Se algumas lições a vida me deu, uma é esta: em momentos assim, é mister ser breve.
No caso, a brevidade se me impõe por muitos motivos: a riqueza da personalidade e obra do meu antecessor; o fato de que nem tudo posso ou devo dizer, a não ser a preço de volutas barrocas quase enigmáticas, que, se me saírem da boca ou da escrita por vezes, terão sido porque não soube evitá-las; a circunstância de que não quero agradecer-vos a atenção e presença com pagar-vos de uma digressão que vos venha a soar enfadonha. Entre o pecado do excesso e o pecado da carência, buscarei ficar neste, por mais leve, creio.
Com isso, quero merecer, e não desmerecer, de vós todos, desta Casa, do meu antecessor e daqueles que dignificaram a Cadeira que me concedestes por bondade vossa antes que pelos meus títulos.
Homens de seu tempo, comprometidos nos seus pensamentos e escritos, em todos os que estão enlaçados com a Cadeira 17 acredito ver sem sofisma alguns denominadores comuns: todos se puseram a serviço da Política de seu País; todos viram na Cultura nacional a sua razão maior de ser; todos agiram através de uma visão crítica do nosso meio; todos advogaram uma causa em que creram sem subterfúgios.
Em Hipólito José da Costa – o patrono – há, constante, o pensamento voltado para a sua gente, como Nação já amadurecida para a vida soberana: sua pregação nesse sentido, feita através de Jornalismo militante, é vincada pela garra de quem aspirava a ver os homens públicos do Brasil motivados pelo desejo de construir uma cultura própria, material e espiritual, que o singularizasse entre as nações. A Literatura – se teve preocupação explícita a respeito – era instrumento dessa construção.
Sílvio Romero, o primeiro ocupante, elegendo o patrono, definia-se: era o espírito inquiridor sistemático, a ânsia de coordenação mercê de crivo inclemente, o que buscava tendências e constâncias e as nutria de suas racionalizações, o que, enfim, queria feiçoar um universo mental nosso, buscando um instrumental crítico coerente de nossa expressão escrita – de nossa Literatura, vale dizer –, para que esta fosse de fato o verbo de uma Cultura.
Em Osório Duque-Estrada pode parecer insinuar-se uma primeira ruptura nos desígnios da Cadeira. Os elementos de casticismo ou purismo que informam seus critérios de ação crítica podem e devem ser aferidos na sua essencial ambiguidade: se são às vezes – vezes não raro conscientes – estreitos, por se aterem a uma visão aristocratizante dos usos da língua, enclausurados em regras que hoje já soam arbitrárias, são outras vezes – vezes não raro inconscientes – largas, no propugnarem uma língua comum que fosse vetora de um total interpsiquismo pan-brasileiro. Aspirando a uma norma, a que hoje mais do que nunca devemos aspirar, só o traía o corpo configurado dessa norma, ainda pensada em termos de possíveis proprietários originais da língua. Faltou-lhe o conceito de res communis que é uma língua, que a faz ser tanto mais minha quanto mais de todos o for – o que implicita uma tal riqueza de potencialidades, que a pertinência e competência e realização de cada um podem exprimir-se em sua mais plena individualização.
A fecunda atividade desenvolvida por Edgard Roquette-Pinto pode induzir a uma aparente separação de fins: não é, porém, difícil compreender que seu espírito atiladíssimo e seu saber exemplar se puseram, sem equívocos, a serviço da Cultura nacional, que nele teve um dos seus maiores forjadores, com patrocinar sempre pioneiramente a implantação dos meios instrumentais de Cultura e com realizar levantamentos dos materiais de culturas pretéritas brasileiras: olhando para trás e para frente, dando-se todo inteiro à ação e à pensação, dando-se como exemplo vivo, Roquette-Pinto cristalizou uma das facetas relevantes desta Cadeira 17.
Omitindo por um instante ainda a Álvaro Lins, pergunto-me que singular inspiração terá guiado o que ora vos fala ao chamar a um dos seus trabalhos Sugestões para uma Política da Língua. Seria uma como que tentativa prematura de ver-se inserido, anarmônico embora, neste posto que lhe destes?
Álvaro de Barros Lins desde cedo definiu sua verdadeira vocação: nascido em 1912, seu primeiro escrito publicado autonomamente tinha o título Universidade como Escola de Homens Públicos – grifo homens públicos –, isso em 1933; então com 20 anos, já era nele aquilo que com ele morreria, o homem público, quer dizer, o servidor da comunidade, o político. Não ignoremos que todos somos animais políticos – e a asserção, não desmentida, tem dois mil e quinhentos anos de verdade. Tendo-os, tem também dois mil e quinhentos anos de mentira. Pois que, nesse lapso de tempo, o poder tem sido sempre exercido por uma minoria de políticos, a que quase sempre tem animado espírito inverso: em lugar de servirem à comunidade, servem-se da comunidade. Álvaro Lins, no que pôde entremostrar como político, ter-se-ia sacrificado, com vistas a servir, jamais servir-se. Se as contingências do poder costumam nutrir nos homens do poder veleidades de matar em certos homens públicos sua vocação de servir à coletividade, criando figuras, ditas jurídicas, que remontam ao ostracismo, suas coerções só atingem seus fins com a morte física: até ela, acendram a vocação. Com isso – e remontando a 1937 – refiro-me a uma constância de nossa vida histórica: o golpe de Estado que nos brindou com o revelho Estado Novo afastou da arena política a Álvaro Lins.
A alternativa que se lhe ensejou então foi o Jornalismo – essa militância didático política que permite, sem vinculações mandatárias institucionalizadas, o exercício da política em outros níveis, mas para iguais fins. E se, como jornalista, lhe foi por vezes defeso praticar essa didática política, teve a segunda alternativa, que lhe dava a oportunidade de ser fiel a si mesmo: fez-se crítico literário. Mas o crítico literário foi nele a maneira possível de ser político: todas as instâncias que a vida lhe propiciou para engajar-se na Política – cultural, administrativa ou internacional –, preferiu-as a tudo o mais. E que não se traía, numa que noutra situação: em ambas, punha-se a serviço de uma política de Cultura. Em Política como em Cultura via duas realidades iguais, totalizantes, cuja expressão maior estava, talvez, no que tão amorosamente chamava Literatura.
Reiteradamente, ao longo dos muitos anos de seu exercício crítico, a conceituação de Literatura lhe revém: e a palavra com que mais se congemina seu espírito para defini-la é a de gnose. Já aí se vê quão alto punha essa forma de perquirição do homem sobre si mesmo, seu destino e a natureza, física e moral.
Quase quatro décadas, de uma vida que se cifrou a pouco mais que cinco, Álvaro Lins dedicou à Literatura. E a esta, como gnose, entendeu-a como expressão de uma Cultura, instrumento de Cultura, construção de Cultura, espelho de Cultura, motivação de Cultura – noutros termos, o ideário com que uma sociedade se insere no cosmos e se afirma, situando-se. Exigindo das obras literárias isso que hoje costuma ser dito literariedade, concebia-a por antecipação como a unidade harmônica de palavras e pensamentos, pois que estes só atingem a plenitude de eficácia interpsíquica quando vazados de tal modo em verbo que um e outro são a dupla imagem de uma essência comum.
Alçava, desse modo, a Literatura a uma forma de gnose artística – conhecer e fazer que se complementam, nenhum dos dois autonomizável, senão pelo exercício da própria análise crítica ou conceptual. Dessa unidade profunda tirava o timão com que navegava pelos riscos dos julgamentos de valor. E a tal propósito não refugiu o rótulo, às vezes contra ele brandido como labéu, de que era um crítico impressionista, subjetivo.
Com efeito, a releitura de sua extensa produção crítica revela-nos o homem identificado com os roteiros espirituais de um Sainte-Beuve, de um Croce, desses altos espíritos que se debruçam sobre a Literatura sem se sentirem para tanto obrigados a análises técnicas das estruturas literárias, no que estas têm, concomitantemente, de sons, fonemas, sílabas, vocábulos, ritmos, cadências, semas, sememas, paradigmas, sintagmas, ideias, conceitos, noções, denotações, conotações, proposições, ilações, raciocínios, conclusões, realidades, idealizações, utopias, programas, projetos, dejetos, injetos. Nenhuma teoria de níveis, nenhuma busca de funções específicas. Senhor de inteligência agílima, dono de memória singular, leitor perspicaz, antena de correntes filosóficas e estéticas de seu tempo, usava de todos os dados disponíveis para a militância de sua crítica, que ia direto ao julgamento, correndo assim todos os riscos. É que, acima de tudo, punha-se ao dispor de sua passionalidade, forma de dar-se todo inteiro. Árbitro por vezes imotivado, arrazoava com extremos de lucidez, transformando em evidência opiniões que poderiam demandar esforços de prova e contraprova. É que, como poucos entre nós, soube intuir as marés montantes, as obras emergentes, as direções tendenciais, deixando-nos, assim, um legado que perdurará, ainda que marcado pelas circunstâncias ocasionais de seus humores.
Estas explicam certos pronunciamentos amargos ou injustos. Mas quem, dentre nós, não lhe reconhecerá pelo menos a coragem de, fazendo-os, arrostar com suas conseqüências?
Consciente de que sua era a função de crítico literário, em mais de um passo de sua obra aplicou-se a distinguir o que seria Crítica Literária e Ciência da Literatura. A esta, não apenas admitia, senão que louvava, com a condição de que fosse o instrumental com que aquela pudesse, acaso, exercer sua soberania, o julgamento de valor. Que esse gênero de preocupação lhe assediava o espírito, vê-se de um sem-número de passagem de sua obra. Num plano mais geral, refiro esta nota do seu Literatura e Vida Literária: Diário e Confissões. Cito:
Como podemos distinguir Ciência e Arte, desde que ambas visam a um conhecimento do homem e da natureza? Distinguem-se pela maneira de operar no ato de conhecer e pela forma de revelar o conhecimento. Uma se exprime em “conceitos”, a outra em “imagens”. Foi Croce, sem dúvida, o filósofo que, na sua Estética, definiu com maior exatidão esta dupla finalidade: “O conhecimento tem duas formas. Ele é, ou conhecimento intuitivo, ou conhecimento lógico, conhecimento pela “fantasia”, ou conhecimento pela “inteligência”, conhecimento do “individual”, ou conhecimento do “universal”, ou das coisas “particulares”, ou das suas “relações”. Em síntese, ou é produtor de “imagens”, ou produtor de “conceitos.”
É a citação. E não vale como ocorrência incidente, confissão ocasional do dia a dia de um diário. Vale, dentro de sua obra, como um critério que lhe esteia o pensamento, senão ao longo todo de sua militância crítica, ao menos num lapso de tempo predominante. Mas, a aceitar a oposição crociana, e a aceitar os conceitos complementares de Crítica Literária e de Ciência da Literatura, como situar cada um destes dentro daquela generalização? Se a Ciência Literária, como Ciência, é produtora de conceitos, produziria a Crítica Literária imagens? Ou, ao contrário, ambas produziriam conceitos, esboroando-se assim ou a oposição crociana ou a distinção que Álvaro Lins se propunha e nos propunha?
A realidade é que esse dilema ou essa contradição não se propôs ao espírito de Álvaro Lins pela forma que enunciei.
Na seqüência de ensaios que constituem o capítulo 30 – “Crítica e Estilo” – do seu O Relógio e o Quadrante, não se há de ver apenas uma petição pro domo sua. Há aí uma honesta busca de definição, justificação, coonestação e necessitação da Crítica Literária tal como a exerceu. É com suas palavras mesmas que isso se esclarece melhor.
Cito-as, escusando-me da extensão:
A necessidade do espírito de análise e de crítica está, portanto, presente em nós, que formamos as gerações de uma “época” e que temos uma missão a cumprir e a realizar. Esta crítica que se exerce como uma tarefa e como um destino nada tem de destruidora e de negativa. Ela forma alicerces e levanta muros para futuras construções. Exerce-se num domínio realístico, e, ao mesmo tempo, objetivo. Conformista, porém, é que ela não pode ser. O ato de tudo aceitar, como o ato de tudo negar, não é um ato de crítica. É um ato de positiva ou negativa apologia, e só. O ato da crítica é aquele que completa, que retifica, que amplia. O que abre perspectivas, o que desdobra situações. O crítico que se cinge ao círculo do que ele critica está esterilizado pelo seu próprio assunto e não merece esse nome. Quando se exige de um crítico que seja também um criador, esta exigência não significa que lhe estejam a pedir que componha poemas e romances. Dentro da mais pura e mais estrita atividade crítica existe uma função criadora. A criação do crítico lhe vem da possibilidade de levantar, ao lado ou além das obras dos outros, ideias novas, direções insuspeitadas, novos elementos literários e estéticos, sugestões de bom gosto, sistematizações, esquematizações, quadros de valores. Crítica num tríplice aspecto: interpretação, sugestão, julgamento.
Contudo, os erros mais graves que a crítica cometeu não foram os de Sainte-Beuve, mas os de alguns daqueles que o substituíram, exatamente aqueles que disputavam a sua herança de “regente da Literatura”. Entre todos, Taine e Brunetière. Ambos, com finalidades diferentes, fizeram a crítica científica, isto é: a crítica que se subordina a leis, regras e normas. Ambos, consequentemente, anulavam na crítica o que ela poderia dar como gênero criador, isto é: o seu elemento de aventura da personalidade, de desdobramento pessoal, de livre caminho em extensão e profundidade.
[...] Como julgar, porém, uma obra de arte dentro de determinados métodos, dentro de regras formuladas aprioristicamente – quando ela pode, em qualquer momento, ultrapassá-los ou fugir deles?
Citei. E a pergunta final me parece a resposta básica que Álvaro Lins daria, em qualquer circunstância, ainda que sob modos ou módulos diferentes, ao dilema ou contradição que se lhe apontasse entre a vocação conceptualista da Ciência e a imagística da Arte, se aplicadas à Crítica Literária nos
seus diversos aspectos, desde os mais tecnificados aos mais libertos ou aos mais dirigidos doutrinária, ideológica ou fiosoficamente.
A realidade parece-me estar no fato de que a Crítica, como discernimento, dentro do universo que é a Literatura, tem todas as potencialidades de se desdobrar ou multiplicar em campos setoriais de conhecimento, como a Ciência ante a Natureza ou o homem ou a sociedade. E em ambos os casos dessa setorialização emerge, pendularmente, a cada época, a necessidade das sínteses, das generalizações, das filosofias. Formas de conhecimento, Literatura, Crítica e Cultura se tangenciam, constituindo uma como que a ponte entre as outras duas, mas sendo as três, globalmente, a mediação da natureza pensante sobre si mesma, em cujas contradições e antagonismos se insere, como inelutável em sociedades divididas ou cindidas ou antagonísticas, entre si ou dentro de si, sua outra face, positiva ou negativa, da Antiliteratura, da Anticrítica, da Anticultura ou Contracultura, gestadas como necessidade, não raro fecunda senão que sempre fecunda, para a construção do homem futuro.
Tive pequeno convívio pessoal com Álvaro Lins, na maioria dos casos ao sabor de nossas solicitações e urgências cotidianas. Uma feita, porém, conversamos sobre esses assuntos, para coroarmos nosso entendimento com uma proposição algo estranha, que refiro a mero título de exemplo: a obra de Machado de Assis revela um uso extremamente eficaz do estilo indireto livre ou aparente; em contrapartida, perde ela em riqueza de diálogo direto. Que motivação profunda, que motivação superficial, que motivação, em suma, teria levado o bruxo a esse tipo de estruturação de um sem-número de passagens, nos seus romances, contos, crônicas? Alguns elementos parecem convergir para a solução desse pequeno problema: de um lado, o comentário metalinguístico, tão machadiano, que se esbarraria ante a alternância de discursos diretos; de outro lado, a correção normativa das intervenções coloquiais, curtíssimas por isso mesmo, pois ante a norma preconizada ao seu tempo rara seria personagem sua que sustentaria uma extensa intervenção direta psicologicamente fiel sem os chamados erros gramaticais – e Machado não ousou a fratura que só se consagraria como recurso estilístico realista e regionalista muitos anos depois. O microcosmo do purismo atuava, assim, de uma forma despistada, na obtenção de uma das facetas estilisticamente maiores do criador. Com essa concordância de pormenor, insignificante, concordá- vamos ambos em que, a haver uma Ciência da Literatura e uma Crítica Literária, ambas se complementariam, não apenas da gramática ou gramatiquice para com o estilo, a pensação, a cosmovisão, senão que do que quer que fosse, mínimo, para o que quer que fosse, máximo. O incidente, para mim, é revelador e situador. Revela-me o Álvaro Lins aberto a todas as manifestações da análise, situa-o como o buscador de sínteses. Se não foi tudo isso a um só tempo, foi porque ninguém o pode ser.
O que buscou ser, porém, na sua crítica, foi o militante da sua verdade. E dessa militância teve nítida consciência trágica. Tão crescentemente trágica, que num dado momento – o de seus últimos anos – se ilhou na impotência de apegar-se a qualquer valor circulável, o que o levou ao mutismo compulsório de quem, a dizer, diria o que os donos de outras verdades não permitiriam dissesse.
Ante esse Álvaro Lins final, sofrido e irresignado, curvo-me reverente, com o sentimento de que algo se frustrou para nós, no ápice da maturação. Inseridos na violência, ostensiva ou larvar, os homens de hoje não sabemos como abrir-nos para os amanhãs que poderão ser cantantes.
O fato é que o nosso legado às gerações emergentes é triste, e feio, e mau. Com a agravante de que quiséramos que fosse alegre, e belo, e bom. Perdoai-me, pois, se me vem a nota amarga, num ato que se propõe festivo. Em verdade, ante a memória de Álvaro Lins, não posso furtar-me a esse sentimento de perda precoce, a esse sentido de carência, pois não vacilo em
crer que, fosse sua desventura menor, muito mais teríamos dele sobre o não pouco que nos deixou. Cedo tido por muitos como o maior dos nossos críticos literários, a mim pouco me preocupa essa exclusiva: acendra-me a certeza de que na história da Crítica Literária brasileira sua obra fica como ponto de referência necessário para que possamos saber como nos víamos a nós mesmos ao tempo de Álvaro Lins, já que seus escritos, vincados por extremo personalismo, são concomitantemente um espelho de nossas dúvidas, de nossos acertos, de nossas esperanças, de nossos erros e de nossas desesperanças.
Álvaro Lins teve o privilégio de ser o anunciador da presença no Brasil, e da permanência, de um dos nossos mais lúcidos espíritos: Otto Maria Carpeaux. Sobre este, teve ele palavras que creio, em legitimidade, poder trinta anos depois usar para com o próprio Álvaro Lins:
A certeza da inanidade da luta não significa nem desistência nem covardia. A luta, apesar de tudo, permanece como uma atitude, como uma afirmação, como um testemunho. A luta de um homem dentro do mundo independe do seu êxito ou da sua utilidade. Mesmo quando tudo estiver perdido, ficará como um exemplo, como uma semente, como um protesto.
Perdoai-me agora se vos roubo ainda dois minutos de atenção. Dois minutos aparentemente odiosos, porque sobre mim mesmo.
E falar de mim mesmo é, em mim, ainda um modo de falar de outrem. Por exemplo, do meu, do nosso Poeta Maior. Se ele, tão grande, se julga assim:
Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.
E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.
Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.
De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.
se ele, tão grande – repito –, se julga assim, que diria ou julgaria eu de mim mesmo? Sei só que a gama de minhas devoções é larga – o que me descaracteriza, pois de minhas relações cada setor me supõe um. Tartufo, que eu saiba, não sou. Nem uno, nem múltiplo. Um homem de seu povo, esse em que nasci e a que pertenço e quero servir, sem envaidecer-me de minha ascendência nem cultivar orgulho algum do que quer que seja. Salvo um: o de achar que esta vida humana devia ser digna de ser vivida por todos, sem discriminações. Com este pensamento constante, que alguém se aplique ao mais insignificante objeto, ainda assim poderá ser humano, desde que posto a serviço do homem.
Quisera agradecer a cada amigo em particular o apoio ou o desapoio de ver-me nesta Casa, para a qual entro com a esperança de poder ser útil, sem extremações maniqueístas. E, se não faço referências personalizadas, é por temor da omissão.
Fico-vos muito obrigado por vossa paciência.
27/8/1971