasileira e para todo o sempre a semente do seu mito mais belo: o verdadeiro herói de nossa libertação não foi o príncipe luso gritando “Independência ou morte!” nas margens do Ipiranga. Mas o Alferes Xavier morrendo por sua idéia enforcado e esquartejado.
O primeiro manifesto dessa revolução de idéias, disseste-lo, e com razão, está num poema – as Cartas Chilenas. Aqui trocamos um dos pontos altos da vossa atividade de crítico literário. Ao tempo em que escrevestes para o Diário de Notícias “A poesia da Inconfidência”, tínheis como definitivamente identificado autor da famosa sátira o mesmo louvaminheiro poeta do Parnaso Obsequioso. Havíeis aceitado fraternalmente, apressadamente, a tese de Caio de Melo Franco (relembro aqui com saudade o mais alegre, o mais extrovertido dos Melo Franco). Caio tinha evidentemente um fraco por Glauceste Satúrnio Ao contrário do nosso querido mestre Afonso Pena Júnior, que quando fala de Cláudio Manuel da Costa cerra o cenho e rilha os dentes, como se o desventurado inconfidente fosse um seu contemporâneo de mau caráter.
Foram as pesquisas relativas à Inconfidência que vos deram oportunidade para examinar pessoalmente o problema da autoria das Cartas Chilenas. Estudando o ambiente intelectual e social de que a sátira é o mais típico fruto, acudiram-vos as primeiras dúvidas sobre a atribuição de sua autoria a Cláudio. Comunicaste-las a vosso amigo Luís Camilo de Oliveira Neto, que, por sua vez, em escavações aqui e em Portugal descobriu muito documento fortalecedor da tese favorável a Gonzaga. Também meti nessa panela fervente a minha colherzinha torta. Não tinha nenhuma idéia preconcebida. Minto, tinha-a sim, e era que as Cartas bem podiam ser obra, não de Cláudio, nem de Gonzaga, mas de algum bissexto oitocentista. Nunca aceitara eu o argumento de certos críticos, a saber: em Minas não havia ao tempo, fora do grupo dos árcades, outro poeta que pudesse escrever aqueles versos. Por que não? Essa gente não sabe de que é capaz um bissexto em boa forma. Tentei a prova estilométrica e quando li na primeira Carta os versos
Inda que o vento, que d'alheta sopra,
Lhes inche os soltos, desrinzados panos?
lembrei-me destes outros que estão na Lira 17 da terceira parte de Marília de Dirceu:
Verás, verás d'alheta
Soprar o brando vento;
Mover-se o leme, desrinzar-se o linho
“D'alheta” e “desrinzar” são termos no emprego raro fora do meio náutico. Aliás, nenhum dicionário registra a forma “desrinzar”: registram alguns é “desenrizar”. Morais não registra nem uma nem outra. Essas duas expressões da Lira valem na Carta, me parece, por uma verdadeira assinatura. Devo dizer que, fazendo essa descoberta, estava eu arrombando uma porta aberta, pois Alberto Faria, que eu não havia lido, como não havia lido nenhum outro autor que se tivesse ocupado do assunto dentro do ângulo da linguagem, da metrificação e do estilo, e assim procedi para não me deixar influenciar num sentido ou noutro, Alberto Faria já assinalara a notável coincidência. Às minhas observações neste terreno juntastes as vossas. À prova estilística acrescentastes as dos fatos, e bastante convincente me soa aquilo a que já havíeis aludido antes no livro Terra do Brasil. O Silverino das Cartas, acusado veementemente pelo poeta de advogar negócios escusos junto ao Governador Minésio, é o traidor Joaquim Silvério. Este, na denúncia da Inconfidência ao Visconde de Barbacena, só nomeia um homem – Gonzaga, apontando-o como cabeça da conjuração. “Ora”, argumentais, “o ódio de Joaquim Silvério é uma demonstração bem clara de que Silverino sabia bem a origem do bote sarcástico que viera feri-lo na sombra”. Vosso prefácio à edição que fizestes das Cartas, edição enriquecida de tantas notas preciosas, são um modelo de crítica de atribuição. De resto as contribuições de mestre Afonso Pena Júnior vieram dar o tiro de misericórdia nas teses antigonzaguianas.
Os vossos primeiros livros - Introdução à Realidade Brasileira, Preparação ao Nacionalismo, já revelavam com bastante força o escritor e o pensador social, sem deixar no entanto de acusar ainda uns resíduos de adolescência, desejosa de se apresentar com a circunspeção da idade madura. Faláveis aos rapazes pouco mais moços do que vós como se fôsseis um velho, carregado de experiência. "A primeira sensação de velhice", escrevíeis, "nos assalta antes dos trinta anos, e nos apanha com a instantaneidade das catástrofes. O homem se sente, pela primeira vez, velho, quando percebe que não é mais o mais moço". E pensáveis sorrir com requintada ironia ao interromper as palavras do vosso intróito à Preparação ao Nacionalismo com as apóstrofes: "É verdade, rapazes, vocês ainda lêem o Eça? Vocês ainda lêem Proust? Vocês leram Flaubert?" E no fim, ao perguntar cepticamente se haverá no mundo alguma coisa de novo: "A propósito, rapazes, vocês já leram o Eclesiastes?"
Amadurecestes, porém, rapidamente, e já em Conceito de Civilização Brasileira aludíeis às "ingenuidades explicáveis num escrito de primeira juventude".
Na vossa dedicação à terra do Brasil esses primeiros livros, de encantadora frescura, representam aquele estágio de conhecimento preparatório do amor. Dissestes muito bem que "o sentimento afetivo pelo que não se conhece é um estado superficial de excitação emotiva, é uma disponibilidade difusa para o amor, mas não é amor. Trata-se de uma atitude intransitiva, sem objeto direto, uma ênfase da imaginação, que se quebra, como a das ondas, no estrondo da retórica, e que se satisfaz com o ribombo de sentenças tão declamatórias quanto falsas. O amor, repitamo-lo, é um ato de conhecimento. Um querer bem viril, repousado e diligente, feito de luz intelectual e de ternura, diferente do apego histérico, vazio, vaidoso, dos que pretendem amar sem conhecer".
No ano de 37, tínheis então 32 anos, três livros vieram marcar a vossa maturidade intelectual – Espelho de Três Faces, Roteiro Lírico de Ouro Preto e o O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa. Espelho de Três Faces, Mar de Sargaços, que é de 1944, e Portulano, de 1954, registram a vossa passagem pela critica literária militante. Na releitura de todos os vossos livros, salvo a História do Banco do Brasil, para a qual me faltou coragem, vi, com desvanecimento, o meu nome citado em quase todos. Em Espelho de Três Faces incluístes mesmo um ensaio sobre a minha pessoa, ensaio que levantou celeuma no tempo, porque nele me definíeis como "o homem contra a poesia", isto é, Bandeira homem estaria em permanente contradição com Bandeira poeta. É possível que tenhais razão, pois ainda sem raiar na poesia, ainda como homem tão-somente, sinto-me freqüentemente em profunda contradição comigo mesmo.
O Roteiro é mais uma declaração de amor à velha cidade do Aleijadinho, e das mais belas e mais comovidas que já se fizeram. Nela já vinha recolhida a toada diamantina que nos últimos anos ganhou nomeada presidencial. Falo do "Peixe vivo".
Quanto ao Índio Brasileiro e a Revolução Francesa, é um marco importante em vossa obra. Com ele entrastes definitivamente na literatura mundial, já que o vosso livro se tornou um clássico na bibliografia do assunto. Na elaboração desse magnífico estudo de literatura comparada, partistes do segundo Discurso de Rousseau e do ensaio de Montaigne sobre os Canibais. Mas verificastes que nem Rousseau e Montaigne, nem os franceses que vieram depois - Chinard, Ferdinand Denis, Paul GaffareI, nem ainda os brasileiros que se ocuparam do tema tiveram consciência de quanto influiu o conhecimento dos nossos índios, ou melhor, o falso conhecimento dos nossos índios, sobre a formação dias idéias revolucionárias que acabaram provocando a explosão de 1789. Foi uma árdua pesquisa, em que rastreastes o conceito da bondade natural do homem, desde o Renascimento. Estáveis, aliás, no vosso elemento, que, como já disse, são as idéias e sua ação sobre o meio social e político.
Os livros Responsabilidade Criminal das Pessoas Jurídicas, Síntese da História Econômica do Brasil, Idéia e Tempo, Homens e Temas do Brasil, Desenvolvimento da Civilização Material no Brasil, La Literatura del Brasil, As Leis Complementares da Constituição, Histórica e Teoria do Partido Político no Direito Constitucional Brasileiro, Estudos de Direito Constitucional e Curso de Direito Constitucional assinalam a vossa atividade como professor. Informam essas obras sobre a vossa agudeza critica, sobre a amplitude de vossa erudição, clareza e lógica dos vossos métodos de trabalho, mas a tudo isso há que acrescentar o prestigio de vossa presença, e quem já teve a fortuna de vos ouvir numa preleção sabe que formais entre os luminares do nosso magistério.
Como bom mineiro que sois, não podiam faltar ao vosso quadro as notas humorísticas, e uma delas, deliciosa, está na malícia com que, a propósito do falecimento de João Pinheiro, contais o que se passou na Câmara quando morreu Machado de Assis. Um simples voto de pesar pedido pelo deputado Herédia de Sá. O representante do Distrito Federal era um tipo alto e magro, aprumadíssimo. Gostava de passear a sua elegância estranha pelas ruas do Centro, elegância que se caracterizava principalmente pela sobrecasaca cinzenta com que era visto a qualquer hora do dia ou da noite. Os jornalistas zombavam dele, diziam que tinha sido alfaiate e era homem de poucas letras. Pois foi esse homem de poucas letras que na sessão de 29 de setembro de 1918 tomou na Câmara a iniciativa da homenagem ao grande morto. Esta foi rápida. O Sr. Herédia de Sá: Peço a palavra. O Sr. Presidente: Tem a palavra o Sr. Herédia de Sá. Herédia diz que, chegando-lhe no momento a notícia da morte do glorioso escritor brasileiro Machado de Assis, julga bem interpretar o sentimento de luto da Nação pedindo seja inscrito na ata da sessão um voto de profundo pesar por tão infausto acontecimento. E o Presidente: Os srs. que aprovam o requerimento queiram levantar-se. (Pausa.) Foi aprovado. Continua a primeira hora da sessão. Se mais ninguém pede a palavra, passa-se à ordem do dia. Ninguém mais pediu a palavra e passou-se à ordem do dia. Note-se que esse Presidente tão expedito era Carlos Peixoto.
Faltará talvez em vossa grande obra a sensação de perspectiva. E será porque, no desenrolar da história republicana, somos sempre introduzidos na intimidade de cada episódio, de que passamos a participar violentamente, apaixonadamente? O caso das cartas falsas atribuídas a Artur Bernardes é um exemplo. Soube que mais de uma pessoa saiu da leitura das páginas do livro relativas ao diabólico dolo convencida da autenticidade das cartas. Eu que vivi aqueles dias sacudido entre a certeza e a dúvida, acho cabal a vossa demonstração: tudo o que dizeis e a dúvida meridianamente a boçalidade cafajéstica dos dois documentos forjados por Jacinto Guimarães. Bernardes, honra lhe seja, nunca foi cafajeste, como têm sido tantos dos nossos políticos republicanos.
A leitura do vosso livro deixa-nos afundados até a cabeça num poço de melancolia. Se a atualidade política brasileira nos assusta e entristece, a verdade é que o passado não foi melhor. Felizmente vós mesmo nos socorreis, como já havíeis feito em História e Teoria do Partido Político no Direito Constitucional Brasileiro, mostrando que o Brasil vai aprendendo, vai-se organizando, vai progredindo dolorosamente através de todos os desacertos e apalpadelas.
Sr. Afonso Arinos, assim como a coragem me faltou para reler a História do Brasil, faltou-me ela também para ler os vossos discursos políticos, os vossos pareceres nas comissões da Câmara. Abri exceção para o voto em defesa da Liberdade de Imprensa, onde citais tão apropriadamente a frase de Thiers: "Prefiro ser governado por homens honestos chamados de ladrões, do que por ladrões chamados de homens honestos". Não preciso definir-vos como tribuno: toda a gente conhece a vossa fôrça e a vossa elevação em tal terreno.
Acabais de exibi-Ias no elogio que fizestes dos vossos antecessores nesta casa. Sobretudo na visão sucinta e bem marcadamente pessoal da obra de José Lins do Rego. Sob a pretensa intenção, demasiado acentuada pelos críticos, de fixar e interpretar a desagregação e decadência de certa estrutura social, descobristes na obra do grande romancista uma realidade muito mais ampla - o sentido absurdo, a fatalidade, o vazio da vida. Pusestes em relevo o dom soberano do escritor - o poder intenso da imagem. E concordei convosco quando apontastes Fogo Morto como o ponto mais alto da ficção de Lins do Rego. Certa vez entrei na Confeitaria Colombo e deparou-se-me coisa que é rara ali: uma comprida mesa cheia de alegres convivas. Quase todos eram cabeças-chatas na flor da idade. Imediatamente palpitei: o scratch cearense de futebol! E era mesmo. Enquanto almoçava, fiquei observando-os. E o tipo físico dos jogadores, o plano braquicéfalo, uma ou outra inflexão cantada que me chegava aos ouvidos me foram enchendo de uma estranha emoção, em que ao cabo reconheci o velho sentimento de pátria, despertado assim mais fortemente do que por manifestações oficiais ou de encomenda. Senti-me então torrencialmente submergido naquela "onda viril de fraterno afeto" a que fiz alusão no meu poema do "Marinheiro Triste".
Pois bem: a mesma aura de emoção, o mesmo amor da pátria: total identificada numa expressão regional me salteou desde as primeiras páginas de Fogo Morto.
Dizia-se que Lins do Rego só era bom mesmo na psicologia dos fracassados, dos indivíduos de vontade fraca, do tipo de Carlos de MeIo: o mestre José Amaro e sobretudo Vitorino Carneiro da Cunha - Vitorino Carneiro da Cunha, não! Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, o homem pagou patente e a defendia no campo da honra! - vieram mostrar que o nosso amigo trazia todo o Nordeste no sangue. E justamente o capitão Vitorino me parece de longe a criação mais acabada, mais viva, de toda a sua galeria de tipos. Aquele Quixote do Nordeste não precisou de novelas de cavalaria para esquentar a imaginação e criar fibra de herói andante, defensor dos pobres e paladino da justiça. Não tinha sequer um Sancho Pança a acompanhá-lo, não queria auxílio de ninguém e toda a sua fortuna era o punhal de Pasmado e uma burra velha caindo aos pedaços pelas estradas. Mentiroso sem baixeza, vadio sem preguiça, valentão sem muque, desacatado até pelos garotos que o enfureciam ao gritarem de longe a alcunha indecente, Vitorino – dobre a língua, o Capitão Vitorino, - mal escondia debaixo dos seus despropósitos uma pureza de criança. E só mesmo os demônios como os cangaceiros de Antônio Silvino ou os "macacos” da volante do tenente Maurício ousavam bater-lhe. Mas Vitorino Carneiro da Cunha jamais foi moralmente vencido. As cenas em que o romancista descreve a intrepidez desbocada do velho em face da crueldade dos bandidos do cangaço ou da policia estadual são verdadeiramente épicas e se colocam, como a da surra terapêutica do mestre José Amaro na filha doida, entre as mais fortes de sua obra, se não ainda de toda a ficção brasileira.
Os romances de José Lins encantavam-me duas vezes: quando eu os lia e antes, quando, na fase em que ele os estava escrevendo, me ia narrando os sucessivos episódios. O romancista falava, então, não como se me estivesse expondo a sua ficção, mas como se falasse de personagens reais de carne e osso. Era uma delícia. E a obra sempre lhe saía da pena com aquele calor humano que fazia esquecer certas falhas do escritor, avesso ao trabalho de reler e emendar (sabe-se que escrevia sem rasuras e só corrigia uma vez - quando ditava o texto original para a datilógrafa).
O homem Lins do Rego valia o romancista. Os seus defeitos eram todos defeitos nascidos da generosidade. Dizem que como fiscal do imposto de consumo nunca multou ninguém. Não estava certo, mas a falta resultava do seu bom coração. Nunca errou por mesquinharia. Era homem sem "bondades", como disse nordestinamente de certa personagem de um dos seus romances: sem "bondades", quer dizer, sem maldades.
Sr. Afonso Arinos de Melo Franco, no pesar irresistível de ter perdido tão cedo o grande escritor e grande amigo que era José Lins do Rego, temos o consolo de o ver substituído por quem reúne em sua pessoa as mesmas excelências que no-lo faziam um companheiro tão caroável. Assim, o "pequeno Brasil" que é o meu Nordeste passa o facho à vossa Minas "materna, nutriz e criadora".
O poeta Rui Ribeiro Couto, que é quem deveria estar aqui para saudar-vos, e só a doença o impediu, escrevia em setembro de 1927 a um rapaz do grupo Verde de Cataguases: "O caso mais maravilhoso de precocidade na última geração (mais ou menos a sua) é Prudente de Morais neto, ao lado de Afonso Arinos Sobrinho. Isso quanto ao Rio. Em Minas, os casos maravilhosos são inúmeros".
Uns dez anos depois Couto e vós estáveis no Sanatório Bella Lui em Montana respirando "nas resinas do ar a fama, o poder, a riqueza". - Ai, pulmão, ainda hás de sarar. Ai! hão de ser cicatrizes estas feridas do pulmão! dizia o poeta num dos poemas do livro, todo para vós e para vossa Annah, O Cancioneiro de D. Afonso. Couto acertou: as feridas cicatrizaram, a fama veio para vós ambos. Couto, quando obscuro repórter de um vespertino carioca, tinha os olhos no posto de embaixador: ei-Io hoje à testa de uma embaixada, tendo iniciado a carreira como auxiliar de consulado extranumerário e sem vencimentos. Vós, ao tempo da Introdução à Realidade Brasileira, creio que sonháveis com a presidência de Minas, para todo mineiro mais cobiçável do que a Presidência da República. Ainda não chegastes lá, nem sei se ainda o desejais, eu é que não o desejo para vós e acho até que será da maior vantagem para vós, para nós e para as letras brasileiras que não chegueis nem a senador.
Já prestastes bastantes serviços à pátria no setor da política. A verdade é que não pertenceis ao seu mundo. O vosso mundo é o das idéias, com as quais privais com incomparável elegância. Muito esperamos ainda de vós como estudioso de nossa profunda e dolorosa realidade. Sereis menos útil como político do que como doutrinador de políticos. Quando tínheis vinte e quatro anos escrevestes este belo poema:
Eu quis construir um barco salvador
Que me libertasse do isolamento da ilha deserta,
Da minha ilha árida, cercada de água violentas.
Aos poucos fiz crescer sobre a areia virgem
O casco possante,
A proa alta, orgulhosa como ave migradora.
Dei-lhe remos que furassem o ventre das ondas.
Dei-lhe velas,
As grandes velas brancas que o fizessem deslizar...
Oh! o desejo de abandonar para sempre a solidão
[impenetrável
E fugir livremente nas águas largas e azuis!
Só depois de ter gasto todo o meu esforço
Foi que vi que meu barco era enorme, pesado,
E que eu nunca conseguiria arrastá-lo até o mar.
Meu caro Afonso Arinos de MeIo Franco, o Robinson Crusoe Afonso Arlnos Sobrinho, também assinado Afonso Arinos, o moço, estava enganado, não tinha ainda consciência de sua pujante musculatura. O barco deixou a praia, ganhou o mar alto, a glória soprou de feição em suas grandes velas brancas. Trouxe-vos até esta Casa, que vos será um porto seguro de escala, onde, ao calor de muitas amizades, podereis continuar a vossa obra de mestre admirado e querido.
19/7/1958