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Rosa em 1956

 

No sábado, 8 de dezembro de 1956, dediquei meu artigo de crítica literária semanal ao livro "Grande sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa, que fora lançado pela Editora José Olympio em setembro-outubro do mesmo ano. Recebi, na semana seguinte, telefonema de José Olympio abraçando-me: era a primeira análise do livro saída na imprensa.


O artigo sairia em 1959 em meu livro "Cadernos de crítica", editado pelo próprio editor José Olympio, que passou a usar a frase final do artigo-capítulo como propaganda: "O romance de Guimarães Rosa, fincado de agora em diante em nossa literatura, vem alargar os planos em que os escritores de um povo se fundam".


Chamei a atenção, em primeiro lugar, para a importância geográfica em que se situa o livro de Guimarães Rosa. A região do São Francisco, perto do Urucuia, pegando o Norte de Minas Gerais, o Sul da Bahia e o Leste de Goiás, é, sob certos aspectos, o centro do Brasil. As andanças de personagens por essa região formam um resumo de todo o País.


Nenhum dos habitantes do romance pensa em cidade grande - talvez o maior agrupamento humano, citado em "Grande sertão: Veredas", seja Montes Claros. Nem a capital do estado, Belo Horizonte, nem o Rio de Janeiro, nem qualquer outra cidade maior, aparecem ali, concentrando-se a ação em território a que pouquíssimos brasileiros de outras zonas tinham dado antes atenção, levando-nos a achar que, através do romance de Rosa, incorporamos um novo pedaço de terra.


E sintomático é também que os personagens do livro não tenham o problema da terra, tal como a visão romântico-econômica nos vinha mostrando em outros livros. Em Rosa, as pessoas andam, brigam, matam, amam. Fazem as coisas essenciais de modo, senão primitivo, pelo menos primário. A vingança e o amor, motivadores das caminhadas dos heróis gregos, determinam também os movimentos de Riobaldo, Diadorim, Zé Bebelo, Joça Ramiro.


Outro lado raro do livro é a linguagem. A forma rítmica do romance tradicional, dividida em capítulos, deixou de existir em "Grande sertão: Veredas", para dar lugar a relato ininterrupto, coeso, fechado sobre si mesmo. É uma concatenação, um entrosamento entre as diversas bases do romance, a passagem de um acontecimento a outro, tudo isto com espantosa riqueza, tanto de vocabulário como de técnica de narração.


Identifiquei na época a semelhança do estilo de Guimarães Rosa com o português antigo. Poderíamos começar pelo primeiro documento de nossa história: a carta de Pero Vaz de Caminha. A linguagem de Riobaldo e Diadorim se assemelha, sob muitos aspectos, às descrições de Pero Vaz. Dizia o inglês Douglas Bush que os inovadores costumam seguir tradições mais antigas que hajam sido esquecidas ou perdidas. Diz ele: "A originalidade que perdura tem sempre raízes antigas e profundas".


Como o volume "Cadernos de crítica" divulgou as páginas literárias que saíam aos sábados no "O Globo", vale a pena lembrar muito dos livros publicados entre 1956 e 1958, isto é, o ano em que saiu o "Grande sertão: Veredas" e os publicados nos anos seguintes. A lista mostra um período fértil e rico na ficção brasileira. Em 1958 saiu "Gabriela, cravo e canela", romance em que Jorge Amado abriu nova fase da ficção.


No mesmo ano aparecia Fernando Sabino, "O encontro marcado", que foi o testemunho de uma geração. Quase que no mesmo trimestre editava-se "A lua vem da Ásia", que revelou um de nossos mais originais romancistas, Campos de Carvalho. "A madona de cedro", de Antonio Calado, mostrou um avanço na ficção caladiana que chegaria ao ápice em "Quarup" alguns anos mais tarde. Sairia também na época "O senhor do mundo", o melhor romance do ciclo "Tragédias burguesas", de Otávio de Faria.


Um romance machadiano, de fundo católico, "Lições de abismo", de Gustavo Corção, que nele confirmava o sucesso de "Descoberta do outro". Então seria publicado o excelente romance amazônida de Dalcídio Jurandir, "Três casas e um rio". No mesmo período saiu "Cadernos de João", de Aníbal Machado. Aníbal, das mais queridas e populares figuras do mundo literário dos anos 40/50, mantinha em sua casa encontros literários memoráveis.


Como se o aparecimento de João Guimarães Rosa houvesse contagiado o País nos anos que se seguiram a 1956. Resta lembrar que 2008 marca os 50 anos do lançamento de "Gabriela, cravo e canela" e há planos para seminários sobre a data em Salvador e no Rio de Janeiro.


Mais ou menos na mesma ocasião saía o romance "O ventre", de Carlos Heitor Cony, que vem provar o fato de o romancista ser, nos melhores casos, também um pensador. Escritores que, semelhantes a Cony procuram o lado ético dos acontecimentos, promovem um reajustamento de valores.


Acaba de sair pela égide da LGE Editora, "Sinfonia Minas Gerais: A vida e a literatura de João Guimarães Rosa", de Alaor Barbosa.


Tribuna da Imprensa (RJ) 26/2/2008