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Poder aquisitivo

 


Os governantes, em geral despreparados, continuam convencidos de que tudo podem. É quando o poder se torna obra de "ficção"



TODOS MAIS ou menos sabem o que o poder pode. Poucos, o que o poder não pode.

Não pode, por exemplo, subtrair, privilegiar uns em detrimento de outros, falsificar resultados, divulgar estatísticas fantasiosas, privatizar o espaço público, deixar de fora esses pré-requisitos. Ao cultuar a auto-estima excessiva ou o despreparo exagerado, ele habita feliz a sua ilha de fantasias.


E imagina que pode tudo. Quando descoberto, exposta a sua nudez, o poder fica "triste". Dessa tristeza já nos falou Albert Camus. Os governantes, em geral despreparados, continuam convencidos de que tudo podem, de que não têm limites, de que nem o céu é o limite. É quando o poder se transforma em obra de "ficção". Mas, sem imaginação, preocupado em receber o aplauso ocioso do auditório nanico. Dessa ficção nos falou Roland Barthes. O grave é que, ao descobrirmos que o "rei está nu", muita água já rolou embaixo da ponte.


O território ao qual se chega apenas pelo poder de compra jamais será um lugar antecipado, ou antecipador. Quando o valor já não se mede por qualquer vigor moral, mas pela sua exclusiva capacidade de compra, alguma coisa está errada. É preciso apurar a memória e discernir. Coisas em que o brasileiro não é forte. Nunca preservamos a memória, e muito menos a história. A não ser como anedota. Persiste a predominância aritmética nas avaliações e na contabilidade eleitoral. Esquecem ainda que todo poder é transitório e deve ser transitivo. Não tem valor por si só. Vale o que podemos fazer com ele em termos de benefício coletivo.


Não é preciso muito esforço para verificar que o "cibermundo" é amnésico. Avesso, até porque usa a velocidade, às rememorações. É puro presente. E o puro presente alia-se facilmente à pequenez. Em meio a esse quadro preocupante, surgiram novos personagens nessa cena contemporânea ou simplesmente contábil: o valor agregado, o caixa dois, o mensalão, o sanguessuga. O vocabulário da língua portuguesa nunca supôs se enriquecer vertiginosamente dessa pobreza. Quando vamos retirar a corrupção e a fraude da agenda nacional e colocar nos debates idéias e programas?


Tenho a impressão, se não me equivoco, de que a política partidária, mesquinha, volátil e interesseira vem se dedicando a essa encenação cada vez mais banal e enfadonha. A saída? Onde está a saída? É simples e é complicada. Sobretudo com essa desertificação generalizada. A sociedade, munida do voto soberano, ainda é o melhor tribunal para vigiar, punir e premiar com legitimidade.


Resta saber se um país educacionalmente atrasado se encontra em condições de votar bem. O que acontece é que o Brasil não tem dado a devida prioridade à educação. Os problemas não são os eventuais ocupantes da pasta correspondente. O atual governo, é justo que se reconheça, tem tido bons ministros da educação. A questão é outra.


A rigor, o Estado brasileiro sempre ignorou a educação. Somos uma população sem escola. Os insuspeitos organismos internacionais publicam pesquisas que nos envergonham. O ensino superior público só atende 2% da demanda nacional. Os professores são escandalosamente mal remunerados. Estamos defasados quantitativa e qualitativamente. Anuncia-se, em boa hora, um sistema de educação à distância. É louvável. Porém, quem vai assegurar a programação, o acompanhamento, a monitoração? E como andam os quadros docentes na área?


De qualquer modo, o progressismo fraudulento está sendo enterrado, sem choro nem vela. Falta destituir o poder aquisitivo.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 02/08/2006

Folha de São Paulo (São Paulo), 02/08/2006