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Silêncio mesquinho

 

No dia 1º, completou-se um mês da morte de Nana Caymmi. Lula, rápido no gatilho para homenagens aos grandes brasileiros que nos deixam, ficou mudo a respeito dela e assim continuou por esses 30 dias. Não se pode exigir de um presidente que conheça ou goste de todas as pessoas de valor do país. Para isso, é instruído por assessores, que, inclusive, escrevem os textos que ele dedica aos falecidos.

Lula ficou em silêncio sobre Nana Caymmi porque em entrevista à Folha, em 2019, ela pareceu solidária ao recém-esfaqueado Bolsonaro, fez declarações ásperas contra o PMDB e o PT e classificou Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros de "chupadores do pau do Lula". Só a grossura desta última frase já devia ser vista com bom humor por Lula, ele próprio um desbocado em off. Mas seus assessores a tomaram por uma declaração de guerra. E nem a morte de Nana fez com que a grandeza da arte se impusesse sobre a mesquinhez da política.

Durante o governo Bolsonaro, morreram, entre muitos, Beth Carvalho, Bibi Ferreira, João Gilberto, Domingos Oliveira, Nelson Freire, Paulo José, Jô Soares, Milton Gonçalves, Elza Soares. Sem esquecer o suicídio de Flavio Migliaccio, farto da humanidade e do país. Nenhum deles mereceu um pio de Bolsonaro. E não seria pelos mortos em consequência da Covid —Aldir Blanc, Nicette Bruno, Carlos Lessa, Daniel Azulay, Paulo Gustavo, Nelson Sargento, Sergio Sant’Anna, muitos mais— que ele verteria uma lágrima. Afinal, "não era coveiro".

A querida Nana não sabia nada de política. Na entrevista à Folha, falou 89 palavrões em 71 minutos. Absurdos vinham-lhe à boca a todo momento, sobre qualquer assunto; ela os falava e se dissipavam em segundos. Só os seus discos eram definitivos —o que ela sabia de cantar lhe bastava e nos bastava. Gilberto Gil, seu ex-marido, e Caetano não se ofenderam com a frase. Ao contrário, choraram sua morte. Ao imitar Bolsonaro, Lula rebaixou-se a ele.

A própria Nana não se ofenderia com o silêncio de Lula. Mais provável é que desse uma risada e lhe dedicasse alguns de seus pândegos e trovejantes palavrões.

Folha de São Paulo, 04/06/2025