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Um silêncio que grita

 

Há um detalhe em “Dom Casmurro” que sempre me toca. Miúdo, sutil. Talvez tenha me batido fundo porque eu tinha a idade da protagonista quando li o romance pela primeira vez e me identifiquei com ela. É um indício que revela com nitidez quem é Capitu, o que uma adolescente podia esperar em matéria de educação na época da ação, e como Machado de Assis estava atento a essas limitações. Neste Dia Internacional da Mulher bem que podemos recordá-lo.

A menina Capitu quer estudar latim. Mesmo sendo mulher. E vai buscar os meios para isso, recorrendo ao padre, ainda que todos zombem dela. A curiosidade ou a sede de conhecimento fala mais alto que qualquer zombaria ou proibição.

Anos mais tarde, encontrei a mesma consciência em Virginia Woolf. Ao comentar os obstáculos para uma mulher se tornar escritora, a romancista inglesa analisa a importância de ter um quarto todo seu onde pudesse escrever sem ser interrompida, mas assinala também as barreiras que lhe proibiam estudar grego e latim, impedindo-a de ter uma formação clássica e de conhecer filosofia, história e ciência, numa época em que a maioria dos autores da Antiguidade ao Renascimento não estava traduzida para as línguas modernas e mesmo o saber mais recente em geral era fixado em textos escritos em latim.

Cabia à mulher manter o funcionamento de tudo. Desde fiar, tecer e costurar os trajes da família cujo tecido fabricara na roca e no tear, até fazer o sabão com que lavaria no rio ou tina a roupa suja ou a louça da janta que cozinhara (após matar o frango ou o porco, fazer a linguiça, o pão e a conserva). Além de cuidar dos filhos e da casa, nas eventuais horas vagas se sua situação social permitisse, mulher podia se dedicar apenas às chamadas prendas domésticas — bordar, fazer crochê e tricô, tocar piano para distração em saraus domésticos, desenhar ou pintar aquarelas. Os romances europeus dos séculos XVIII e XIX por vezes as retratam nessa atividades. Mas a memória desse resultado ficou apagada. Um nome como o de Clara Schumann na música é uma raridade.

Escritoras pioneiras notáveis conseguiram furar um pouco esse bloqueio, mas em números muito reduzidos. Porém as artistas plásticas em sua quase totalidade foram relegadas ao silêncio e ao esquecimento, salvo pouquíssimos casos, quando eram filhas, irmãs ou esposas de artistas que as incorporavam a seus ateliês. Ou então constam dos registros apenas como eventuais modelos, quando também posaram para os colegas, sobretudo no renascimento italiano ou no impressionismo francês. Mas, em geral, nem seus nomes sobreviveram na História da Arte.

Agora as mais recentes levas dos movimentos feministas estão fazendo um trabalho admirável na pesquisa, resgate e reconhecimento dessas artistas esquecidas e silenciadas. Com isso, descobrimos tesouros.

No ano passado, pela primeira vez o Grand Palais de Paris dedicou seus salões à retrospectiva da obra de uma mulher, Elisabeth Vigée LeBrun, seguindo o exemplo do Museu Marmottan que revelara a extraordinária qualidade do conjunto da obra da impressionista Berthe Morisot. Este mês, logo após o fim da grande mostra sobre Clara Peeters no Prado, em Madrid, agora a Galeria Uffizzi de Florença inaugura dia 8 uma exposição da freira renascentista Plautilla Neri e anuncia que vai tirar dos porões pinturas e esculturas feitas por mulheres como Marietta Robusti, até aqui só vistas com hora marcada, por pesquisadores.

E o Museu Pitti vai abrir uma mostra da austríaca Maria Lassnig, enquanto o Canadá acaba de revelar que a cultuada obra assinada por C. L. Davis, até aqui atribuída a um homem, na verdade é de autoria de Carolina Davis.

Então, neste Dia da Mulher, quero lhe dar um presente. Marcante, rico, inesquecível. Você vai me agradecer pela dica. Há na internet uma janela para essas artistas, de épocas e países diferentes: @female.artists.in.history. Cadastre-se e passe a receber o resultado de uma notável garimpagem de obras de mulheres, com suas biografias e referências. Aos poucos descobrirá suas predileções. Umas são mais marcantes que outras — exatamente como acontece com artistas homens. Mas o conjunto é instigante.

Ao contrário deles, elas não podiam estudar anatomia ou desenhar modelos nus. Não nos trazem grandes cenas épicas, batalhas, temas bíblicos ou mitológicos. Também não eram contratadas por mecenas para retratar poderosos. Pintam o cotidiano, o trabalho comum, seus afazeres, os interiores das casas, as naturezas mortas que se multiplicavam na mesa da cozinha ou nos instrumentos de trabalho, as paisagens entrevistas das janelas a partir do interior, as brincadeiras infantis. E uns cinco séculos de selfies a pinceladas. Absolutamente fascinante.

Fica ainda uma sugestão de trabalho, para universidades ou órgãos culturais. Vamos incluir as brasileiras nesse acervo universal. Até agora, só encontrei pouquíssimas. Vai ser uma coisa boa a fazer na internet, ajudando a reduzir esse silêncio que grita.

Ana Maria Machado é escritora

O Globo, 04/03/2017