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Discurso de posse

Longa e rude foi a escalada, mas, afinal, vejo-me entre vós, senhores acadêmicos, dois decênios após haver iniciado em vosso salão nobre, a comemoração do oitavo centenário de Saladino.

Não posso dizer, como o pregador famoso, que seja tarde, muito tarde... A verdade é, porém, que vinte anos na exiguidade da vida humana, constituem quase uma existência. Pouco mais viviam os românticos da estirpe de Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Castro Alves.

Se já vão distantes, para mim, os dourados anos da juventude, nem por isto se me arrefeceu o propósito da elevação do nosso nível cultural, não só através de cursos, conferências, artigos e livros, mas das atitudes da própria vida. Hoje, como há vinte anos, continuo a nutrir aquele mesmo ideal de Léon Gautier, a que me referi na série de conferências que, diante da incompreensão de uns poucos, aqui interrompi em setembro de 1938, apesar de vossa desvanecedora autorização para concluí-las neste recinto de tão altas tradições:

Engrandecer as almas, subtraí-las ao mercantilismo, que as avilta e ao egoísmo que as mata, comunicando-lhes generosos entusiasmos pela Beleza ameaçada ou pela Verdade, que parece vencida. Há mais de uma espécie de Cavalaria e os grandes golpes de lança não são obrigatórios. Na falta da espada, temos a pena; na falta da pena, a palavra, e, na falta da palavra, a honra de nossa vida.

Ao me dardes acesso ao vosso convívio, devo, portanto, agradecer-vos, senhores acadêmicos, não só por mim, mas por muitos daqueles que representam o Brasil no que possui de mais puro e promissor – os moços, que ainda os há empolgados pelos mesmos ideais inspiradores dos meus primeiros empreendimentos literários e para os quais uma decisão como a vossa, no meu caso, há de constituir uma fonte do mais nobre incentivo.

E consenti que ao lado das de Laudelino Freire, Roquette-Pinto, Afrânio Peixoto, Rodrigo Octavio e Miguel Osório de Almeida, que paraninfaram aqui alguns de meus cursos e conferências, eu evoque perante vós a figura austera e amada de meu Pai. Quando, em 1942, me inscrevi na vaga de Xavier Marques, a minha candidatura foi, por assim dizer, muito mais dele do que minha, tão grande era a sua aspiração de ver-me entre vós. Embora preso ao leito pela enfermidade que dois anos mais tarde o arrebataria à vida, foi ele quem, através de cartas e telegramas a quantos amigos tinha, animou a campanha a favor do filho que com ele aprendera a língua e a Literatura de sua predileção, e com ele, já debruçado sobre a eternidade, esquadrinhava debalde os desvãos da filosofia em busca de uma solução para os torturantes problemas da origem e do fim do homem.

Em vossa ilustre Companhia apoiavam a ação de meu Pai quase todos os acadêmicos que citei e especialmente Roquette-Pinto, que, além de amigo, era meu correligionário de credo científico e filosófico. Fora da Academia, batiam-se ainda por mim, entre outros, Edmundo Bittencourt, Francisco Mendes Pimentel e O General Cândido Mariano Rondon.

Se, pois, como diz Tácito, “há um lugar para os manes dos homens virtuosos; se, como apraz aos sábios, não se extinguem com o corpo as grandes almas” – si quis piorum manibus locus, si, ut sapientibus placet, non cum corpore extinguuntur magnae animae – e se nesse “etéreo assento” “memória desta vida se consente”, acompanhando-se o que ocorre em nossa humílima esfera (consolo que, infelizmente, não me acalenta o espírito), meu Pai e os amigos que acabo de recordar, também hão de estar agradecendo-vos.

Quanto aos que comigo se solidarizaram na candidatura de que afinal resultou a minha eleição, foram eles tão numerosos que me vejo privado do prazer de mencioná-los para testemunhar-lhes de público o meu reconhecimento. Permito-me apenas destacar aquela que, prolongando, há mais de um quarto de século, os desvelos de minha inesquecível Mãe, é o anjo do meu lar e constitui, com os meus filhos, a alegria de minha vida.

A altitude desta tribuna não me faz esquecer a advertência de Pascal sobre a odiosidade do eu. Prometo-vos, pois, senhores acadêmicos, não mais falar em mim. Antes, porém, quero externar-vos a minha alegria por haverdes designado para receber-me o confrade que, et par droit de conquête et par droit de naissance, admiravelmente
continua, entre vós, as tradições literárias do Ministro Rodrigo Octavio.

Por ter sabido conservar e engrandecer o patrimônio intelectual que herdou, repetiu Rodrigo Octavio Filho, pela primeira vez no Brasil, o que, no dealbar do século XVIII, conseguiu o Duque de Coislin ao suceder, na Academia Francesa, a seu próprio pai. Ao vê-lo entre vós sinto que ainda está presente nesta Casa o companheiro de Lúcio de Mendonça, Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Olavo Bilac, Afonso Celso, Magalhães de Azeredo e demais figuras primaciais de nossas Letras que, com ele, fundaram a Academia.

ADELINO FONTOURA

Para Adelino Fontoura, patrono da Cadeira que ora venho ocupar, a Academia tem sido, sem dúvida, o seguro de vida literária, função que aos grêmios da natureza do vosso atribuía Afrânio Peixoto.

E, na verdade. Não fosse ele patrono da Cadeira 1, fundada por Luís Murat, e ninguém saberia nem mesmo da sua existência. Em vão se procurará o seu nome em várias das mais autorizadas histórias da nossa Literatura.

Nem Sílvio Romero, nem José Veríssimo, nem Ronald de Carvalho, para só citar alguns dentre os mortos, referem-se ao patrono da Cadeira 1 da Academia. Ficaria, assim, evidenciada a inanidade da divisa ad immortalitatem, que deixaria de ter sido assegurada logo ao primeiro patrono desta Casa, confirmando-se melancolicamente o que observa Latino Coelho: “muitas vezes o mundo, ao depositar na última jazida os restos do homem, a quem cingiu com a auréola de efêmeros triunfos, diz com arrogância ao túmulo: ‘Tu não apagarás o nome que ilustrou um dia as cinzas que te confio.’ E o túmulo esconde no esquecimento as cinzas e mais o nome...”

Talvez haja sido por isto que, com aquele ar simples de quem parecia incapaz de uma ironia, Afonso de Taunay, ao suceder a Luís Murat, começou o seu discurso reportando-se à Cadeira zero, ocupada, já na Academia Francesa, por “ilustríssimos desconhecidíssimos” acerca dos quais, nem à custa de fatigantes buscas em enciclopédias e dicionários literários e biográficos, nada se consegue saber. O fato é que, em sua longa peça oratória, o meu antecessor se restringiu a mencionar o nome de Adelino Fontoura sem tecer a seu respeito qualquer comentário. Mais feliz do que ele, posso cumprir, em relação ao nosso patrono, a praxe desta Casa. E faço-o graças ao crítico que, nas palavras de Nilo Bruzzi, desde a mocidade “se recolheu ao mundo do espírito e passou a criar o seu próprio universo através dos bons livros e do trabalho paciente de pesquisas intelectuais”.

Aludo – vós o sabeis – a Múcio Leão, em cujos “Autores & Livros” e em Dispersos (publicação da Academia por ele organizada e anotada) encontrei não só os informes acerca de Adelino Fontoura, mas, o que é tão ou mais importante – quase toda a sua produção literária.

Adelino Fontoura nasceu no Maranhão, em 1859, no povoado, hoje vila de Axixá, à margem esquerda do Mearim.

Por esse tempo, no apogeu da glória, ainda vivia Gonçalves Dias, a quem, de modo especial, atraía esse rio. É que, beirando as suas águas, possuía uma propriedade o Dr. Alexandre Teófilo de Carvalho Leal, ao calor de cuja amizade mais de uma vez recorreu o cantor dos Timbiras a fim de refazer-se, nesse bucólico recanto, das desilusões que lhe deparara a vida.

Nessas deliciosas paragens
“[...] as aves docemente atitam,
De ramo em ramo – docemente o bosque
A medo rumoreja –, a medo o rio
Escoa-se e murmura [...]”

e aí, mais de uma vez, em sonhos, almejaria o poeta que sua amada vestisse “as formas da neblina” e fosse

[...] nos raios trêmulos da lua
Cantar, viver e suspirar consigo...

Os pais de Adelino foram Antônio da Fontoura Chaves e D. Francisca Dias Fontoura. Depois de ter sido caixeiro em São Luís e ator em Recife, veio Adelino aos vinte anos, para o Rio, onde, segundo diz o seu amigo de infância Artur Azevedo, após trabalhar no comércio, se iniciou na imprensa, com Lopes Trovão, no jornal consagrado à propaganda republicana – O Combate. E, cessado este, não por falta de combatentes, como o do Cid, mas pura e simplesmente por falta de leitores, Ferreira de Meneses, que apreciava imensamente o jovem poeta, ofereceu-lhe um lugar na redação da Gazeta da Tarde, que acabava de fundar. Foi aí que desabrochou plenamente o incontestável talento de Adelino.

As páginas da Gazeta da Tarde e as da Gazetinha, fundada e dirigida por Artur Azevedo, são “o repositório dos seus melhores escritos em prosa e verso”.

Em O Combate de 23 de abril de 1880 publicou Adelino o terceiro capítulo de O imbróglio, romance que seria feito por vinte autores, tendo sido o primeiro capítulo escrito por Araripe Júnior, publicado em 14 de abril daquele ano, enquanto o segundo, da lavra de José do Patrocínio, saiu em 16 do mesmo mês.

João Ribeiro, que conheceu Adelino Fontoura na Gazeta da Tarde, dele traça um retrato pouco favorável: dava-lhe a impressão de “um sujeito de bom gosto nas Letras, mas ignorante e talvez presumido”. Este feitio que, em Adelino, vislumbrou o grande crítico, possivelmente decorria do orgulho do poeta maranhense, assim caracterizado por Aluísio Azevedo na secção “Tipos e Tipões” de A Gazetinha, de 21 de fevereiro de 1882:

Adelino Fontoura é o cabeçudo maior que eu conheço! Tem o coco duro e áspero dos provincianos teimosos e impertinentes! A sua cabeça redonda, grande, e de cabelo curto, não se vergaria a uma imposição de qualquer gênero, partisse ela do governo, da Igreja, da sociedade ou simplesmente, o que é mais sério, de uns labiozinhos femininos e rosados. Ele é refratário à ternura como ao elogio e às leis da etiqueta. Franco e orgulhoso. Diz abruptamente o que pensa sobre qualquer assunto ou sobre qualquer sujeito, e recusa oferecimentos de serviços, com escrúpulo de ser humilhado. Por isso algumas pessoas veem nele um bicho; outras pretendem ver um grande espírito de contradição. Eu vou com os últimos. Fontoura é um imenso espírito de contradição. Ele deixa transparecer o seu talento, porque supõe que com isso desagrada. No dia em que se convencesse que o desejavam inteligente ele se fingiria estúpido. Tudo, menos concordar com a opinião pública! Entretanto, quer ele queira, quer não queira, há de ser fatalmente um talento de primeira mão. Mas o seu talento vê uma légua adiante da sua instrução. Fontoura o que possui não vem de fora, vem de dentro. Tirem-lhe o grande espírito original, que constitui a sua individualidade artística, e ele ficará reduzido a um tipo rabugento e vulgar. Com um pouco de trabalho, poderia ser uma das rodas principais da geração antipática ao Sr. Sílvio Romero, mas Fontoura aborrece o trabalho de paciência e deixa que o talento vague a seu bel-prazer. Adora o Ramalho Ortigão e tem 23 anos incompletos. Sabe fazer versos, e, quando alguém o desagrada ele ataca seis adjetivos e oito advérbios explosivos, que atordoam o adversário. De resto, um caráter perfeito. Tem garras ferinas no estilo, mas penugens angélicas no coração. Uma mulher dificilmente o amaria, porém qualquer criança o adora.

Adelino Fontoura, que morreu tuberculoso aos 25 anos, num hospital de Lisboa, é o único patrono da Academia que não deixou nenhum livro publicado, não se podendo, assim, a não ser pelo depoimento dos que com ele conviveram, ajuizar do seu valor.

Dele ficaram, contudo, alguns sonetos que consolidam a sua reputação literária, e, entre outros o que se intitula.

CELESTE

É tão divina a mágica aparência
E a graça que ilumina o rosto dela,
Que eu concebera a imagem da inocência
Nessa criança imaculada e bela.
Peregrina do céu, pálida estrela,
Exilada da etérea transparência,
Sua origem não pode ser aquela,
Da nossa triste e mísera existência.

Tem a celeste e ingênua formosura
E a luminosa auréola, sacrossanta
De uma visão do céu, cândida e pura.

E quando os olhos para o céu levanta,
Inundados de mística doçura,
Nem parece mulher – parece santa.

Foi Adelino um daqueles poetas do último quartel do século XIX quase exclusivamente julgados através de suas qualidades pessoais, porquanto as suas obras, como frisava Miguel Couto, consistiram, sobretudo, em ditos, repentes, centelhas espalhadas ao vento... A impressão deixada por Adelino na roda boêmia que frequentou foi de tal ordem que muitos anos depois de sua morte os organizadores da Academia acharam perfeitamente cabível fazê-lo patrono da Cadeira fundada pelo vate de Ondas.

LUÍS MURAT

Parnasiano, ainda fortemente impregnado de romantismo, teve Luís Murat a pouca sorte de ser contemporâneo de quatro dos nossos maiores lapidários do verso – Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Vicente de Carvalho.

Possuidor de grande cultura, não só literária e clássica, mas filosófica, sendo seus íntimos Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes: Platão, Hesíodo, Píndaro, Shakespeare, Dante, Victor Hugo e Augusto Comte, não se contentava o cantor de “Sara” em ser poeta. Sua ambição era ser um grande poeta, como um daqueles gigantes em cujo convívio se comprazia.

Ao assinalar José Veríssimo afinidades entre o poeta de “Primaveras” e Murat, este ofendeu-se e declarou com altivez: “Não sou discípulo de Casimiro de Abreu nem de ninguém: mon verre n’est pas grand, mais je bois dans mon verre!"

Não se resignava Murat em escrever versos famosos: queria compor algo, como a Ilíada, capaz de desafiar a ação dos séculos, e, por isto, desprezava o soneto, achando que extenuava, esterilizava e desavigorava o engenho. Para ele, esse gênero de composição é o pé atrofiado pelo sapato chinês, enquanto a poesia de largo fôlego afaz-nos às grandes ideias, tornando dúctil o pensamento, expurgando as demasias e obscuridades...

Depois de aplaudir a felicidade com que M. Paulo Filho caracterizou Luís Murat chamando-lhe escultor de fragmentos, comenta Humberto de Campos:

E assim é, realmente. O que produziu reduz-se a um amontoado de pedras talhadas bruscamente, e cujo lugar na escultura ideada só ele compreendia. Ao atravessar a fronteira dos 45 anos, compreendeu o poeta a inanidade da sua aspiração. A consciência do seu erro, aliada à certeza de que trabalhara mais do que os seus companheiros de geração, pois era mais culto do que eles, tornara-o amargo, irritadiço, revoltado.

Está assim explicada a ansiedade em que Murat passou a vida e à qual alude Afonso de Taunay em seu exaustivo estudo ao sucedê-lo nesta Casa.

Diante da pequena ressonância encontrada pelos seus versos, era insopitável a mágoa de Murat, explodindo por vezes na imprensa e nos preâmbulos aos seus poemas.

Em vão, porém. Não tinham, na verdade, os seus prólogos o dom de infundir-lhe aos versos a receptividade que neles não encontrava o público, porquanto, como notava Bilac, poemas não querem prefácios. Ninguém quer saber que teoria de Arte guiou os poetas que os compuseram. Os melhores, os verdadeiros poemas são aqueles
que, animados de um calor comunicativo, transmitem a todas as almas a comoção que os criou: de modo que neles todos vão encontrar os seus próprios sentimentos, as suas próprias dores, os seus próprios sonhos.

Não penso assim – redarguia Murat depois de transcrever o juízo de Olavo Bilac. – É que – repito – supunha fossem os seus prefácios capazes de insuflar aos seus versos a vida e a palpitação que não possuíam, fazendo com que afinal viessem a ser apreciados.

Nada menos estranhável, porém, que tal se desse com o cantor de “Sara”. Mais do que os outros homens vivem os poetas, escritores e artistas atormentados pela necessidade de aplauso. Racine, por exemplo, mesmo depois de plenamente reconhecido e proclamado o seu gênio, deixava-se abater pela mais insignificante restrição, como a de Chapelle à sua tragédia Berenice. Constituíra este ruidoso triunfo sobre o velho Corneille, cuja glória começou, então, a ser decisivamente suplantada pela do impecável poeta de Britânico e Fedra. O sucesso não podia ser maior: plateias transbordantes, espectadores a se desfazerem em pranto, os mais rasgados elogios da Corte, inclusive do grande Conde, que aplicava, à própria peça dois versos que nela ouvira:

Depuis trois ans entiers chaque jour je la vois,
Et crois toujours la voir pour la première fois
.

Apesar, porém, de tamanha vitória, não se conformava Racine com o silêncio que, a respeito, mantinha Chapelle. Procurou-o, pois, a fim de que, como amigo, lhe dissesse o que pensava. Em resposta, improvisou Chapelle o dístico, que se tornou proverbial:

Marion pleure, Marion crie,
Marion veut qu’on la marie...

Foi quanto bastou para que Racine caísse em tremenda depressão, esquecendo-se de todos os aplausos e dissuadindo os filhos da carreira literária, da qual ele mesmo se retiraria em plena maturidade do gênio, isto é, aos 37 anos. No calor da composição – dizia ele –

às vezes agrada-nos o que escrevemos; mas, quando, no dia seguinte, revemos o nosso trabalho, espantamo-nos de achar detestável tudo quanto, na véspera, admirávamos; e quando consideramos que, por melhor que façamos, poderíamos ainda fazer muitíssimo melhor, ficando, entretanto, sempre longe da perfeição, desanimamos. Além disso, embora os aplausos nos agradem imensamente, a menor crítica, por mais tola, sempre nos causa um pesar maior do que o prazer proporcionado por todos os louvores.

Esse estado d'alma – a nevrose do escritor – é um dos múltiplos aspectos da dependência do indivíduo relativamente à sociedade. Quem escreve ou produz uma obra artística tem frequentemente em mira o público, e, se este lhe não aprecia os trabalhos, está prejudicado um dos objetivos que também teve em vista, não podendo deixar de sentir haver despendido esforço, muitas vezes grande, em pura perda. Daí a angústia que, em caráter quase permanente, aflige a generalidade dos escritores e artistas.

Ninguém melhor do que Descartes pode, ao lado de Racine, servir de exemplo da subordinação do escritor aos seus contemporâneos. Apesar de toda a força de gênio de que se sentia possuidor, deixa, por vezes, o filósofo transparecer, em sua correspondência, a ansiedade de quem, incompreendido, se sente abater e indaga se vale a pena prosseguir... Ao Padre Mersenne reiteradamente suplicava não deixasse de enviar-lhe tudo quanto a respeito dele e de seus escritos, vantajosa ou desfavoravelmente, se dissesse. Mesmo depois de retumbantemente acolhidos, em toda a Europa, os seus livros, declara, em 1646, a Chanut, não desejar estampar o Tratado das Paixões, e, embora ainda tivesse vontade de escrever outras obras, não o faria, porque o desgosto de ver quão poucas pessoas lhe liam os escritos, tornava negligente...

Pode-se, assim, avaliar a maldade de Voltaire para com um autor que lhe solicitou o parecer sobre um livro em via de publicação. Depois de guardá-lo algum tempo, restituiu-o, dizendo: “Li-o e até lhe mudei alguma coisa.” O autor percorreu, célere, o manuscrito, e, não encontrando nenhuma corrigenda, começou a desconfiar nem ao menos se tivesse dignado a passar-lhe os olhos o temível Proteu do talento. Advertiu-lhe este então: “Vá até ao fim.” Aí deparou, de fato, com uma modificação: o m da palavra Fim fora apagado e substituído por uma exclamação, transmudando-se em fi! que é como se disséssemos, em português, “arre!”

Se, entretanto, é um consolo, para os escritores, como Luís Murat, saberem haver sido a angústia que os atormenta participada por gênios da estatura de um Racine e de um Descartes, deve ser, para os que com eles tratam, um motivo de condescendência, pois fica, assim, evidenciado ser a susceptibilidade que os aflige superior às suas forças, fazendo parte da própria profissão, já a registrando Horácio há dois mil anos...

Luís Murat nascera nesse fecundo Estado do Rio, que tantos valores tem dado ao Brasil, não só na Política, mas nas Letras, sem ele não se podendo escrever a História de nossa Literatura, pois conta entre os seus filhos, além do poeta de Ondas, Alberto de Oliveira, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Joaquim Manuel de Macedo, Euclides da Cunha, Pedro Luís, José do Patrocínio, Domício da Gama, Teixeira de Melo, Luís Pereira Barreto, B. Lopes, Silva Jardim, Lúcio e Salvador de Mendonça, Teixeira e Souza, Miguel Lemos, Raul Pompeia, Raul de Leoni, Alberto Torres, Oliveira Viana, entre muitos outros, que formam uma verdadeira constelação de poetas, sociólogos e escritores capazes de fazer a glória de toda uma Nação.

AFONSO DE TAUNAY

Em Nossa Senhora do Desterro (que era como então se chamava a capital de Santa Catarina) nasceu, a 11 de julho de 1876, Afonso d’Escragnolle Taunay. Aí exercia as funções de governador da Província seu pai, Alfredo d’Escragnolle Taunay, que já se tornara famoso como autor de A Retirada da Laguna e de Inocência e seria, além de senador do Império, agraciado com o título de Visconde.

Muito conhecida é a progênie paterna de Afonso de Taunay, bisneto de Nicolau Antônio Taunay, paisagista de mérito que veio com a Missão Artística de 1816, e do Conde d’Escragnolle, emigrado da Revolução, a serviço de Portugal e do Brasil.

O avô paterno de Afonso de Taunay, Félix Emílio Taunay, Barão de Taunay, foi diretor da Imperial Academia de Belas-Artes e mestre de Dom Pedro II, que era seu amigo pessoal e dizia dever-lhe o culto que devotava às artes.

A mãe de Afonso de Taunay, D. Cristina Teixeira Leite d’Escragnolle Taunay, era neta dos primeiros barões de Itambé e filha dos Barões de Vassouras, importantes fazendeiros na província do Rio de Janeiro e Mineiros soturnos, no dizer de Capistrano de Abreu.

Passou Afonso de Taunay a infância na capital do Império e em Petrópolis, onde estudou no famoso Colégio de Monsenhor Moreira, contando, entre seus condiscípulos, o príncipe D. Luís de Orléans Bragança e o futuro catedrático de Otorrinolaringologia da Escola de Medicina da Universidade do Brasil – o saudoso Professor João Marinho de Azevedo.

De grande curiosidade intelectual, os tios lhe chamavam, conforme ele mesmo conta, o Dr. Pergunta. Resolvendo seus pais, em 1889, que nesse ano ele prestaria exames de Geografia e História do Brasil, contrataram para lhe darem lições dessas matérias Alfredo Moreira Pinto, o nosso mais acatado professor de geografia na época, e Capistrano de Abreu, que tão grande influência exerceria sobre a sua formação, tornando-se seu amigo e despertando-lhe o gosto pelas pesquisas referentes ao nosso passado.

Formou-se em 1900, em engenharia, pela Escola Politécnica do Rio, onde foi colega de Heitor da Silva Costa, engenheiro que ergueu, no Corcovado, o monumento a Cristo Redentor.

Transferindo-se para São Paulo pouco depois, aí se casou, em 1907, com D. Sara de Sousa Queirós, filha de uma das mais ilustres famílias do Estado bandeirante.

Em 1904 fora nomeado professor substituto da Cadeira de Física da Escola Politécnica de São Paulo, da qual se tornaria catedrático em 1911, regendo-a até fins de fevereiro de 1917, quando foi convidado pelo Presidente Altino Arantes para dirigir o Museu Paulista.

Observa Fontenelle haver indivíduos capazes das mais elevadas especulações teóricas, sem possuírem, todavia, a aptidão de conduzir até elas outros espíritos, custando-lhes mais descer a um nível inferior ao já por eles atingido, do que continuar a subir para novas conquistas da inteligência. Parece ter sido este o caso de Afonso de Taunay, segundo se deduz, entre outros, do seguinte episódio registrado pelo cronista, poeta e engenheiro Alexandre d’Alessandro, que lhe cursou as aulas na Escola Politécnica:

Certo dia, tentando fazer o vácuo no tubo de Newton, para comprovação das leis da gravidade, não houve meios de se chegar a um resultado apreciável. Depois de muito suar, virando e revirando peças e mais peças, já com os punhos postiços da camisa a escorregarem-lhe pelas mãos, o Dr. Taunay, triunfante, vira-se para a turma e diz: “Esta torneira tem espírito de contradição!” Era, de fato, a torneira da máquina pneumática que estava com os orifícios invertidos...

Tais incidentes entravam logo para o anedotário escolar – pondera o Professor Luís Cintra do Prado, hoje catedrático de Física da mesma Escola, “e os alunos da Politécnica, sem prejuízo do grande acatamento que sempre tiveram por Taunay, faziam ilações entre o nome do professor de Física e o vocabulário da própria matéria: comentando os respectivos fatos escolares – reais ou imaginários – falavam em ‘toneladas’”... Em data posterior, quando Taunay já não militava mais no ensino das ciências físicas, Agripino Grieco usou da mesma expressão ao referir-se à massa, verdadeiramente notável, da produção literária do historiador, constante de perto de uma centena e meia de volumes.

Esplêndidas aptidões de administrador revelou Taunay no Museu Paulista. Apresentava este, ao ser-lhe confiado, apenas a feição de um instituto de pesquisas zoológicas e etnográficas de acordo com os gostos do naturalista Von Ihering, que o organizou. Sob este aspecto em nada se distinguia dos estabelecimentos congêneres da Europa ou da América do Norte. Muito embora nele abundassem os espécimes originários do Brasil, de paulista só tinha o nome.

Ao empossar-se, como diretor, teve Taunay a sua atenção desde logo voltada para a circunstância de que, até então, apenas dois cômodos do Museu eram destinados a tudo quanto dizia respeito ao nosso passado, estando os objetos amontoados, sem catalogação e sem o menor cuidado de se despertar, para eles, a curiosidade dos visitantes. E, já no ano seguinte, colocava à disposição do público “as duas primeiras salas consagradas à tradição paulista”, às quais se seguiram mais oito, com objetos, desenhos e quadros que recordavam episódios e vultos históricos, através dos quais preparou o Museu para a comemoração do Centenário da Independência.

Aqui, entretanto, impõe-se uma observação: católico praticante, certo da existência do inferno, não admitiu Taunay a Marquesa de Santos entre as figuras do nosso passado apresentadas na galeria do Museu, conservando-lhe o retrato no chão, num canto do almoxarifado, que era o inferno accessível ao seu poder de diretor. Quando, muitos anos depois, ao ser atingido pela aposentadoria compulsória, Sérgio Buarque de Holanda o substituiu na direção do estabelecimento, mandou expor o retrato da Marquesa ao lado dos demais. Ao visitar um dia o Museu e ao deparar o quadro condenado. Taunay não se conteve e exclamou: “Mas, então penduraram o retrato dessa tipa! Não ofenderão os melindres das famílias de São Paulo?”

Este episódio fornece, a meu ver, a chave para se decifrar a razão pela qual, podendo ter sido um dos nossos mais completos historiadores, digno de ombrear com Varnhagen, Capistrano e João Ribeiro, limitou-se Afonso de Taunay ao papel, muito inferior ao de seus reais méritos, de ser quase mero descobridor e colecionador de documentos, sem deles se valer para realizar uma grande obra de síntese dos períodos e acontecimentos correspondentes.

Sabendo que a história varia com os que a interpretam, dependendo dos preconceitos e das convicções de cada historiador (pois ele mesmo era capaz de deixar indefinidamente no porão do Museu Paulista o retrato da Marquesa de Santos), achou Taunay mais prudente, de acordo com a sua profunda honestidade, transcrever textualmente em seus volumes, numa fiada árida, mas segura, os documentos. Seriam estes a seu ver, a única fonte da verdade e propiciariam ao próprio leitor corrigir qualquer injustiça ou falha de interpretação, porquanto, como adverte antigo prolóquio, o historiador, para ser realmente imparcial, não deveria ter nem religião, nem Pátria.

Não estava Afonso de Taunay distante da conclusão de Raimundo Magalhães Júnior, ao resumir as considerações do escritor francês Paul Guérande em sua bela conferência sobre Historiadores Brasileiros no século XIX: “não há História. Há apenas historiadores. Assim como não há crítica, mas críticos... Por mais que os historiadores adiram a regras preestabelecidas ou a métodos tidos como científicos, a história varia com o temperamento e a formação intelectual de cada um...”

Daí, as famosas revisões da História, que se sucedem conforme as ideias e os preconceitos de cada época, havendo tantas histórias quantos são os que interpretam os acontecimentos históricos do ponto de vista liberal, universitário, católico, protestante, positivista, reacionário, socialista, marxista etc.

Eis por que um escritor inglês chega a sustentar que o tempo da História passou, estando nós na época dos documentos, cuja leitura é mil vezes mais interessante e mais instrutiva do que a de todas as histórias...

A propensão de Afonso de Taunay para os temas históricos manifestou-se desde o primeiro livro por ele publicado: Crônica do tempo dos Felipes, impresso em França, em 1910, e a cuja segunda edição, feita em São Paulo, em 1926, deu o título Leonor de Ávila (romance histórico brasileiro).

Foi este livro que lhe abriu as portas do Instituto Histórico por proposta de 15 de julho de 1911, assinada, entre outros, por Afonso Celso, e assim relatada pelo Barão de Ramiz Galvão:

Sem ser uma obra histórica propriamente dita, traduz e revela cuidadosos estudos históricos na pintura dos costumes da época e em episódios notáveis. Sente-se em todo o livro o pulso de um investigador estudioso, que se não quis limitar a frases banais de intrigas galantes. Como estreia é auspiciosa. O tempo e o estudo acabarão por libertá-lo de alguns senões e de certas demasias.

Convencido de que a ficção não seria o seu gênero, enveredou Taunay pela investigação histórica e publicou, em 1917, A Missão Artística de 1816 obra premiada, com medalha de ouro, pelo Instituto Histórico em 20 de outubro de 1917.

Em 1915 Basílio de Magalhães – um dos nossos maiores valores culturais (que, por circunstâncias difíceis de explicar deixou de pertencer a esta Casa, sendo, entre nós, um dos ocupantes da Poltrona 41, preenchida, na Academia Francesa, por figuras do porte de Descartes, Pascal, Molière, Diderot, Flaubert e Zola), em 1915, vinha eu dizendo, Basílio de Magalhães publicou a sua magistral síntese do bandeirismo – Expansão geográfica do Brasil até Fins do Século XVII, mais tarde consideravelmente aumentada e editada com o título de Expansão Geográfica do Brasil Colonial.

Era um tema até então imperfeitamente conhecido, apesar das investidas de Capistrano de Abreu a partir de 1884 quando publicou o seu trabalho sobre A Bandeira de Francisco de Mello Palheta ao Madeira em 1722 – 23.

Sobre o assunto estava Afonso de Taunay trabalhando com afinco, havia vários anos. Pensara ele, em 1904, escrever um história dos capitães-generais de São Paulo, mas Capistrano dissuadiu-o dizendo-lhe:

A sua ideia de escrever uma história dos capitães-generais de São Paulo é simplesmente infeliz. Que lembrança desastrada a de preferir um período desinteressante, quando a grande época dos paulistas é o século XVII. Deixe
este encargo ao... ou ao... Isto lhes vai a calhar. Que encham as páginas da Revista com tão desenxabido assunto. Reserve você para si o melhor naco, deixe os miúdos para quem deles gostar.

E assim, como ele mesmo diria modestamente em seu discurso de recepção, dispôs-se

a uma empresa que apenas vale pela exigência árdua do labor, a fidelidade da consulta às fontes e o desejo de servir à verdade. Pois a narrativa da dilatação do Brasil pelos paulistas, avassaladores de milhões de quilômetros quadrados, que, por direito de bulas e tratados, deviam ser castelhanos, é tentâmen cujas dimensões cada vez mais se alargam e exige, para a sua explanação, o concurso de muitos trabalhadores animosos e encarniçados no trabalho.

Muito embora hajam sido os bandeirantes impelidos por motivos econômicos – a auri sacra fames que, em todos os tempos e em todos os povos, inexoravelmente tem aguilhoado o homem, a verdade é que também os inspirava o espírito de aventura e nenhum capítulo de nossa história é tão sedutor quanto o dessa surpreendente integração da nacionalidade, na qual, a cada instante, tinham de ser vencidos os mais variados perigos no fundo dessas florestas ciosas de sua virgindade, e nessas imensas solidões, onde a Natureza acostumada ao mais profundo silêncio se espantava, como o Adamastor, de se ver pela primeira vez interrogar.

Nesses vedados términos quebrantados, de indefinidas regiões inteiramente selváticas e bravias, até então sem outro significado, no conjunto do território americano, do que o de incógnitas geográficas, designadas pelos cartógrafos apenas através dos animais que nelas imaginavam existir: hic sunt leones: haec est psittacorum regio, arrostaram os bandeirantes perigos tão grandes quanto os do próprio Mar Tenebroso, dos quais, no dizer do vate, o menor era a morte. Esta muitas vezes os assaltava após caminhadas sem fim, ora sob aguaceiros diluvianos, ora sob os abrasamentos de um sol impiedoso, com as noites mal dormidas, quase sempre ao relento.

Depois de escapar dos animais ferozes e das ervadas flechas de índios ainda não desbaratados; depois de vencer as torrentes de rios caudalosos e encachoeirados e escalar ínvios sertões, curtindo, não raro, as torturas da fome e da sede, marchando por vezes incendidos de febre, sob a ação de um acesso palustre, ausentes todos os carinhos e confortos do lar, privados por anos e anos do convívio da família, que ficara léguas e léguas distante, frequentemente nesses ermos exalavam os bandeirantes o último suspiro. Pagavam, assim, com a vida, o tributo da ousadia de se atreverem a uma empresa digna de Hércules. Mas, no seu rastro, haviam deixado, em inúmeros recantos do Sul e do Norte, do Leste e do Oeste, núcleos de lavouras e criações, sementes de povoados, vilas e cidades, e, quando os súditos do Rei da Espanha se deram conta, estavam os paulistas, com Antônio Raposo Tavares e Luís Pedroso de Barros, a galgar os Andes, imprimindo ao Brasil a sua configuração geográfica, que demarcaram com suor, sangue e lágrimas.

Atraído por tão fascinante tema, que foi, anos a fio, a obsessão de sua vida, acabou Afonso de Taunay levando a cabo sozinho o imenso empreendimento que, a princípio, se lhe antolhava exigir nada menos de uma legião de resolutos pesquisadores para lhe devassarem os múltiplos e ensombrados escaninhos.

Convencido da ponderação, frequentemente repetida por Capistrano de que um só dos autos dos nossos inventários bandeirantes valia mais do que uma grande ruma de cartas régias, pôs-se Taunay no seu encalço para a minuciosa reconstituição do nosso passado, em toda a sua complexa estrutura. Visava focalizar-lhe não só o elemento dirigente, mas as bases econômicas e sociais, e, daí, estudos, além da expansão territorial nos onze volumes de sua História Geral das Bandeiras Paulistas o Tráfico Africano no Brasil, pois foi o negro não só uma das vigas mestras do bandeirismo como a principal mão de obra em quase quatro séculos de nossa existência. E completou os seus estudos com os quinze volumes da História do Café no Brasil, já que este constituiu, depois do pau-brasil, do açúcar e do ouro, a principal base de nossa economia.

Uma obra tão vasta, realizada por um só indivíduo, não podia deixar de apresentar imperfeições. Dentre as que mais frequentemente se lhe apontam está a que a muitas se afigura até uma qualidade: não condensar os documentos por ele descobertos, submetendo-os diretamente à crítica e apreciação do leitor.

É verdade que, ao transcrevê-los, traído pela sua assombrosa memória, entrava por vezes em digressões literárias que provocavam a advertência de Capistrano: “Ouça-me! nada de alusões literárias! Nem mesmo as corriqueiras: o que uma geração conhece é muitas vezes ignorado pela seguinte. Quanto menos alusões depararem os pósteros tanto mais agradecidos ficarão ao trabalho poupado”.

Ao recebê-lo na Academia, Roquette-Pinto deixou patente o pouco trato de Taunay com a antropologia, ponderando-lhe: “Não sei se fostes sempre bem inspirado consagrando no primeiro volume de vossa História das Bandeiras, um capítulo ao que chamastes arianização progressiva dos paulistas, porquanto a antropologia ensina que o sangue ariano é uma utopia”.

E Roquette acentuava:

“Em todo caso afirmais muito bem: é com elementos quase unanimente euro-americanos que efetua a sua obra a raça de gigantes de Saint-Hilaire”. Por outro lado – força é convir com José Honório Rodrigues – não andou bem Afonso de Taunay ao infringir um dos princípios básicos da historiografia moderna que é o de se indicar sempre, com precisão, a fonte das afirmativas e documentos, falha em que já incidira Varnhagen, concorrendo para grande desperdício das atividades históricas de Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia, que quase passaram a vida a reconstituir-lhe e conferir-lhe as fontes, através de penosas e estafantes buscas.

Entre seus numerosos estudos do nosso passado, destacaram-se os que Taunay dedicou à evolução de São Paulo e que o tornam o mais completo historiador da terra e da gente de Piratininga.

Notáveis são ainda os vários livros que consagrou ao Padre Voador – Bartolomeu de Gusmão, onde lhe reivindica os títulos de Precursor dos inventos aerostáticos. Eram de suas obras, as que mais prezava, considerando-as superiores a tudo quanto realizara no domínio da História, talvez pela maior originalidade das pesquisas a que foi obrigado para a sua elaboração.

Forçando-o os seus estudos do bandeirismo “a permanecer um viajor infatigável, mas entre quatro paredes”, como ele mesmo disse nesta Casa, também preparou uma Coletânea de Mapas de Cartografia Antiga e o Ensaio da Carta Geral das Bandeiras Paulistas, volumes que complementam a sua História da Conquista do Brasil pelos Brasileiros, que tal é, na sua própria expressão, a sua História das Bandeiras.

Incalculável é a massa de fatos ressuscitados pelas buscas de Taunay, dando feição inteiramente nova aos estudos e interpretação das bandeiras. Graça a ele podemos hoje acompanhar, passo a passo, minudentemente documentadas as caminhadas épicas de Aleixo Garcia, Manuel Preto, Antônio Raposo Tavares, Bartolomeu Bueno – o Anhanguera, Afonso Sardinha, Fernão Dias Pais, Pascoal Moreira e tantos outros paulistas audazes, cujo espírito – nas palavras de Oliveira Martins – “foi a primeira alma da nacionalidade brasileira e fez de São Paulo – esse foco de lendas e tradições maravilhosas – o próprio coração do País”.

Apesar de seu imenso labor histórico ainda achava Afonso de Taunay tempo para prefaciar, comentar e anotar obras alheias e fazer traduções, como a da Retirada da Laguna e a da Segunda Viagem de Saint-Hilaire a São Paulo, além de se entregar a estudos e escritos de outra natureza.

As preocupações filológicas e gramaticais entraram em voga entre nós, transformando-se em verdadeira epidemia, sobretudo a partir da polêmica de Rui Barbosa com seu grande mestre Carneiro Ribeiro a propósito da redação do projeto do nosso Código Civil.

Desde então generalizou-se, entre os brasileiros cultos, a preocupação de conhecer e escrever a língua tão bem, e até, se possível, melhor do que os portugueses, estudando e esmerilhando os clássicos.

E quase todos os jornais passaram a abrir secções para o ensino prático da língua, verdadeiros consultórios das diversas enfermidades de que, entre nós, padecia o idioma.

Entre os mais afamados donos de receituários linguísticos, figurou, no Brasil, no primeiro quartel do século, Cândido de Figueiredo, cuja autoridade fora reforçada pelo acatamento com que, na Réplica, a ele se referiu Rui Barbosa.

Dado a estudos linguísticos, tendo publicado, além de vários outros trabalhos do mesmo gênero, um Léxico de Termos Técnicos e Científicos, um Léxico de Lacunas e um Vocabulário de Omissões, abalançou-se Afonso de Taunay a oferecer uns Reparos ao Novo Dicionário de Cândido de Figueiredo, cuja terceira edição saíra em 1923, o que o levou a uma polêmica de muitos artigos com o famoso dicionarista.

Os que se dedicam ao estudo da língua são quase sempre irritadiços, degenerando, entre eles, as discordâncias em acerbas e envenenadas lutas pessoais em que não guardam qualquer medida, o que levou Dante a segregar os gramáticos num dos mais detestáveis ciclos do Inferno. Ainda no século de Erasmo, ao discordarem, abandonavam os gramáticos italianos o latim, em que usualmente se exprimiam, e passavam a mimosear-se, na língua materna, com expressões como “accidente alla tua madre!”, “figlio di porco!”, “figlio d’un cane!” e outras que será prudente não repetir.

Homem da mais fina educação, jamais se deixou Taunay, mesmo quando provocado, arrastar a tais extremos. Sempre objetivo, mostrou não só as inúmeras falhas, mas os enormes dislates de muitas das definições do Dicionário de Cândido de Figueiredo, que Rui Barbosa considerava a maior das nossas competências em matéria de lexicografia portuguesa, e cujos livros, todavia, no dizer algo inquisitorial do meu amigo Gladstone Chaves de Mello, “pelo grande mal que têm feito, devem ser queimados com solenidade, para exemplo às novas gerações”.

Eis algumas das definições do Novo Dicionário criticadas por Taunay:

“Hertziano, adj. Diz-se de uma variedade de telégrafo, cf. Jornal do
Commercio do Rio, de 13 de junho de 1901.”

“Aeroplanos aparelho aerostático, movido a vapor e sustentado sobre planos ou lâminas postas em ação por um motor da força de um cavalo. Inventado recentemente em 1896 por Langley.”

Depois de dizer que esta definição, em 1923, era um figurinha de carteira  de cigarro, conclui Taunay ser a mesma de origem futurista, por não haver outra entrada para tão ampla saída...

“Flúor – Corpo simples ainda não insulado”, provoca o espanto de Taunay: “A química do Sr. Cândido de Figueiredo está atrasada de quase quarenta anos, porque desde 1886, realizando o ilustre Moissan a eletrólise do ácido fluorídrico, conseguiu isolar o misterioso e terrível phtoro causador da morte se não me engano de um dos seus tenazes e infelizes perseguidores, os irmãos Knox”.

A definição: “ácido fórmico – diz-se de um ácido que se extrai das formigas”, arranca de Taunay o seguinte comentário: “O processo dá certo, mas... continua a ser usado só pelos consulentes do Sr. Cândido de Figueiredo. Para que foi este idiota de Berthelot inventar o seu processo de desdobramento do ácido oxálico em ácido fórmico e gás carbônico? Matou assim um artigo de exportação notável que podia dar excelentes lucros ao Brasil: a exportação da saúva matéria-prima que temos em abundância...”

Ao transcrever as definições: “Florianista: sectário da escola literária do fabulista Florian”; “Florianesco – se diz no Brasil do estilo do tabulista Florian” e “Siriema – ave pernalta notável pela guerra que faz a todos os animais”, declara Taunay que esta última definição lhe lembrava as de Bernardo de Melo Bacelar, o célebre dicionarista que definiu macaco: animal de trejeitos delirantes; abdômen, parte do umbigo e castiçal, o que dá fogo e luz...

Desse Bacelar, a cujas definições, no dizer talvez apaixonado de Taunay, quase se equiparam algumas das de Cândido de Figueiredo, narra Manuel Pinheiro Chagas a seguinte história:

Estava Bacelar compondo o seu dicionário e chegou ao termo silogismo. Ignorando o que fosse, tratou de procurar alguém que lho explicasse; deram-lhe a explicação e ele não a entendeu. Então, para tornarem o caso mais claro, disseram-lhe que silogismo era um raciocínio que provinha da fusão e combinação de duas premissas, como, no cós de umas ceroulas, se fundem as pernas das ditas. O pobre ainda não percebeu, mas julgou que salvara a dificuldade, escrevendo: “silogismo, raciocínio sobre duas premissas. Vide ceroulas!”

Tenho encontrado quem estenda a Afonso de Taunay a crítica que em Portugal se fez a Inocêncio, isto é, “faltar-lhe a faculdade de animar um assunto, insuflando-lhe seu próprio espírito, fazendo-o respirar, mover-se, sorrir, chorar, interessando o leitor como uma personagem viva”.

Não me parece procedente o reparo, porquanto não se propôs Taunay a fazer obra de ficção, mas a exumar, através do maior número de documentos, o nosso passado. E, como salienta um grande mestre de estética, o escultor maneja diversamente a espátula e o escopro, conforme afeiçoa ou esculpe a estátua de um mártir ou de um herói, ou cinzela uma taça ou uma espada. O mesmo ocorre no campo literário no que pertence à forma, isto é, à construção do período, porquanto o ritmo e o estilo estão ligados à substância, nela se integrando, sendo o corpo de que ela constitui a alma.

Dirigem-se os livros de Afonso de Taunay, mui de intento, apenas àquele pequeno escol de investigadores e estudiosos a que aludia Voltaire ao sustentar que o público está longe de ser o Universo, como ingenuamente supõem os que se iniciam nas Letras. Tomando, como referência, a população de Paris do seu tempo, dizia o autor de Zadig que o público, em matéria de livros, é formado por quarenta ou cinquenta leitores, se se trata de assunto sério; quatrocentos ou quinhentos, quanto é divertido, e cerca de mil e duzentos, no caso de uma peça de teatro, havendo, mesmo no Paris dos Enciclopedistas, mais de quinhentas mil almas que nunca ouviram, nem jamais ouviriam falar de tudo isso.

Quase sem o perceber, estabeleceu Taunay uma nova era em nossa historiografia e trabalhou para que outros, valendo-se dos tesouros por ele desencavados, possam fazer livros e mais livros em que somente terão de preocupar-se com a forma e a apresentação, interpretando e sintetizando os documentos que generosamente pôs ao alcance de todos.

Suspendo aqui a referência aos escritos de Taunay, que sobem, como já assinalei, a perto de uma centena e meia de volumes e passo a tratar do homem, pois não é possível, num discurso, nem sumariamente analisar-lhe as obras. E muito menos posso referir-me à sua importante contribuição para os Anais do Museu Paulista, onde publicou tantos documentos preciosos. Nem também poderei deter-me em apreciar-lhe a assídua colaboração na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Jornal do Commercio, no Correio Paulistano e em várias publicações periódicas do País e do estrangeiro.

Os inúmeros artigos que, no decorrer da vida, estampou, foram por ele guardados e constituem sessenta alentados volumes a serem selecionados para futuras edições. O mesmo há de ocorrer com a sua copiosa correspondência que deve ser corrigida e traduzida pelos que se especializaram em decifrar-lhe a letra, porquanto é inestimável repositório de indicações e ensinamentos sobre os mais variados temas.

Nunca se negou Taunay a ministrar lições a quantos recorriam às suas luzes. Mesmo pelo telefone era constantemente assediado, até por pessoas desconhecidas, a fim de responder a perguntas e consultas. Muitas vezes eram mães de ginasianos que a ele se dirigiam para auxiliar os filhos em seus estudos. E ele, pacientemente, quando não podia, de pronto, dar uma resposta, ia enfronhar-se no assunto, e, mais tarde, fornecia os esclarecimentos que lhe haviam sido solicitados.

Um traço que quantos o conheceram são unânimes em salientar é a sua bondade. Excelente esposo e chefe de família exemplar passou a vida em sua mesa de trabalho com a bravura de quem estava numa frente de batalha. Fazendo sua a divisa de Apeles – nulla dies sine linea, escrevia de manhã, à tarde e à noite, como que impelido por imposição orgânica, segundo observa o seu filho Dr. Augusto de Taunay.

Para escrever, prescindia de ordem e silêncio em torno de si: enquanto redigia ou atendia à sua correspondência, era capaz de contar histórias para os netos ou auxiliá-los em seus deveres escolares, e isto doce e suavemente, sem perder o fio do assunto principal de sua atenção.

Sua mesa de trabalho, como a do Barão do Rio Branco, sempre transbordante de manuscritos e cartas, apresentava a maior desordem; sabia, entretanto, o lugar exato de cada papel e mantinha permanente vigilância para que aí ninguém tentasse fazer a menor arrumação.

Seus livros não eram catalogados, e, embora dispostos de maneira aparentemente anárquica, era Taunay, de olhos fechados, capaz de localizar cada um deles. Nos últimos tempos, impossibilitado de ir à sua biblioteca, indicava com precisão onde se encontrava tal ou qual volume, sem que nunca se enganasse.

Para poder estudar e escrever dia e noite, ano após ano, alheava-se completamente de todos os encargos domésticos e passava-lhes a gestão para a sua esposa, sem cuja colaboração, proporcionando-lhe a paz de espírito de que tanto carecia, não teria conseguido realizar a titânica obra que nos legou. Bênçãos recaiam, pois, sobre essa admirável D. Sara Souza Queirós de Taunay, companheira que tanto lhe embelezou a existência, exemplo do que pode valer, para um escritor, a abnegada e silenciosa dedicação de uma esposa no recesso do lar, preservando-lhe a vida interior para as criações do espírito.

Capaz de absorver-se, meses a fio, em leituras extremamente maçante, daquelas das quais dizia Eça que nem Robinson na sua ilha deserta, com todo o seu tédio, quereria, pode-se aplicar a Afonso de Taunay, cercado de alfarrábios, traslados de inventários, escrituras e testamentos setecentistas, o mesmo que Ramalho contava do jurisconsulto luso Martens Ferrão: quando tinha seus ímpetos mais ferozes de extravagância e de anarquia, saía a passear pelas viçosas campinas da Filosofia do Direito e fazia patuscadas orgíacas e escandalosas com as origens célticas do Direito e as liberdades municipais do Império romano. No dia seguinte acordava cansado, pálido, abatido...

A capacidade de Taunay para reter nomes, datas e fatos era prodigiosa e conservou-a até os seus últimos dias, conforme um episódio de que posso dar testemunho.

Quando, em agosto de 1956, publiquei o meu livro sobre o Padre Antônio Vieira, remeti-lhe, pelo correio, um exemplar.

Passado um ano, como dele nada houvesse recebido, contra a sua praxe (pois, de sua educação aristocrática, manteve, vida fora, a delicadeza de nada deixar sem resposta), supus tivesse havido algum extravio, ou do meu livro, ou do seu agradecimento. Solicitei, então, para apurar o caso, a ajuda de um amigo de São Paulo – Hugo Maia, um desses homens raros, de grande inteligência e cultura, associadas a imensa bondade, e que só vivem para a família, os amigos e as belas coisas do espírito.

Hugo Maia fora, havia cinquenta anos, aluno de Taunay na Politécnica, onde era conhecido como Hugo de Campos Maia. Passando, a partir de 1908, a exercer sua atividade no comércio de São Paulo, deixou o Campos e adotou apenas o nome Hugo Maia, que foi o que apresentou à senhora de Taunay, a fim de transmiti-lo ao marido que não o via desde 1907. Ao descer a escada para recebê-lo, exclamou Taunay, como se com ele houvesse estado na véspera: “Hugo de Campos Maia, como vai você?”

Era, aliás, seu costume, na Politécnica, fazer de cor a chamada dos alunos, por mais numerosa que fosse a turma.

Quanto à sua integridade, eis o que, a respeito, conta o meu querido amigo, Reverendíssimo Padre Murilo Moutinho, S. J.: lecionava Taunay, desde vários anos, a Cadeira de História da 5.ª série do Ginásio de São Bento, quando o seu filho mais velho galgou aquela série. Julgou, então, dever afastar-se da cátedra durante todo esse período letivo, porquanto não se supunha com autoridade para atestar o aproveitamento de seu próprio filho.

Quando Diretor do Museu Paulista, recusou o carro que o governo lhe oferecia, dizendo que a verba correspondente poderia ser melhor aproveitada em benfeitorias para o mesmo Museu, continuando ele a andar de bonde, como o fez até o fim da vida, trazendo sempre debaixo do braço velho guarda- chuva que se tornara parte integrante de sua pessoa.

Observava Cícero, a propósito de Varrão, que os homens, poços de Ciência, quase nunca são de convivência agradável, porquanto, sempre preocupados com o passado e o futuro, jamais são verdadeiramente contemporâneos daqueles com que vivem.

Apesar de sua enorme e variada cultura, tal não se dava com Afonso de Taunay. Notam mesmo os que o conheceram mais de perto que certos termos clássicos, de que habitualmente se servia na conversação, como mendacidade, veraz, fero, rábido e tantos outros de sabor camoniano, com tamanha espontaneidade lhe brotavam dos lábios, que não destoavam, completando-lhe até a bela e heráldica figura.

Afora o trabalho, entregava-se apenas a três distrações: conversar, jogar, uma vez por semana, gamão, e tocar piano, sendo de sua própria lavra algumas das sonatas que executava.

De trato ameníssimo, era um causeur encantador pela vastidão e profundeza de sua cultura. Palestrava horas a fio com qualquer pessoa, de qualquer nível intelectual, de um lado, para expandir a sua invulgar capacidade de narrar fatos e citar nomes e datas, e, de outro, por pensar, sem dúvida, de acordo com o provérbio castelhano, que não há tolo de quem o sábio não possa aprender alguma coisa.

Genealogista insigne, distraía-se em levantar a história de certas famílias de suas relações e até mesmo estranhas. Muita vez – ao lhe apresentarem alguém – citava, com espantosa riqueza de dados, fatos sobre a origem, os nomes, as datas e a cidade de onde provinham os ascendentes do apresentado, frequentemente ignorados por ele próprio.

Não era grande amante da Poesia: a seu filho Augusto, ao qual Capistrano de Abreu vaticinara pendores poéticos, prometeu valente surra se o apanhasse a fazer versos... Apreciava, todavia, alguns dos nossos poetas, particularmente Olegário Mariano, a quem endereçou o último bilhete que escreveu, e ele mesmo compunha quadrinhas jocosas, geralmente dirigidas a seus parceiros de gamão.

O Museu Paulista foi a grande paixão da vida de Afonso de Taunay, levando-o a abandonar, para não deixar a sua direção, a cátedra que ocupava na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, quando passou a vigorar a lei que proibia as acumulações. Com o seu amor pelo Museu Paulista só rivalizava o que consagrava ao Museu Histórico de Itu, por ele carinhosamente ideado e organizado.

Embora carregado de anos, pois ia completar 82 em julho último, não chegou a conhecer a velhice. Faleceu de um colapso, em pleno gozo de suas faculdades mentais, lendo uma comédia de Labiche, dez minutos após haver dado, a um de seus netos, uma lição de latim.

Graças à sua longevidade, pôde receber, em vida, as homenagens em geral somente prestadas à memória dos grandes homens, porquanto, como nota o Padre Antônio Vieira,

a inveja faz grande diferença dos mortos aos vivos, e dos presentes aos passados. Os olhos da inveja são como os do sacerdote Heli, dos quais diz o texto sagrado que não podiam ver a luz do Templo, senão depois que se apagava: Oculi ejus caligaverunt, nec poterat videre lucernan Dei antequam extingueretur. Enquanto as luzes são vivas, cada reflexo delas é um raio, que cega os olhos da inveja; porém depois que elas se apagam, e muito mais se se metem largos anos em meio, então abre a inveja, como ave noturna, os olhos; então vê o que não podia ver; então venera e celebra essas mesmas luzes, e levanta sobre as estrelas seus resplendores.

Para honra nossa, era Afonso de Taunay, havia vários anos, unanimemente apontado, no Brasil, como o nosso maior historiador vivo, e desde 1944, ao ser eleito membro honorário da American Historical Association, por proposta de historiadores do valor de uma Bernadotte Schmidt, de um Waldo Leland e de um Guy Stanton Ford, pôde antecipadamente ouvir a voz consagradora da posteridade, que tal é, para os vivos, no dizer de Capistrano, a voz do estrangeiro.

Tornou, assim, uma realidade a divisa – ad immortalitatem, porquanto, ao longo de laboriosa e edificante vida, enriqueceu o patrimônio cultural da Pátria, conquistando aquela glória que “fica, eleva, honra e consola.”

12/12/1958