DISCURSO DO SR. ALFREDO PUJOL
SENHORES,
Devo confessar-vos, ao agradecer à Academia Brasileira de Letras a honra dos seus sufrágios, que nunca sonhei a ventura suprema de pertencer a esta egrégia Companhia. O vosso ilustre cenáculo, a “torre de marfim”, a que aludia um dos seus fundadores, revelava-se a meus olhos, numa alvura imaculada, como um templo augusto, defeso às minhas pobres letras profanas, ensaios e devaneios da mocidade, sepultados nas páginas efêmeras do jornalismo. Seduzindo pelas sugestões de amizade indulgentes, vim bater à vossa porta, sem atentar na indigência dos meus méritos... Quisestes talvez premiar o obscuro artífice, que reuniu, e ajustou, nas suas mãos grosseiras e rudes, os primeiros materiais para a glorificação do autor das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Mas o vosso prêmio foi tão desmedido, que ainda não volvi a mim do enleio e da confusão em que ele me deixou submerso.
Nesta hora de intensa comoção, não sei dizer-vos o que se passa no meu espírito conturbado, vindo recolher entre vós a sucessão de Lafayette, na cadeira que pertenceu a Machado de Assis e tem por patrono José de Alencar, amparado pela palavra generosa do mais querido dos meus mestres, o eminente jurista, filósofo e magistrado, que é um dos vultos mais expressivos da cultura contemporânea. Bem sabeis que não posso aqui substituir ninguém. A cadeira, que me deste, é um santuário, onde repousam três sombras peregrinas: a figura mais alta e mais nobre do nosso Romantismo, o clássico maravilhoso do nosso idioma, e o civilista profundo, que versou a ciência do Direito, revestindo-a da pureza helênica. Do seu espaldar se debruça a imagem da pátria, velando e abençoando a grandeza refulgente do gênio nacional.
Nasceu Lafayette Rodrigues Pereira a 28 de março de 1834, no município de Queluz, da antiga província de Minas. Seu pai, Antônio Rodrigues Pereira, mais tarde Barão de Pouso Alegre, solicitador inteligente e arguto, político votado ao ardente liberalismo mineiro, esmerou-se na educação do filho. Depois de cursar preparatórios no colégio de Congonhas do Campo, Lafayette completou os seus estudos de Latim na cidade de Prados, tendo por mestre o vigário Felisberto Rodrigues, seu tio, grande sabedor de letras antigas. Desde menino manifestou a paixão dos livros que só raramente abandonava, quando o atraíam os prazeres da caça. Não teve hesitações na escolha de uma carreira, como aquelas aves, de que nos fala Pailleron, que volteiam longamente nos ares, procurando no horizonte a visão do seu caminho. “Nasceu jurista” – dizia do filho o Barão de Pouso Alegre. E em 1853 partia Lafayette para São Paulo, a iniciar o seu curso de Direito.
Foi copiosa a cultura filosófica, jurídica e literária de que se nutriu o moço estudante, durante os anos acadêmicos. Não desprezando a convivência dos condiscípulos, porque era, do seu natural, comunicativo e conversador, consumia, entretanto, na leitura o melhor do seu tempo. Emerson detestava os livros medíocres e os livros tristes. Assim Lafayette. A par com a Jurisprudência, em que foi o primeiro da sua turma, a Filosofia e as musas helênicas e latinas absorviam as suas horas tranqüilas de meditação e recolhimento. No idealismo do Platão, o pensador prodigioso que sintetiza o gênio grego, aprendeu a fé no império absoluto da razão humana, criadora da sabedoria. Aristóteles, na sua eterna concepção, descortinou-lhe os primeiros segredos da ciência do Raciocínio. Logo depois, empolga-o, nas suas tenazes poderosas, o monstro de Koenigsberg, o maior apóstolo do racionalismo, de cujo sistema filosófico decorrem muitos dos princípios que impulsionam o pensamento moderno.
Na madureza dos anos, Lafayette não resistiu às correntes inovadoras que revolucionaram as teorias jurídicas; o método de Kant continuou, porém, a dominar a evolução do seu espírito. Os historiadores e os poetas gregos e latinos inundaram de luz e de harmonia a sua inteligência, sedenta de perfeição. A antiguidade clássica, que, na frase de Charles Blanc, “humanizou o divino”, embebida de razão e de beleza, de serenidade e de graça, impregnada de gosto puro e do instinto da moderação e da sobriedade, criou o seu estilo, de incisiva brevidade, de energia concisa e de luminosa clareza, a que o trato dos melhores mestres da nossa língua imprimiu um vivo sabor de vernaculidade. De Plutarco e de Tácito, de Teócrito e de Propércio, de Anacreonte e de Ovídio, de Marcial, de Catulo, de Juvenal, proveio a sua ironia, ora cruel e mordente, ora sutil e suave, tocada de uns laivos de ceticismo. “A ironia”, adverte Paulhan, “é uma condição de equilíbrio e de sabedoria.” A ironia de Lafayette consistiu a essência da sua atitude, em contraste com os erros e vícios da sua época.
Tal foi, senhores, depois de cinco anos de uma vida de reflexão e de estudo, a opulenta provisão mental com que Lafayette deixou os bancos da academia, aos vinte e quatro anos da sua idade. Alma estóica, pensamento alto e puro, costumes austeros, sensibilidade tímida, elevada distinção e primorosa polidez, tais os traços mais salientes da sua estrutura moral.
Ao cabo de breve estágio no ministério público de Ouro Preto, veio Lafayette de mudança para a corte, como então se costumava designar esta capital, residência do imperante, e aqui se entregou à profissão da advocacia, começando a exercê-la no escritório do sábio jurisconsulto Teixeira de Freitas. Foi isto em 1858. Logo no ano seguinte estreou-se na imprensa política. A conciliação dos partidos, criada pelo pulso forte do Marquês de Paraná, “época sem fisionomia, sem emoções, sem crenças”, no dizer insuspeito de Sales Torres Homem, tocava o seu termo. Nabuco de Araújo, que se tinha desligado do gabinete Abaeté, explicava ao Senado o seu isolamento, morta a política da conciliação e triunfante a oligarquia conservadora: “Dividi os partidos”, dizia ele, “e eu ficarei no meu posto de conservação e progresso; antes quero, como Lamartine, estar isolado, que confundido em uma época como esta.”
Francisco Otaviano, munido da sua aljava de ouro, desferia do Correio Mercantil setas candentes contra “os conservadores, que apenas se conservavam a si próprios”, contra “as patrulhas sem bandeiras, sem chefes e sem princípios”, e reclamava o governo do país para os moços, para a força real de uma geração esquecida e inutilizada: “Os homens novos, – eis aí principalmente o nosso credo, eis aí a nossa fé.” É nesta situação que o espírito liberal do país desperta do seu torpor. Lafayette, Flávio Farnese e Bernardo Guimarães fundam A Atualidade, abrindo acesa campanha contra a Conciliação. O jornal tinha quatro páginas, publicava-se duas vezes por semana, falhando de tempos a tempos e justificando as faltas, com deliciosa ingenuidade, pela ausência de seus redatores, sempre que saíam a pleitear as suas malogradas candidaturas. Não trazia serviço telegráfico, nem a informação abundante dos nossos dias. Raros e pequenos anúncios. Os mais freqüentes, e por certo os mais baratos, eram os que indicavam os escritórios de advocacia de Lafayette e Flávio Farnese e os volumes de versos de Bernardo Guimarães, proprietário da Empresa. Foi a primeira folha que nesta cidade se vendeu avulsa na rua, encarregando-se desse mister algumas dezenas de escravos, alugados a um negociante da Rua dos Arcos. O prestígio do jornal estava concentrado no artigo de fundo.
Era o porta-voz do partido dos novos obediente à palavra de Teófilo Ottoni, o grande radical, que da Sentinela do Serro fizera outrora o reduto dos ideais democráticos. Os artigos de Lafayette, a quem o Conselheiro Junqueira apelidara “belo astro de luz”, primavam pela precisão, viveza e elegância. Já por aquele tempo sorria a sua malícia através da sonoridade fina e da graça rutilante de algum verso de La Fontaine. Flávio Farnese, tão cedo roubado à vida, tinha as virtudes cívicas e os arrebatamentos romanescos de Latour d’Auvergne. Bernardo Guimarães, mais poeta que político, era o redator literário da folha. Aos três se juntou depois Pedro Luís, com o seu grande alento liberal, poeta e artista, que a todos fascinava com a pompa e as galas dos seus versos e com o encanto da sua figura. Ficou célebre a sua poesia “A Sombra de Tiradentes”, que ele teve o arrojo de mandar distribuir no Rocio, ao inaugurar-se a estátua do primeiro imperador.
Contra a folha radical, que se batia pela realidade do sistema representativo, pela emancipação do Parlamento e pela descentralização administrativa das províncias, surgia no Regenerador a pena formidável de Justiniano, sem contestação, o mais completo jornalista do tempo. José Maria do Amaral tinha a flama, a elevação e a sinceridade de um Armand Carrel; Francisco Otaviano a todos excedia nos primores da linguagem e no colorido da frase; mas a Justiniano é que cabia a realeza nas pugnas da imprensa. “A sua facilidade de composição”, atesta o vosso saudoso confrade Salvador de Mendonça nas Coisas do Meu Tempo, “era quase miraculosa.” “Escrevia em todo e qualquer lugar, a toda e qualquer hora do dia ou da noite, em casa, na Câmara dos Deputados, no teatro, sobre as costas de uma cadeira, sobre a perna, em um peitoril de janela, no silêncio do gabinete, na sua varanda, no meio do chilrear dos pássaros e das correrias e barulho das crianças. Dizia Otaviano que quando Justiniano acordava de manhã, a primeira coisa que fazia era ver onde havia deixado a pena na véspera, e não garantia que não escrevesse enquanto dormia.”
A imprensa política deve a Justiniano as suas páginas de mais forte relevo e de ressonância mais vibrante. O seu estilo, de que deixou notável modelo no panfleto – Ação, Reação, Transação, é cerrado e terso, travado de uma dialética vigorosa. Como Otaviano, seu êmulo, dava o exemplo da cortesia e da urbanidade nas polêmicas dos jornais. Só uma vez se bateram os dois, num duelo estranho e original. Foi à mesa de Nabuco de Araújo. Escutai a narrativa dessa peleja, como a fez Salvador de Mendonça:
“O Conselheiro Nabuco pôs à cabeceira e na presidência da mesa o Marquês de Abrantes, como juiz único do duelo ajustado. Tinha à direita Justiniano e Otaviano à esquerda. Depois de declarar que as condições do duelo eram comerem os contendores segundo as maneiras civilizadas, depressa ou devagar, mas ficando como vencedor quem mais comesse, bateu palmas e iniciou-se o combate. Os dois gastrônomos, conhecidos nesse tempo como os dois melhores garfos do Rio de Janeiro, começaram por algumas generosas fatias de presunto com pão e salada, regadas com algum vinho branco; em seguida demoliram cada um a sua mayonnaise de peixe, passaram ambos a devorar cada qual a sua perdiz trufada, depois uma boa libra de roastbeef, dois perus de forno e respectivos recheios de farofa, azeitonas e ovos duros, com tal bravura que os circundantes já olhavam com terror para os combatentes, e um dos copeiros já afirmava o peso do alimento ingerido por cada um deles em mais de sete libras. Passaram aos doces, e quando atacaram conjuntamente um grande prato de desmamadas, Justiniano colhia-as com tal presteza que Otaviano disparou a rir até o ponto de não poder continuar o duelo; e, voltando-se para Justiniano, disse-lhe: – “Rocha, você já viu a última gravura de Gargântua, quando o padeiro lhe mete uma empada na boca com a pá? Você já não come desmamadas, enforna-as!!” E tomando uma taça de champagne, e bebendo à saúde do contendor, deu-se por vencido. O Marquês de Abrantes proclamou vencedor a Justiniano, declarando haver ficado ali bem comprovada a sua maior capacidade.”
Dois dias depois um dos filhos de Justiniano José da Rocha contou a Salvador de Mendonça que, ao voltarem de carro para a casa, finda a função, o pai, que ainda tirara da mesa um jacu, para o almoço do dia seguinte, pelas alturas do chafariz do Lagarto deitara-lhe fora os ossos, por tê-lo liquidado em caminho.
Nas eleições de 1860 triunfam os liberais. Abre-se uma era de esperanças e renascimento. “A nação”, escrevia Lafayette no Diário do Povo, “sacudiu o manto, coberto de poeira, de um longo quietismo. Rompeu-se o círculo funesto da Conciliação; os partidos demarcaram os seus campos.” No meio da agitação democrática, que caracteriza essa época, levanta-se, de improviso, a voz de um novo paladino da regeneração social e econômica do Brasil. As “Cartas do Solitário”, publicadas no Correio Mercantil, denunciando os vícios da centralização e discutindo os problemas mais palpitantes, de que dependia o progresso do país, causaram enorme sensação entre liberais e conservadores. Guardou-se por algum tempo o segredo da sua autoria, atribuída a alguns dos chefes políticos de maior prestígio. Soube-se finalmente quem era o Solitário. Era um moço, que valia por uma legião: Aureliano Cândido Tavares Bastos.
Soara, afinal, a hora da mocidade. Não contava Lafayette trinta anos quando lhe confiou o gabinete Zacarias a presidência da província do Ceará, em 1864. No ano seguinte passou a presidir o Maranhão, e nessa comissão administrativa se manteve por mais de um ano. Regressando à Corte, abstém-se por largo tempo de intervir na política, repartindo a sua atividade entre os trabalhos da advocacia e os seus estudos prediletos. É o período fecundo da elaboração do seu primeiro livro, Direitos de Família, que dá a lume em 1869. Lafayette, jurista filósofo, na maturidade do seu gênio, pesquisa os meandros escuros e confusos das fontes do nosso direito positivo à luz da razão filosófica, investiga os elementos da tradição e dos costumes no sistema inconsistente da legislação pátria, resolve as controvérsias geradas pela incerteza, pela incoerência e pelas lacunas dos textos, e apresenta-nos o quadro coordenado dos preceitos que regem as relações da família, em sínteses de uma justeza radiante, de uma força de expressão incomparável, de uma técnica perfeita. A clareza é a alma do seu estilo. A simplicidade é o reflexo da sua visão eterna.
No prefácio dos Direitos de Família confessa Lafayette que prefere os seus estudos solitários, “a glória modesta do civilista”, aos fulgores do Parlamento e do jornalismo. Teve, porém, de ceder ao influxo dos companheiros que o cercavam. O radicalismo, que A Atualidade difundira e propagara, convertia-se em aspiração republicana. Ao lado de Flávio Farnese e Saldanha Marinho, incendidos em alvoroço, de Quintino Bocaiúva e Rangel Pestana, que aprestavam as panóplias para os seus gloriosos dias de imprensa, Lafayette subscreve, em 1870, o manifesto do novo credo político e figura entre os redatores do órgão do partido – A República. Mas, pouco depois, regressa ao quieto remanso da ciência jurídica. O Direito era a sua vocação, era a sua crença, era a sua força, era o seu destino. Recomeçando o seu paciente o desvelado trabalho de indagação de crítica e de análise através do corpo informe das nossas leis, consagra largos anos ao preparo do seu segundo livro, Direito das Cousas, que faz imprimir em 1877. Com o poder penetrante das suas faculdades reflexivas, com a força disciplinadora do seu método, Lafayette vence todos os escolhos da sua grave e penosa tarefa e consegue reunir, numa construção maciça, o conjunto sistemático das disposições que concernem ao direito de propriedade, depuradas das suas imperfeições e das suas contradições e iluminadas, pelas doutrinas e pela exegese dos romancistas modernos. O Direito de Família e o Direito das Cousas, monumentos imorredoiros da nossa literatura jurídica, e que ao mesmo tempo enobrecem a nossa língua pela cristalina limpidez e pela concisão lapidar dos seus aforismos e das suas definições, elevam Lafayette ao pontificado excelso entre os nossos maiores civilistas.
Em janeiro de 1878, em pleno domínio do Partido Conservador, que desde quase dez anos permanecia no poder, o Imperador mandou chamar a São Cristóvão o chefe liberal Cansanção de Sinimbu, entregando-lhe a direção dos negócios públicos. “Estou convencido”, disse o soberano, “da oportunidade da reforma eleitoral pelo sistema da eleição direta, e entendo que procedo com lógica quando confio o desempenho desta tarefa ao Partido Liberal, que a inscreveu sempre na sua bandeira.” Sinimbu, que tinha em subido apreço os talentos de Lafayette, pôs nas suas mãos a pasta da Justiça.
Foi com grande espanto que o autor do Direito das Cousas recebeu o convite do presidente do Conselho. Arredado da política desde que deixara a presidência do Maranhão, e doutrinariamente filiado ao programa republicano, Lafayette muito hesitou antes de acudir ao apelo de Sinimbu. Venceu a sua timidez e os seus escrúpulos a idéia da reforma eleitoral. “A eleição direta”, bradava Rui Barbosa na Bahia, “murmura como lava subterrânea nas profundezas da nação inteira, e, comprimida por mão imprudente, começa a altear o solo em eminências vulcânicas.” Não pôde, porém, o gabinete Sinimbu levar a termo a sua missão reformadora. Votado o projeto na Câmara dos Deputados, rejeitou-o o Senado, dentando por terra o Governo.
Guardam os anais do Parlamento a memória da hostilidade e da rudeza com que foi tratado Lafayette pela oposição conservadora, de concerto com a dissidência liberal. Choviam sobre a sua cabeça as injúrias e os vitupérios; ululavam nos recintos da Câmara e do Senado os rancores dos que não podiam tolerar nos conselhos da coroa o republicano de 1870. Saldanha Marinho, em palavras de travo irônico, acentuava que a Coroa tinha ostensivamente consagrado o Partido Republicano, indo buscar aos seus arraiais um ministro e conselheiro de estado, a quem passou a chamar, a despeito dos protestos de Joaquim Nabuco, “o cidadão Lafayette”... A todos respondeu o ministro da Justiça na Câmara dos Deputados. Definiu Lafayette nesse discurso, com desassombrada altivez, a sua posição no ministério. É uma página memorável da nossa história política, em que se reflete a indiferença de Lafayette no tocante às formas de governo. Permiti, senhores, que eu reproduza aqui alguns tópicos dessa formidável oração:
“A minha entrada para o gabinete de 5 de janeiro é um ato que tem o cunho da mais perfeita legitimidade, porque é uma conseqüência, um corolário da minha escola pública. Eu sou, como vós sabeis, um soldado da democracia moderna. Mas, eu vos pergunto: qual é a grande aspiração, qual é o objetivo principal, qual é o voto supremo da democracia moderna? É o governo da nação pela nação, ou, como se exprime um espirituoso homem de estado da Bélgica, é o governo pelos governados, num regímen da mais vasta publicidade. Em qualquer país do mundo onde os grandes poderes, que formam o governo do Estado, se acham constituídos de modo que não se movem, não se agitam, não se exercitam senão debaixo do pensamento e da vontade da nação, aí reina a democracia. Que é democracia? Democracia é o governo do povo. Povo, na linguagem do Direito moderno, quer dizer – a nação, porque hoje não há mais castas, não há ordens; todos os cidadãos são iguais diante da lei. Eu vos posso, pois, senhores, dizer com a maior correção que a democracia transforma o governo inglês, desenvolve-se pacificamente na Itália, reina na Bélgica depois de 1830, e triunfa hoje em França. Posso dizer-vos ainda, com a mesma correção: J. Russell e Gladstone, na Inglaterra, Frère-Orban e seus amigos, na Bélgica, Rattazi e Minghetti, na Itália, são servidores da democracia, tão fiéis, e tão dignos das bênçãos da Humanidade como Franklin e Washington, nos Estados Unidos, como os modestos homens de Estado da Suíça, como Thiers, Grévy e Gambetta, em França. Os aparelhos constitucionais de que os povos se servem são, diante da alta teoria, inteiramente indiferentes, desde que eles são combinados de modo a produzir o governo da nação pela nação. É à luz destes princípios que a política e a história julgam dos homens, e é à luz destes princípios que o meu procedimento há de ser julgado. Senhores, eu acompanhei sempre com o mais vivo interesse a marcha dos acontecimentos políticos do nosso país, e no estudo desses acontecimentos se formou a convicção de que o defeito capital das nossas instituições estava no viciamento do sistema eleitoral. Com o sistema atual de eleições, a nação não pode fazer conhecer a sua vontade. Muitas vezes, eu o creio, o Poder Moderador há de ter passado por grandes torturas nos dias em que tem tido necessidade de saber onde está a vontade, qual é o pensamento da nação. De certa data, de 1870 por diante, observei com sumo prazer que começava a despontar timidamente nos espíritos mais ousados uma idéia que dia por dia ganhou terreno, e que, posso dizer, hoje conquistou todas as inteligências dos brasileiros. Refiro-me à eleição direta. No meu conceito, decretar a eleição direta, com um censo razoável, equivale a adaptar às nossas instituições um vasto aparelho que porá em comunicação a vontade, o sopro, o pensamento da nação com os grandes poderes do Estado. Este era o meu modo de ver quando, em fins de dezembro de 1877, o Partido Conservador, sucumbindo à gangrena que lhe invadira todo o organismo, desapareceu do poder. Quando, senhores, o distinto estadista a quem a Coroa confiou a árdua e gloriosa missão de iniciar a nova ordem de cousas, quando esse distinto estadista, a quem mesmo as paixões do dia, não podem negar um grande vigor de caráter, um patriotismo puro e inteligente e grandes dotes de uma razão prática, fez-me a honra de convidar para tomar parte no seu ministério, eu recusei formalmente o convite. Repugnava antes de tudo à minha índole ser ministro de Estado; eu preferia viver na sombra, entregue aos estudos de minha predileção a ter uma parte ativa na política do meu país; mas, quando esse estadista me declarou que a situação nascia para a eleição direta, que a eleição direta não só seria o pensamento capital do ministério, como era ainda a razão que determinava a sua existência, foram-se-me as hesitações, e eu aceitei uma pasta, na convicção de que não me negava a mim mesmo, mas ia pôr-me ao serviço de uma idéia, cuja realização importaria restituir à nação o governo de si mesma. Eis a razão por que tenho a honra de fazer parte do gabinete de 5 de janeiro de 1878. Direi, pois, aos ralhadores do Senado que estou no ministério porque o pensamento capital do ministério é a eleição direta, porque a eleição direta é o governo do país pelo país, porque o governo do país pelo país é a plena democracia.”
Não concluiu Lafayette o seu discurso sem uma farpazinha picante. Um senador tinha invocado, dias antes, contra o ministro da Justiça, uma máxima erradamente atribuída a Machiavello. Observou Lafayette: “Essa máxima não é a de Machiavello. Machiavello era homem de boas letras clássicas, e, pois, não exprimiria o seu pensamento em um latim tão bárbaro e incorreto.”
Em toda a sessão de 1879 teve Lafayette de arrostar os seus adversários, numa luta de freqüentes escaramuças. Afrontava os agressores com dignidade, mas sem violência e sem acrimônia. Se alguma vez empregava “as tintas mais inflamadas do pincel de Tácito”, de regra fulminava o contrário com os lampejos instantâneos da sátira, que lhe aflorava aos lábios desfeita num sorriso. A Martinho Campos, que invectivara o ministério com exaltação e veemência, revidou com estas rápidas palavras: “Pelo que me diz respeito, vendo o nobre deputado no comando desta campanha, eu me tranqüilizo, porque a trinta anos S. Excia. comanda batalhas políticas e as tem perdido todas.” Conta Sancho Pimentel que assistiu na Câmara a um incidente, que não apareceu nos anais: O mesmo Martinho Campos perguntava a Lafayette, com azeda rabugice, de que meios se servira para subir tão depressa aos conselhos da Coroa. “Subi”, redargüiu Lafayette, “montado em dois livrinhos de Direito.”
De outra feita, rudemente interpelado pelo senador Diogo Velho, em rajadas de cólera, acerca das suas convicções políticas, Lafayette repeliu a ofensa com uma simples citação latina: “Senhores, respeito este recinto, e, por única resposta ao honrado senador, limitar-me-ei a repetir-lhe este hemistíquio do poeta Aulo Pérsio: Pueri, sacer est locus, extra...” Dias depois, ou fosse que realmente lhe tivesse escapado o verso do famoso satirista, ou fosse que não lhe percebesse na ocasião o sentido, Diogo Velho voltou à carga, declarando que o ministro da Justiça começara o seu discurso em voz tão surda e havia tal sussurro na casa, que lhe não pudera ouvir senão uma ou outra palavra sem nexo. E despejou segunda fuzilaria contra Lafayette, increpando-o de trazer o barrete frígio na algibeira da casaca de ministro. Eram tão insistentes no Senado os golpes que investiam o ministro da Justiça, que Lafayette por último já os deixava sem réplica: “à tenacidade dos nobres senadores oponho a tenacidade do meu silêncio.” E pedia aos seus antagonistas que dessem outro rumo aos debates parlamentares.
“O Partido Conservador representa os direitos da tradição, os direitos da história; o Partido Liberal representa os direitos da filosofia, da razão e da liberdade humanas. A luta entre um e outro partido é conseqüência natural da antinomia de suas idéias; lutemos, pois, senhores, e lutemos com energia, com o calor das grandes convicções, porque, para cada um de nós, o partido é a pátria. Mas nessa luta, que é a luta pelo governo, o maior emprego das faculdades humanas, como dizia Guizot, substituamos o ódio pela justiça, a cólera pela paciência, a intolerância pela eqüidade, porque o ódio, a cólera e a intolerância nada ainda fizeram de grande, de sólido e de perdurável.”
Lafayette, antes de ser ministro, deputado e senador, nunca fora homem de tribuna. Fez-se, no entanto, insigne orador, desde o primeiro dia em que compareceu na Câmara para falar. A sua eloqüência tinha dois aspectos opostos: a do orador doutrinário e a do orador combatente. Quando se erguia para expor e discutir uma tese constitucional ou um problema jurídico, a trama do seu discurso estava ordenada, a unidade do raciocínio estava traçada e o rigor das fórmulas delineado, por modo que a idéia sugeria repentinamente o termo exato e o rasgo flexível da locução. Repugnava a declamação e a ênfase; abominava os artifícios da retórica impetuosa e vazia. Imperavam nas suas orações o vigor persuasivo e a profundeza dos conceitos e das sentenças. Era então o mestre exímio do Direito quem falava, e todos o ouviam num silêncio enamorado e embevecido. Rompesse, porém, na tribuna o orador combatente, rebentava nos ares, instantaneamente, com estrondo, uma tempestade.
Estalejavam os apartes e rugia um furacão de insultos. Lafayette cruzava os braços, imperturbável e sereno, e esperava que o temporal amainasse. Transmudava-se em tais momentos o orador. Tomando agora o látego impiedoso de Juvenal, agora a flexa resplendente de Horácio, destroçava os seus competidores com os sarcasmos mais amargos e os epigramas mais agudos. Mas quase sempre ria, como Fígaro ou Gavroche, e os motejos esvoaçavam, como asas de abelhas doiradas. “O riso é uma filosofia”, escreveu Eça de Queirós. “Muitas vezes o riso é uma salvação; e em política constitucional, pelo menos, o riso é uma opinião.”
Este orador anteniense nobilitou assim a tribuna parlamentar na quadra do seu maior esplendor. De feito, nunca subira tão alto, no Brasil, a eloqüência política. José Bonifácio, uma torrente de estrelas, era majestoso e olímpico. Sua palavra cristalizava todas as maravilhas e todas as vibrações da natureza. Silveira Martins, forjando raios na tribuna, era audaz, intrépido, tumultuoso e dominador. Fernandes da Cunha, desordenado e desigual, prendia o auditório na magnificência de sua imaginação portentosa. Cotegipe, polemista sagaz e ardiloso, negligente na expressão, era calmo e sóbrio, mas as suas réplicas tinham movimento, vivacidade, fluidez e realce, enfloradas pelos brincos facetos de sua graça encantadora. Ferreira Viana era estupendo de fantasia e humorismo. A sua ironia, ridente e caprichosa, de uma transparência cintilante borbotava as jóias mais imprevistas da zombaria e do paradoxo. Martinho Campos, oposicionista por temperamento, era mestre nas batalhas regimentais e tinha o privilégio dos lances extremos no embate dos partidos.
Ouro Preto ressumbrava um orgulho de grande raça, uma vontade tenaz e um sentimento inflexível da autoridade. Andrade Figueira, na sua bravura selvagem, na rigidez dos seus princípios, era sombrio e taciturno, ouriçado de arestas escabrosas. Estrearam-se por aquele tempo dois moços, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, que apareciam na Câmara com a sedução e o prestígio de conquistadores. O primeiro, adestrando-se todos os dias na tribuna, para vir a ser mais tarde o vitorioso evangelizador da abolição do escravismo, não perdia azo de relatar as suas impressões da Inglaterra e as suas recentes leituras da Revista de Edimburgo e do Times. O seu busto escultural, o timbre argentino da sua voz, a gentileza das suas maneiras completaram nele um dos nossos oradores mais perfeitos. Rui Barbosa, que logo se mediu com José Bonifácio na discussão do projeto da eleição direta, já denunciava os surtos assombrosos da sua eloqüência, predestinado a ser no futuro o gigante da tribuna, sem rival no dom divino da palavra, que ele esculpe no mármore perpétuo e reveste de um suntuoso manto de púrpura.
Na crise política de 1883, “o poder ficou no meio da rua”, na pitoresca expressão de Ferreira Viana. Com a queda do gabinete Paranaguá, e em vista da escusa de Saraiva, José Bonifácio e Sousa Dantas, o Imperador convidou Lafayette para organizar o novo ministério. Sabendo-o resolvido a recusar o convite, mandou-lhe dizer que “o país não podia ficar sem governo”. Era uma ameaça. Era a sombra dos conservadores que se desenhava no horizonte. Cedeu Lafayette, tomando o seu cargo a pasta da Fazenda, e deixando aos chefes liberais a indicação dos nomes que deviam completar o gabinete.
Lidando com os seus alfarrábios, convivendo na intimidade dos clássicos, Lafayette aborrecia a política prática, a clientela dos pretendentes, os enredos e as chicanas do comando partidário. “Nunca dirigiu a política do seu partido, nem a da sua província, nem mesmo a da sua freguesia”, notava Ferreira de Araújo, nas “Cousas políticas”, da Gazeta de Notícias. No programa, com que se apresentou às Câmaras, colocou Lafayette a questão financeira na primeira plana das suas cogitações. Vinham depois a reorganização administrativa das províncias e dos municípios, as reformas do Poder Judiciário e da instrução pública e o problema do elemento servil. Sobre este último assunto, era muito tímido e moderado, parecendo indiferente ao clamor que surdia do fundo de todas as almas.
“Vós o sabeis, a lei de 28 de setembro de 1871 organizou um mecanismo simples e eficaz, por meio de cuja ação, dentro de um prazo que não será longo, o elemento servil estará extinto em todo o império. Mas, pergunto-vos: não será possível adotar alguma medida, no sentido de auxiliar, de facilitar a ação da lei de 28 de setembro? Senhores, é esta uma questão, acerca da qual a palavra do Governo deve ser clara e precisa. O governo entende que é tempo de estabelecer, por lei geral, a localização do elemento servil nas províncias. É uma medida que tem sido adotada pelas assembléias provinciais, mas sem a necessária eficácia, porque lhes falta competência para estabelecer a conveniente sanção. Uma outra providência, que também pode ser deliberada, é a do aumento dos recursos do fundo de emancipação, como seria a criação de um imposto especial sobre o próprio elemento servil. O Governo, no entanto, lançará mão das medidas que estão em sua alçada para que as manumissões por meio do fundo de emancipação se façam com a prontidão e a correção necessárias.”
Profundou Lafayette, num seguro descortino, a situação financeira do Brasil. O relatório da sua gestão na pasta da Fazenda é uma das páginas mais lúcidas e mais sensatas que saíram daquele ministério. A sua política era a de uma ação decisiva contra o regime fatal dos déficits, pela revisão e modificação do nosso imperfeito sistema tributário, fundado nas facilidades da percepção, e pela adoção do imposto territorial, sem perturbação nem vexames da riqueza pública. Estudando, no período dos vinte exercícios anteriores, a marcha da renda e da despesa, extraiu desses algarismos argumentos irresistíveis para justificar a possibilidade de se normalizarem os orçamentos e de se deter a progressão assustadora dos empréstimos.
Recebido de boa sombra pela oposição conservadora, não tardou que Lafayette se visse de novo salteado por tremendos ataques no parlamento e na imprensa. Dois incidentes deram pretexto à luta: o assassínio de um desprezível jornalista, diretor de um semanário torpe, vazadoiro de ultrajes, onde se baldoavam nomes e reputações no mais despejado escândalo, e a exoneração do ministro da Guerra. Contra aquela pústula moral, que empestava o ambiente, irrompia de todos os lábios um brado de indignação e de revolta. Mas Lafayette se opunha a qualquer projeto de reforma da lei da imprensa, “o que importaria no desaparecimento da liberdade”. Já em 1879 se declarava insuspeito, nutrindo e anunciando semelhante convicção:
“Nestes últimos tempos, nenhum brasileiro tem sido, mais do que eu, vítima de injúrias, de calúnias, de convícios e insultos de todo gênero, da parte de certa imprensa, que substitui o talento da discussão pela perversidade da maledicência.”
A sua fórmula era a de Cavour: Non tocante la stampa!
Voltavam à tona os remoques sobre a mudança política do presidente do Conselho. Defendeu-o, pelo Jornal do Commercio, sob o pseudônimo de Salisbury, Rui Barbosa, cuja pena de jornalista se exercitava para a soberba campanha do Diário de Notícias, que tanto contribuiu para a queda do regime imperial. “Não há parvajola aí”, escrevia Salisbury, “que se não divirta com o republicanismo do senhor Lafayette. A surrada, encorreada e esfarpelada imagem do barrete frígio sorri, todas as manhãs, juvenil sempre, a esses senhores, como aos poetas de meia escudela a aurora dos dedos rosados”. E citava o caso de Charles Dilke, um dos políticos mais eminentes da Inglaterra, agredindo numa conferência pública a administração da lista civil pela rainha, e declarando-se republicano, poucos dias depois. Tanto bastou para que o seu nome fosse o pasto de todas as gazetas e se visse, na Câmara dos Comuns, coberto de impropérios, a ponto de Lord Brougham comparar aquele recinto a um viveiro de animais. “Pois bem”, conclui Salisbury, “Sir Charles Dilke, o alvo daquelas apupadas, é hoje membro do gabinete Gladstone e conselheiro da rainha. E até ao dia de hoje, não houve ainda em toda a imprensa da Inglaterra, desde o Punch até ao Times e a Quarterly Review, não houve entre quantos têm escrito livros sobre a política daquele país, quem visse nesse fato uma apostasia, uma incongruência, uma fraqueza. Por quê? Porque nos governos parlamentares, o cargo de conselheiro da coroa não é senão o de comissário do parlamento e porta-voz, perante o trono, da vontade do país na administração de si mesmo.” E depois: “Somos nós mais monarquistas do que a Inglaterra? Mas as mais francas manifestações republicanas se têm pronunciado aqui, nas duas Câmaras, sem turvar um instante a serenidade dos debates parlamentares, e no Senado, até com satisfação de conservadores. Pertence entre nós aos monarquistas o monopólio da inteligência, na apreciação dos interesses ordinários do país? Serão os republicanos cidadãos menos bons do que eles? Quem tiver a coragem de responder pela afirmativa a essas interrogações, arremesse o calhau ao Sr. Lafayette!”
A demissão do ministro da Guerra provocou violentas cenas na Câmara dos Deputados. Lafayette tinha escrito uma carta àquele ministro, dizendo-lhe que seria um ato acertado a sua retirada do Conselho. “Coube a V. Excia. uma pasta alheia aos seus estudos e hábitos; daí, força é confessar, tem resultado notável tibieza e falta de conveniente direção nos negócios da Guerra.” Era uma novidade na alta administração do país. Era uma descarga explosiva, um acesso de temeridade, que a todos encheu de pasmo. Lourenço de Albuquerque exclamava: “Duvidei de meus próprios olhos!” Ratisbona protestava que era aquilo “uma prática estranha a todos os parlamentos”. Duque-Estrada Teixeira repetia uma frase de Lafayette: “A política não tem entranhas!” Avaliando a má impressão causada por essa palavra fria, Moureira de Barros explicava a expressão de Lafayette, que devia ser tomada justamente no sentido oposto: “queria dizer que a política não se deve inspirar nem no ódio nem nas afeições, mas no interesse público, que nem sempre se pode harmonizar com os sentimentos individuais”. O ex-ministro da Guerra, invectivando furiosamente contra Lafayette, provocava-o nestes termos: “Decline V. Excia. um fato! Diga qual foi o erro que cometi!” E Lafayette atalhava: “A incapacidade não se prova com fatos.” Exacerbado o ex-ministro tornou à tribuna, injuriando atrozmente o presidente do Conselho. No dia seguinte desferia-lhe Lafayette, com uma serenidade inalterável, esta resposta cruel:
“Não quero, nem devo, responder ao discurso do honrado deputado ex-ministro da Guerra. Já manifestei o meu pensamento a seu respeito. Entendi, era juízo meu, que S. Exa. não tinha a aptidão necessária para gerir os negócios da Guerra. É juízo meu e devo governar-me pela minha cabeça. Diante deste juízo convidei o nobre deputado a retirar-se do ministério. O nobre deputado é homem de espírito cheio de vacilações e de hesitações. Muitas vezes, diante de suas hesitações, convenci-me de que era realidade, e não cousa imaginária, a hipótese de Buridan.”
Nessa tumultuosa sessão, Lafayette foi implacável e fulminante. A cada um dos que o tinham agredido na véspera, em discurso ou apartes, brindou com uma ferretoada sangrenta. Mas o farpão mais afrontoso foi destinado a um deputado da Paraíba:
“Devo ser justo e, portanto, dirigir as minhas felicitações ao ilustre representante da província da Paraíba pela grande parte que lhe coube nos sucessos da sessão anterior. S. Exa. tem o direito de reivindicar a glória dessa jornada, assim como o companheiro do leão da fábula tinha o de chamar para si a honra da caçada.
O deputado não entendeu a alusão ferina. Somente quando lhe mostraram, na fábula de La Fontaine, os dois versos, em que o asno presumido se ufana dos seus zurros:
N’ai-je pas bien servi dans cette occasion?
Dit l’âne, en se donnant tout l’honneur de la chasse,
foi que prorrompeu em trovejante desforra contra Lafayette. Convidado pelo presidente da Câmara a retirar as expressões insultuosas, retrucou: “Estou pronto a retirá-las quando o Sr. Presidente do Conselho retirar a fábula.” Afinal interveio Ferreira Viana, declarando que por sua autoridade própria retirava a fábula e a frase do deputado. E o incidente terminou em boa paz.
Tinha Lafayette o hábito original de simular ingenuidade e candura, diante de certas interpelações da minoria. Perguntando-lhe um deputado do Ceará quando e como pretendia o Governo realizar as suas reformas sobre a questão do elemento civil, respondeu: “Nesta sessão, e dentro de poucos dias, por meio de um projeto que será submetido à Câmara.” E acrescentou: “Não há outro meio de realizar reformas, que dependam de lei, senão por um projeto submetido ao Poder Legislativo.” Não houve quem não rompesse em riso, observando a fingida seriedade com que foram ditas estas palavras.
Noutra ocasião Andrade Figueira interpelou o presidente do Conselho, indagando se o Governo perfilharia o projeto da comissão, incumbida de estudar a divisão das rendas gerais e provinciais. Acudiu Lafayette:
“Darei uma resposta que ao nobre deputado talvez pareça resposta de Sganarello: pode ser que sim, pode ser que não. Pode ser que sim, se o Governo, depois de estudo refletido, se convencer de que o projeto satisfaz os interesses que se têm em vista; pode ser que não, se o Governo se convencer de que o projeto é imperfeito; em tal caso organizará outro em harmonia com as suas vistas, e este será presente ao Parlamento.”
A frase de Lafayette – pode ser que sim, pode ser que não, foi depois repetida, e até hoje se repete, como solução evasiva de escapula e arteirice, para conjurar situações embaraçadas, suspeitas ou equívocas. Foi, aliás, neste sentido que astuciosamente a proferiu o personagem de Molière, quando lhe perguntam se é ele que se chama Sganarello: “Oui et non, selon ce que vous lui voulez.” Mas a resposta de Lafayette não tem o ardil nem a malícia de Sganarello. Valeu-lhe, não obstante, por todo o resto da sua vida, e ainda depois da sua morte, a reputação de um espírito dissimulado, tortuoso e maligno. – É o homem das “soluções oblíquas”, do “pode ser que sim, pode ser que não”, de “uma vela a Deus e outra ao diabo”, dizia-se dele, a cada passo, nos jornais. Consolava-o a lição da história apontando-lhe o exemplo de Emile Ollivier, perdido para sempre por uma palavra inocente, maldosamente interpretada, e o de Guizot, a quem adversários atribuíram um conselho imoral aos seus eleitores, mutilando-lhe perversamente um discurso.
Na sessão de 3 de junho de 1884, precedendo-se à eleição de presidente da Câmara, o candidato do Governo venceu apenas por dois votos o ex-ministro da Guerra, indicado pelos diversos grupos da oposição. Poucos dias depois, uma moção contrária ao Governo era rejeitada por escassa maioria. Lafayette, convencido da inutilidade da resistência, abandonou o poder. Costumava então repetir aquele conceito do magistrado Eugène Poitou: “La politique n’est pas une science mathématique; en politique, il n’est pas toujours vrai que deux et deux fassent quatre, ni que la ligne droit soit la plus courte”, O seu governo, atormentado de freqüentes temporais no Parlamento, mereceu a Afonso Celso este comentário:
“Se o gabinete Lafayette não realizou reformas, nem legou benefícios eminentes ao país, prestou ao menos um serviço, graças à forte individualidade do seu chefe: inseriu na trivialidade dos nossos anais parlamentares alguns traços originais e artísticos.”
Em 1855 partiu Lafayette para o Chile, como enviado extraordinário e ministro plenipotenciário, em missão especial do Imperador, a quem tocava a escolha do terceiro árbitro nos tribunais mistos internacionais, incumbidos de resolver as questões resultantes da guerra do Pacífico. Os pareceres que então formulou e as sentenças que proferiu elevaram a grande altura o nome do Brasil, pelo profundo sentimento de justiça que os realçava. Diplomata e magistrado, de uma rigidez e de uma incorruptibilidade incomparáveis, Lafayette cobriu-se de glória naqueles debates solenes fazendo triunfar o direito, onde quer que ele repontasse, contra a coligação de interesses subalternos, não raro fortemente patrocinados. Nova missão diplomática lhe foi cometida, em 1889, na Conferência Internacional Americana de Washington.
Achava-se nesse posto, quando se proclamou a República. Imediatamente deixou o cargo, apesar de instado pelo novo Governo para que ele permanecesse. Estava definitivamente encerrada a sua carreira política. Fiel ao Imperador exilado, de quem se fizera amigo, e cujas nobres qualidades sempre engrandeceu, Lafayette absteve-se de qualquer solidariedade com o novo regimen. Tendo-lhe alguém perguntado por que não intervinha na organização das novas instituições, objetou:
“Regimens novos requerem a direção de homens novos. Veja o exemplo do Conselheiro Saraiva, o chefe liberal de maior prestígio no Segundo Império... Foi deputado à constituinte republicana. Apresentou uma infinidade de emendas ao projeto de constituição, e viu-as quase todas, se não todas, rejeitadas pelos cadetes da Republica!”
Era Lafayette um conversador adorável, cheio de fantasia e de graça, nutrido de fatos, de anedotas e de reminiscências históricas e literárias, zombeteando, em comentários repentinos e improvisos burlescos, a propósito os erros e ridículos do seu tempo. Não poupava, nas suas palestras encantadoras, os homens e as cousas da Republica. Em novembro de 1904, militares da escola da Praia Vermelha sublevaram-se contra o Governo. Partiram em demanda da cidade, mas, pouco depois, se detiveram, esperando o combate. A autoridade organizou a resistência e enviou contra os rebeldes tropas fiéis.
Encontraram-se às escuras, na Rua da Passagem: tiroteio, feridos de um e de outro lado, e, sem mais, recuo e debandada, cada qual no sentido em que viera, com a convicção de ter sido batido. Et le combat cessa, faute de combattants... Comentava-se depois o fato, diante de Lafayette. O terrível ironista advertiu:
“Era de esperar... Não faz muito tempo, logo que se fechava o meu portão e era solto o meu cão de guarda, deu outro canzarrão da rua em vir provocá-lo. Depois de latidos, que seriam insultos, iam às vias de fato, através da grade, sem conseqüência, porque estavam protegidos. Isto noites seguidas, sem me deixarem paz para o estudo ou para o sono. Por mais que chamasse a um e enxotasse o outro, livres, os bichos volviam a ladrar e arremeter furiosos... contra o gradil. Exasperado, uma noite, mandei abrir o portão... Diabos! que se estrafeguem!... Os dois cães viraram as costas um ao outro, correndo cada qual para a sua banda...”
Lafayette não confiava na solidez do regímen republicano. Acreditava que a nação, cansada dos erros da República, seria levada a restaurar subitamente o Império: “Um dia a gente encontra na rua o carro do Estado abandonado. É só trepar a boléia e fazê-lo andar.” Quando foi da conspiração monarquista, em 1900, escreveu linhas a Andrade Figueira, preso e submetido a processo:
“Conspirar? Para quê e contra quem? Sêneca dizia que é de estulto tentar contra a vida do moribundo. É querer alcançar pela violência o que a natureza, cedendo à necessidade de suas leis, vai, dentro em pouco, dar de graça. O animal está morrendo de inanido. Lembra, na frase do orador antigo, um burro a devorar a própria cauda.”
Assegura-se, todavia, que Lafayette, não desmentindo a sua aversão à República, entrou em conspirações contra ela. O brilhante jornalista das Cartas sem Título dizia numa das suas crônicas:
“Houve quem regulasse as fases de inquietação ou de tranqüilidade política do país pelo paradeiro de Lafayette. Nos dias em que os boatos fervilhavam, os boateiros, para avigorarem as suas informações sinistras, cochichavam-nos com segurança: O Lafayette já foi para Minas. Toda a vez que eu o via aqui no Rio, tinha uma doce sensação de paz e sossego.”
A ser isto verdade, pode dizer-se que Lafayette aproveitou com a lição de 1870. Conta-se que, em 1870, Quintino Bocaiúva remeteu a Emílio Castelar o manifesto republicano de 3 de dezembro. O grande tribuno respondeu com os votos mais fervorosos pelo êxito daquela propaganda política, prometendo auxiliá-la na pessoa de um cidadão espanhol, “muito entendido no mister de organizar partidos revolucionários”. Meses depois aqui apareceu, com efeito, o empreiteiro de revoluções, garantindo a subversão do regímen imperial dentro de dois anos. Inquirido acerca dos seus planos, começou por dizer que a primeira cousa em que se deve pensar, quando se prepara uma revolução, é nos meios de fugir, – en los medios de escape.
Constituiu-se uma conjuração em sociedade secreta, a Sociedade do Sacrifício (assim chamada porque os arrependidos se obrigavam ao suicídio), e criou-se um distintivo, que consistia num alfinete de gravata em forma de punhal, para que mutuamente se reconhecessem os conspiradores. Começavam estes os seus trabalhos quando lhes deu caça o famoso chefe de polícia Ludgero Gonçalves da Silva, desconfiado de tantos punhais, espetados em gravatas, que apareceram na cidade. Aturdidos os conjurados, dois dentre eles, Aristides Lobo e Salvador de Mendonça, foram procurar o espanhol na pensão em que morava. Tinha fugido na véspera, rumo da Europa, a bordo de um paquete inglês!
Nos lazeres que lhe deixava uma vasta clientela, que de todos os pontos do país disputava seus luminosos pareceres, parcamente retribuídos, mas que, quase sempre, influíam na decisão de importantes e avultadas questões patrimoniais, Lafayette não descurava os estudos literários e jurídicos.
Em 1899 aparece o seu livro Vindiciae, em que se revela um vigoroso polemista, profundamente versado na filosofia do direito e na história literária. Foi desapiedado contra Sílvio Romero, que, em 1883, nos Ensaios de Crítica Parlamentar, o tinha crivado de injustos baldões, chamando-lhe “mediocridade feliz”, de idéias “vesgas e aleijadas”, e “alfarrabista jurídico, sem filosofia, sem sistema e sem senso crítico”. Este volumezinho de duzentas e cinqüenta páginas é uma essência concentrada de finíssima ironia e de sarcasmo corrosivo, de envolta com uma secreta e maravilhosa intuição da crítica, em períodos vivazes, nervosos, cortantes, vestidos numa locução aprimorada e castiça. Kantiano obstinado, Lafayette pulveriza, em páginas magistrais, o monismo atribuído por Sílvio Romero “ao maior gênio da Filosofia” e a filiação, por ele imaginada, entre o sistema filosófico de Spencer e o kantismo.
O capítulo em que defende Machado de Assis das increpações do célebre crítico, é um modelo de apurado gosto e de penetrante percepção estética. Poucos anos depois vem a lume os Princípios de Direito Internacional, em cujo prefácio Lafayette reivindica os direitos das nações fracas, embora se mostre desalentado em face do triunfo crescente da prepotência dos fortes:
“Diante deste espetáculo, que serve de transição do século dezenove para o século vinte, compor e publicar um livro de Direito Internacional e invocar a moral e o direito como as regras supremas das relações de nação a nação, pode parecer uma ironia ou uma ingenuidade, como a de Sêneca, escrevendo para Nero o tratado De Clementia.”
E conclui melancolicamente que dia virá, talvez, em que os povos, grandes e pequenos, compreendam que o respeito ao direito não é só um dever, senão também a condição necessária para a paz. “Estará longe esse dia? Ele virá certamente, embora, talvez, a distância que o separa de nós só possa ser medida pelos algarismos da cronologia geológica.”
No refúgio solitário da meditação e do estudo, na sua chácara da Gávea, entre o mar e a montanha, à sombra das suas árvores queridas ouvindo o sussurro da corrente que derivava a poucos passos da sua biblioteca, viveu Lafayette os seus derradeiros dias. A sua livraria ficava em um pavilhão separado da casa da morada, e para lá se dirigia, calçado de botas de cano, quando havia lama no jardim. Foi a leitura a única distração da sua velhice, e Montaigne, engenho irmão do seu, o último companheiro do seu espírito, que o deleitava com as confidências de moralista desencantado, de cético enternecido e sorridente, nesse livro imortal dos Ensaios, breviário da sabedoria antiga, em que se mostra o grande pensador “sans étude et artifice”, “tel sur le papier qu’à la bouche”.
Seria preciso ver Lafayette na intimidade do seu lar, desprendido de ambições e vaidades mundanas, simples, modesto, recolhido, afetuoso e meigo, sorvendo os seus intermináveis cigarros de fumo de rolo e marcando as suas leituras interrompidas com fragmentos de palha de milho, e subindo todas as manhãs ao alto da montanha para saudar o sol e contemplar longamente o mistério infinito do oceano, para avaliar a injustiça e a dureza dos que proclamaram a suposta malignidade do seu caráter.
Chamaram-lhe “animal de sangue frio”, a ele, que tinha a mais delicada sensibilidade! “L’humanité est comme une mêlée de masques” – escreveu Jules Lemaître. A frieza da máscara de Lafayette ocultava aos outros os tesouros da sua alma peregrina. Quando o injuriavam na imprensa, taxando-o de perverso e mau, sua esposa, revoltada, pedia-lhe que se defendesse. E Lafayette, com um encolher de ombros: “Ninguém me conhece!”
A 29 de janeiro de 1917 veio buscá-lo a morte. Desapareceu como um deus proscrito, no meio da confusão contemporânea, entre o esquecimento de uns e a indiferença de outros... Mas, senhores, recordando a palavra de Romain Rolland – “Il y a des morts qui sont plus vivants que les vivants”, podemos dizer que Lafayette ressuscitará para a sua glória na sagração das gerações futuras, porque amou o Direito, que é o terno símbolo do Poder, na frase de Carlyle, e amou a Beleza, no mundo radiante do pensamento e do sonho!