LÍNGUA E REALIDADE SOCIAL
O tema que nos reúne é a “expansão da língua”. Suspeito, aí, que a língua é nossa, a portuguesa, e a expansão é a que houve, está havendo e poderá ainda haver. Como estamos entre nós, é possível que a variedade ou variante brasileira seja privilegiada nas considerações seguintes.
Mas meu tema é a língua e a realidade social, a que está fora dela, digamos assim, e a que nela, língua, se manifesta.
Importa-nos assim considerar primeiro alguns aspectos da realidade social. Façamos isso num retrospecto rápido - uma diacronia da sociedade, uma história da sociedade naquilo que creio ser relevante para os nossos fins.
Não se trata de tentar sintetizar uma história - externa e interna - da língua portuguesa no Brasil e a formação da variedade brasileira ou variedades brasileiras, estudo esse que, se de conjunto, depois de Serafim Silva Neto e Sílvio Edmundo Elia, continua em aberto, tão grandes são as novas exigências postuladas por semelhante empreendimento, ante o que se está agora fazendo em termos de dialectologia, de etnolinguística e de sociolinguística - para ficarmos nelas. É de crer mesmo que convirá um compasso de espera para que possamos amealhar mais material empírico daquelas procedências, sem contar o muito que está ainda por fazer, a saber, o crivo da documentação (lato sensu) histórica disponível e sua interpretação, como achegas relevantes da história externa e interna da língua no Brasil.
A realidade social em que se insere a língua portuguesa nas plagas brasílicas é a realidade de um ecúmeno sui generis no continente americano. Marginal, necessariamente, para a cultura conquistadora, tecnologicamente muito mais poderosa, sequiosa de mercancia e mercantilismo, ocidentalmente cobiçosa e cristãmente ambígua no querer e fazer, a cultura indígena era das mais atrasadas do mundo (e no continente americano só os extintos patagões rivalizariam com ela nesse particular): os brasílicos vivíamos (primeira pessoa do plural de empatia...), os brasílicos vivíamos em estádios culturais compreendidos entre o meio-fim do paleolítico e o meio-início do neolítico, quer em culturas de coleta, quer em culturas agrícolas semi-sedentárias. Em ambos os casos, exigiam-se extensos territórios para cada nação, que, decorrentemente, era de baixa demografia. Não sabemos quantos eram os brasílicos ao tempo do chamado descobrimento e no primeiro século - mas suspeitamos que entre 4,5 e 2,5 milhões, a densidade possível de gente para a rentabilidade possível da terra, baixa ante a atingida em terras europeias, asiáticas, africanas e mesmo americanas do Pacífico, América Central e do Norte. Sob o risco de cairmos em esquematizações excessivas, é lícito dizer que já pelo século XIX se cria que os nossos indígenas pertenciam, numa classificação linguística genealógica, a poucos troncos, a que se filiavam algumas centenas de línguas, correspondentes a alguns milhares de tribos ou nações: afinidades étnicas e linguísticas permitiriam em certos casos federações e confederações, desde Anchieta, o que leva a supor um maior ou menor grau de intercomunicação entre certos grupos: tratar-se-ia, sob certo aspecto, de uma região de humanidade recente - 8 a 10 milênios - em que se dera uma progressiva diferenciação linguística, com incipientes processos, hoje obscuros, de unificação, logo seguida de diferenciação (o que parece ser o caso do chamado tupi).
Essa divisão horizontal, porque eminentemente territorial, admite pensar, paralelamente, que pequenas ou quase inexistentes eram, em cada nação, as segmentações verticais - pois salvo segmentos sociais ocasionais por sexo ou por idade, sobretudo em ritos de trânsito ou de iniciação, ou em práticas religiosas ou hedonísticas, a vida era de participação muito comunitária, nada permitindo supor que a precária divisão de tarefas, sempre colegiadas, pudesse ser base de uma divisão em classes sociais e decorrente especializado dialetal de usos linguísticos. A divisão horizontal por separação tribal para facilitar a produção de bens e a reprodução do grupo devia ter sido o caminho rápido para a diferenciação linguística e a emergência de novas línguas.
Assim, pois, é admissível pensar nuns primeiros momentos da colonização em que a população brasílica está entre os dois extremos de 4,5 e 2,5 milhões de indígenas, que deviam, de fato, falar entre 2 - 1,5 mil línguas, em grande número de casos com intercomunicação através dos línguas, sempre existentes em situação de paz ou conflito, quando a partição territorial deve ser permanentemente vigiada e negociada: a técnica de produção brasílica supunha, para todos, áreas imensas de pousio, para equilíbrio da natureza, hoje diríamos para reequilibração ou reciclagem ecológica.
A intromissão do luso foi catastrófica para esse tipo de estrutura social. Todo um conjunto de superioridades era próprio ao português as técnicas em geral, em particular as de guerra, e as econômicas e de relação de produção, pois buscavam o que desse - produto, coleta, espólio, butim ou rapina - para o escambo com o ultramar e o entesouramento, desejado de início para o retorno à metrópole, quando o conquistador não é o degredado ad vitam.
A partir do momento em que o conquistador busca ser proprietário de terra, já pelos fins do século XVI, duas consequências disso se positivam: a mão de obra nativa preada e baixada, se revela progressivamente rebelde e, assim, inepta, impondo a experiência já conhecida da mão de obra negra, como necessidade paralela com a crescente usurpação ou redução dos territórios dos nativos. Noutros termos, entradas e depois bandeiras - eufemismos para caça ao nativo ou expulsão do nativo rebelde - foram reduzindo os territórios dos indígenas, obrigando-os, ipso facto, ou a deixarem de ser índios, extinguindo-se, ou a deixarem de ser índios, aculturando-se. Já então se instituíra a prática de comer: os índios, quando possível (quase nunca o foi) comiam os lusos antropofágica e vindicativamente; os lusos as comiam, figurativa mas fecundantemente, iniciando a funda miscigenação. Com os negros, porém, na medida que diminuíam em número nações e línguas indígenas, por etnocídio ou por unificação indígena para a resistência, a prática de afastamento dos co-étnicos, colinguageiros e cofamiliares, prática sistemática que lhes quebrava a resistência ao opróbrio e a própria identidade, que só a língua lhes podia dar a fundo prática que só não se manteve adentro da primeira metade do século XIX, nas antevésperas da interrupção do tráfico, período em que a importação das peças foi tão maciça que não houve como separar tais peças por aqueles critérios - o que é uma da chaves para a compreensão dos levantes negros urbanos sangrentos da época.
O caldeamento - vá o termo sem conotação técnica -, o caldeamento linguístico deve ter sido enorme. Se os dados iniciais, com relação aos índios, são aproximativamente os referidos acima (4,5 a 2,5 milhões), para com os negros são outros. Pesquisas recentes no Centre National de la Recherche Scientifique, na França, permitem presumir hoje em dia que, até a extinção do tráfico, o Brasil importou entre 3,5 a 3,8 milhões de negros, enquanto os futuros Estados Unidos da América importaram 800 mil, não mais: a proteção das peças escravas, seu rendimento máximo, não se fez nas plagas conquistadas pelos anglo-saxões sem levar em altíssima conta que se tratava de gado precioso, cujas crias puras eram também preciosas, donde um resguardo cuidoso de sua vida média, sem torpezas brutas, pois mais barato era cultivá-las que comprá-las. No Brasil malgrado idealizações luso-tropicalescas a vida média do negro foi baixíssima, e sua sustentação onerosíssima, se comparada com o preço das peças novas: houve, assim, aqui, dilapidação desse instrumento, com algumas características interessantes, por exemplo, o largo uso das fêmeas para todos os fins de fêmeas, desde os acidentalmente reprodutivos (com enorme mortalidade infantil) até os prostibulares para rendimento dos seus, delas, proprietários.
Salvo nos quilombos - alguns dos quais chegaram aos dias de hoje já abertos a todos - onde falares negros e prováveis línguas francas se terão desenvolvido, não é lícito supor que outras influências negras se desenvolveram, pelo menos linguisticamente: os escravos, em particular as escravas, domésticos, solitários étnica e linguisticamente, terão tido influências afetivas, sentimentais, conteudísticas e, acaso - e quando estaremos a esse respeito em condições de negar ou afirmar? - e acaso, repito, adstratais. No auge da concentração africana, ademais coesa, adentro (como disse) da primeira metade do século XIX, as línguas africanas - sobretudo um possível nagô, franco - já se defrontavam com a língua portuguesa em situação majoritária, relativa e absolutamente: por relativo, quer-se dizer que no cotejo de cada grupo linguístico, numa região ou local “civilizado”, brasileiro, a língua portuguesa em situação majoritária, relativa e absolutamente: por relativo, quer-se dizer que no cotejo de cada grupo linguístico, numa região ou local “civilizado”, brasileiro, a língua portuguesa já era maioria, em face das outras, a franca ou geral e as localíssimas, supérstites tribais; por absoluto, na aferição total dos percentuais brasileiros de língua portuguesa, de um lado, e as outras, quaisquer, de outro.
Na luta linguageira de que o Brasil foi palco durante três séculos, o cimento comum para a vida prática cotidiana foi, em crescendo, a língua geral, disciplinada para fins da “escolarização” incipiente pela didática da catequese jesuítica, a única escolaridade institucionalizada que, com outras missões católicas, a terra teve por muitas décadas.
Quando, na segunda metade do século XVIII, a Coroa dispõe que os papéis oficiais e as relações no Brasil só se fizessem em língua portuguesa, o que espanta é a visão política: língua outra não teria o favor do rei, não teria a favor do Estado. Mas que língua outra - se escrita - seria essa? Latim, espanhol, francês, holandês? Ou as sós seis cartas em língua escritas em caracteres latinos por escriba de Filipe Camarão para congraçamento indígena conta batavos?
Antes da Independência, um evento capital para a língua portuguesa no Brasil foi o recebimento repentino de 16-18 mil portugueses, de fala “moderna”, isto é, com traços foneticamente inovadores mas metropolitanos, na capital do vice-reino, a cidade do Rio de Janeiro, que logo passava a capital do reino por curto período: essa população adventícia dobrou a população da cidade e sua periferia, fazendo que a intercomunicação só se fizesse avassaladoramente através da língua portuguesa “modernizada”, alastrando-se tais características modernizantes pela província do Rio de Janeiro, pelo litoral norte acima, pelo litoral sul abaixo até a baixada e o porto de Santos.
A crítica recíproca dos brasileiros entre si - quanto à “beleza” e à “correção” de seus falares - desde os inícios do século XIX documentada, é sintomática de duas coisas: primeiro, a dialetação horizontal já era uma realidade; segundo, a vertical na vida social brasileira era também uma realidade; terceiro, a transvertical ou trans-horizontal entre o Brasil e a Metrópole era também uma terceira realidade.
Permita-se-me um rápido comentário com relação à dialetação horizontal: quero relembrar apenas que houve épocas em que ela se explicava já por influxo indígena, já por africano, já por uma espécie de crioulização, numa até talvez língua híbrida, instável por certo bilinguismo ou multilinguismo incompleto, tese a que se opõe a de dialetação endógena, românica - qualquer fato dialetal do português do Brasil que pudesse ter paralelo com fato dialetal românico europeu e em particular peninsular ibérico e em particular português era mais bem explicado por essa via.
Com relação à dialetação vertical do português do Brasil, é mister, desde o início, admitir uma incipiente diferenciação entre a fala do luso e a fala do nascido e vivido na terra, diferenciação que a esse título tendeu a crescer. Essa tendência, aliás, tem sido objeto de inquirições de vários tipos. Com relação ao âmbito do português, Israel Revah, já na década de 1950, chamava a atenção para o fato de que, num sistema cujo foco fora para o português quinhentista e cujos ramos atuais fossem o português metropolitano, o brasileiro, o angolano, o moçambicano, o cabo-verdiano, o guineense, o macauense e o goense, estes últimos todos teriam entre si muito mais afinidade, sobretudo no vocalismo, do que cada um com o português moderno. Estematicamente, supor-se-ia um índice de alternações no português metropolitano, nestes quatro séculos, maior do que nos portugueses ultramarinos.
Devo ainda relembrar que, com relação ao julgamento de valor do português do Brasil, seja, a variante brasileira, e o português de Portugal, seja, a variante portuguesa é conveniente dizer duas coisas: primeiro, que a língua escrita para fins artísticos, e mesmo científicos e universalistas, buscou no Brasil modelar-se mesmo com o interregno de “abrasileiramento” do romantismo nos padrões portugueses; segundo, aqui mesmo, cultivamos a “consciência” (diríamos hoje a ideologia) de que os proprietários da língua eram os portugueses, cabendo-lhes a eles sós ditar o que fazer com essa coisa sua deles. No plano do dialeto literário e seu ensino, relembremos que foi com Sousa da Silveira, por 1928, que se principiou, na preceptiva, a exemplificar com autores brasileiros, é bem verdade que em maioria naqueles casos em que os brasileiros coincidiam com os portugueses...
A realidade social brasileira, do ponto de vista linguístico, mostra, ao longo do seu processo histórico, um número ponderável de traços relevantes. Referirei alguns, ao sabor de minhas - digamos - preferências.
Eis um: a luta linguística foi efetivamente popular de representantes das populações conquistadas e conquistandas, sem possível direção da classe dominante e do aparelho estatal da instrução: ironicamente, o ensino de línguas escolarizado foi o do latim ou o da língua geral. É que fomos, no essencial, uma cultura ágrafa e continuamos, agora, quase que realizando, caricaturalmente, por antecipação, o sonho ou o pesadelo ou o futurograma da “aldeia global”: transitaremos de uma cultura ágrafa iliteratada de mera comunicação interpessoal para uma cultura ágrafa paraliteratada de comunicação de massas.
Eis outro: houve um brutal hiato entre os pouquíssimos letrados que a cultura da cana e a do ouro possibilitou continuar pelo século XIX e inícios do século XX, e a grandíssima parte da população. Deixando, assim, ao deus-dará tão alto índice de intercomunicabilidade na unidade linguageira, busca-se com dificuldade uma explicação para isso: ou se contesta essa unidade linguística, apelando-se para o nosso multilinguismo ou se contesta o unilinguismo, apelando-se para a dialetação existente. Esta, porém, ainda assim, parece ser - se comparada com a do âmbito românico - de tipo histórico-social bem diferente, cuja explicação ou racionalização talvez não comporte extrapolação ou raciocínio analógico.
Língua de escravos e senhores, ou de senhores e escravos, com restrita diferenciação social ao longo do processo de transmissão do português mesmo, a unidade na extensão do território é um fato, parece um fato, que a culturalização dos inícios deste século para cá tem alterado. Há, como efeito, já hoje, uma seção da população que, além da aquisição social não instrumentada ou institucionalizada da língua como vernáculo, sofre a influência da escolaridade. Há razões para crer que essa escolaridade tem tido efeito sobre a fala culta e também “inculta” dos vários centros urbanos de relevo regional no país. Quanto à parte aberta, o vocabulário, isso é ponto pacifico. Assistimos, assim, a um tipo de linguagem que não pode ser estudado (e transmitido) sob parâmetros linguísticos “puros” nem dialetológicos estritos. A um tempo, a sociolinguística urbana e vertical e sua ação rural e horizontal deve ser acompanhada de uma sociolinguística da língua literatada, pois a ação dessa língua dos meios em que é instrumento profissional para a transmissão dela mesma ou para a comunicação de massa é no Brasil, como nas culturas complexas modernas ou modernizantes, elemento de peso cuja análise e interpretação importa cada vez mais a tal ponto que o indivíduo pode pesar no todo: um idioleto sofisticado é bem o termo - pode ser multiplicado por um, mil, um milhão de usuários passivos, que sofrerão por certo a cada vez um infinitésimo da influência eventualmente estruturável.
Restam-me perguntas:
Não estaremos pobres de instrumentação normativa?
Não devemos ter coragem de pensar numa variedade linguística nacional que se compadeça com as regionais e que convivam para o bem comum. numa variedade mais abrangente?
Entre a aristocratização da língua escrita e sua anarquização, não haverá um termo de referência democratizante que não nos lembre que há algo de podre no reino da Dinamarca?
Como criar a escolaridade que efetivamente dê conta da complexidade da aquisição da linguagem de modo criador?
Como colaborar para que a comunidade lusofônica no mundo seja uma realidade de partes reciprocamente interessadas nesse bem comum que lhes é a língua comum?
Sou - como se vê - só indagações, quase sem resposta.
Mas uma coisa eu sei: dizer-lhes muito obrigado pela atenção com que me ouviram e pela paciência que tiveram: muito obrigado.*
* Palestra no VIII Curso de Férias do Instituto de Estudos Brasileiros sobre “A expansão da língua” (Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 22, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980, p. 53-58).
(A crise de nossa língua de cultura, 1983.)