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Pe. Antônio Vieira e os peixes

 

Tudo o que o mestre da retórica sacra lusitana percebia, hoje percebemos com igual impunidade. E o que nos surpreende no gênio de Antônio Vieira é a utilização da palavra como arma temível, desdobrável, muitas vezes em chama, ora ao falar aos portugueses, ora aos holandeses (pela invasão), ora no Brasil Colônia, ora aos príncipes, ora ao vulgo, ora aos próprios peixes, não importando a quem, desde que alcance seus intentos de convencer , espantar ou evangelizar. Usando a alegoria, para Octavio Paz – “expressão do pensamento analógico”.


Contempla os homens como peixes e os peixes como homens. E acrescenta: “Quem olhasse neste passo para o mar e para a terra, e visse na terra os homens tão furiosos e obstinados, e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de dizer?

Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens e os homens não em peixes, mas em feras. Aos homens deu Deus o uso da razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão.


Muito louvor, mereceis peixes, por este respeito e devoção que tivestes aos Pregadores da Palavra de Deus , e tanto mais quanto não foi só esta a vez em que assim o fizestes. Ia Jonas, Pregador do mesmo Deus , embarcado em um navio, quando se levantou aquela grande tempestade; e como o trataram os homens, como o trataram os peixes?: Os homens lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes, e o peixe que o comeu, levou-o às praias de Nínive, para que lá pregasse, e salvasse aqueles homens”(Sermão de Santo Antônio, S. Luís do Maranhão, 1654).


E remata com rara felicidade, como um poeta da língua: “Os peixes não batem moeda no fundo do mar, nem têm contratos com os homens, donde lhes possa vir dinheiro: logo a moeda que este peixe tinha engolido era de algum navio que fizera naufrágio naqueles mares.” (...)( Peixes!) A vossa bruteza é melhor que a minha razão e o vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com a memória: eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade” (Ibidem).


Vieira desencadeia inefável corrente verbal , com acesos signos, trazendo com a penúria do homem entre memória, entendimento e vontade, a evidência da mais completa inocência dos peixes. Estão entre as suas mais belas e pungentes páginas. Encarnando a natureza humana e percebendo quanto ela se nega cada dia, pondo-se em escala inferior à dos anfíbios. É um sonho ou pesadelo metafórico?


O fato é que a obra de Pe. Antônio Vieira tem muitas vozes, sonhando muitos futuros e as palavras não o conseguindo mais enganar, de tão reais, ficaram imponderáveis, como se nelas se movesse o século.


Diário da Manhã (GO) 06/01/2009

Diário da Manhã (GO), 06/01/2009