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Poderes do Estado

 

A expressão “poderes do Estado” adquiriu, ao longo da história, sentido dúbio e polissêmico. Além de denominar as instituições que representam a soberania do Estado contemporâneo, abrange o conjunto de prerrogativas e competências concedidas aos titulares que compõem os órgãos da soberania. Delimitadas pelos textos constitucionais, elas configuram a tênue linha que separa a sociedade política da sociedade civil. A mais visível dessas fronteiras é a que distingue as atribuições do Estado das competências estabelecidas para o exercício das atividades econômicas, tanto pelo poder público quanto pela iniciativa privada.


 


Ao regular os limites e poderes do Estado e assegurar os direitos e garantias dos cidadãos, as constituições transformaram-se, ao mesmo tempo, em emanação da soberania nacional e instrumento jurídico de defesa dos indivíduos. Dessa maneira superou-se a velha querela que opunha a concepção de ser o Estado emanação do direito à de ser o direito emanação do Estado. Um novo mecanismo constitucional foi, por isso, regulado em quase todas as constituições depois da segunda guerra mundial, ao acrescentar um novo poder à estrutura do Estado: os tribunais constitucionais. Eles são cortes especiais que procuram manter a eficácia das respectivas constituições por meio da hermenêutica, adaptando-as às rápidas transformações por que passam as sociedades.


 


A concepção desse quarto poder se baseia na constatação de que os textos constitucionais não são apenas instrumentos jurídicos, mas, também, mecanismo político que mantém viva a prática constitucional, dispensando o recurso às constantes mudanças por intermédio do oneroso recurso às emendas constitucionais, que tornam os textos dessa natureza cada vez mais conflitivos, geram dúvidas e instabilidade jurídica.


 


Algo que se verifica nos atuais textos constitucionais é que eles são, sob o aspecto técnico-jurídico, más constituições, conforme apontou Giovanni Sartori no livro Elementos de teoria política, editado em 1992. Sua lição parece cada vez mais não só válida quanto oportuna: “Encontram-se nelas deslumbrantes profissões de fé por um lado, e um excesso de detalhes supérfluos por outro. Algumas delas já são tão `democráticas´ que já não são constituições, na medida em que ou bem tornam o funcionamento do governo demasiado, complexo e complicado, ou bem ambas as coisas. (...) Nessas condições, a não aplicação pode ser um remédio à falta de aplicação.


Portanto, devemos regular caso por caso. Seria contraproducente ou pouco sensato aceitar, em todos os casos, o ponto de vista estritamente jurídico segundo o qual toda constituição deve ser aplicada a qualquer custo. (...) Pessoalmente penso que devemos aceitar sempre se a não aplicação afeta o funcionamento do governo em relação aos objetivos fundamentais do constitucionalismo, ou não. No primeiro caso pode-se falar de delitos de ausência de aplicação (conforme define Loewenstein), enquanto no segundo não se pode falar propriamente de delito”.


 


Sob esse aspecto, a Carta de 1988, por sinal a mais extensa de nossa história, padece, entre outros, do equívoco de acolher inúmeros dispositivos que não são materialmente constitucionais. E, como bem destacou Benjamin Constant de Rebecque, escritor franco-suíço que tanto influenciou os primórdios de nosso constitucionalismo, a “duração de uma Constituição é bem mais garantida quando encerrada em seus limites naturais do que quando repousa no apoio enganador de uma veneração supersticiosa”.


 


Quando um problema político — e o constitucionalismo é inevitavelmente a solução jurídica de um problema jurídico — se despolitiza, ensina Sartori, “as conseqüências efetivas de um ordenamento jurídico neutro são e continuam sendo, ainda que involuntariamente, políticas; e isso beneficia os demagogos e os déspotas”. Os períodos de autoritarismo e de populismo por que temos passado nos últimos 75 anos não são, em última análise, senão o resultado dessa perversa pendularidade que nos toca corrigir, por meio de uma profunda reforma das instituições políticas, mas, também, das mais relevante delas, a Constituição que temos e já deixou de ser um texto constitucional para se transfigurar num mero regulamento que entrava o desenvolvimento e constrange ao mesmo tempo a economia e a sociedade.


 


Correio Braziliende (Brasília) 09/09/2006

Correio Braziliende (Brasília), 09/09/2006