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Permanência de Clarice

 

A literatura de Clarice Lispector pode ser tida como o grande exemplo da ficção simbolista no Brasil. A linhagem do gênero é larga e longa. Há mais de cem anos que o simbolismo narrativo, tal como o concebemos hoje, começou a se firmar no mundo. Escrevendo sobre Théophile Gautier, dizia Baudelaire que a nova ficção devia ligar-se à poesia, não tomando-lhe emprestado metro e rima, acrescentava, mas aproveitando-se de sua "concisa energia" de linguagem. Num estudo sobre simbolismo em geral,"The literary simbol", enumera Willian York Tindall os motivos pelos quais o romance superou a poesia no século XX.


A popularidade do romance de hoje, em contraste com o enorme prestígio da poesia de antigamente, seria um efeito desse nível superior atingido pela ficção. A partir de Flaubert e Melville, passando por Dostoievski, Lewis Carroll e Henry James, e indo desaguar em Kafka, Virginia Woolf, James Joyce, Proust, Thomas Mann, E.M. Foster, Faulkner, Hermann Hesse, Jacob Wassermann, houve um salto na arte da ficção, o que fez T.S. Elliot dizer a frase a que York Tindall dá tanta importância; "Sou às vezes levado a pensar que o avanço criador de nossa época está na prosa de ficção".


Por outro lado, um modelo do romance simbolista, Virginia Woolf, queixa-se de que, infelizmente, o romance não chegara ainda a ser inteiramente poético. Para que, dizia a autora de "To the lighthouse", entregar-se a pormenores descritivos? O importante, dizia, era escrever por "iluminação", ligar-se à "visão" de que falavam Baudelaire e Rimbaud.


Clarice foi notícia desde que ainda jovem, apareceu com seu primeiro livro,"Perto do coração selvagem". Era o fim da II Guerra Mundial, era uma literatura que estava também produzindo João Cabral e João Guimarães Rosa, era a Geração de 45 e a do aparecimento de outros adeptos da ficção simbolista entre nós - como Adonias Filho, Octávio Faria e Lúcio Cardoso.


O ideal de Virginia Woolf, de uma ficção poética, tornou-se uma realidade nos romances de Clarice, cuja utilização da língua portuguesa chega a palavras que ela emprega com precisão e sentido poético. A velha interrogação de Sófocles, em "Édipo Rei", mantém hoje a mesma força de antigamente; "De que vale a nave, de que vale a torre, sem homens dentro que as habitem?"


Num romance de Clarice, é como se os personagens ocupassem nele um espaço fixo e determinado, valorizando cada trecho da história com uma forma poética no narrar e no apresentar sua gente. Em "A maçã no escuro", desde que o homem acorda, descreve a romancista as contrações e ampliações da noite. Aí e em outras partes do livro, realiza Clarice Lispector uma obra da mais alta beleza, como romance que narra e como arcabouço de palavras.


Fazendo poesia, mesmo no sentido em que Virginia Woolf usava a palavra (veja-se o ritmo poético do encerramento da narrativa; "E esse modo instável de pegar no escuro uma maçã - sem que ela caia") mergulha Clarice numa extraordinária turbação de significados que eleva seu livro a um dos níveis mais altos da ficção brasileira.


Seu nome acaba de ganhar, espaço com o livro " Clarice: fotobiografia", onde ela é mostrada e analisada, com informação de cada passo de sua carreira e com fotos tiradas em várias partes do mundo, numa narrativa visual criada a partir de imagens acompanhadas de legendas e de, no final, textos explicativos mais detalhados, com os momentos importantes de um percurso de vida e obra de uma brasileira (que o era, profundamente) que elevou a língua portuguesa a um belo instrumento de entender a vida.


O volume agora lançado na Academia Brasileira de Letras, sai sob a responsabilidade de Nádia Battella Gotlib, autora e organizadora de vasta obra de análises e biografias populares, inclusive de outro estudo sobre Clarice, "Clarice, uma vida que se conta", (saído em versão argentina, Una vida que se cuenta).


"Imagens de Clarice Lispector": Pedro Gurgel Valente e Paulo Gurgel Valente. Produção e design de Ricardo Assis, editoração eletrônica da Negrito Produção Editorial, tratamento das imagens de Ana Paula Fujita, editoração de texto e revisão final de Alice Kyoko Miyashiro. Edição: Editora da Universidade de São Paulo e impressão e acabamento da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.


Tribuna da Imprensa (RJ) 24/6/2008